Rev. nuestrAmérica, 2023, n. 22, publicação contínua, e8434160

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Licença: CC BY NC SA 4.0

Recebido: 30 de maio de 2023

Aceito: 8 de setembro de 2023

Publicado: 15 de setembro de 2023


Estado atual da educação para as relações étnico-raciais no Brasil

Estado actual de la educación para las relaciones étnico-raciales en Brasil

Current state of education for ethnic-racial relations in Brazil

 

Dayana da Silva Ferreira

Licenciada em História, mestranda em Educação

Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

Brasil

dayana.ferreira@edu.unirio.br

http://lattes.cnpq.br/3122664339628384

https://orcid.org/0000-0002-9031-3582

 


Resumo: Este artigo pretende discutir a importância da Educação para as Relações Étnico-raciais (ERER) no Brasil, a partir da promulgação das leis 10.639/2003 e 11.645/2008. Estas regulamentações alteraram a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) 9.394/96 no que se refere ao ensino de História Africana, Afro-brasileira e Indígena nos espaços de educação básica. A breve análise conjuntural traz um contexto histórico marcado pela baixa adesão às leis (70% de distorções às normas, segundo Geledés, Instituto da Mulher Negra e Instituto Alana), onde tratarei das principais estratégias de cumprimento das normas e dos gârgalos socioeducativos observados. Procurarei, neste breve ensaio, explicar a importância da militância negra brasileira nos curtos passos conquistados até aqui. E, por meio do conceito cunhado por Kimberlé Crenshaw, em 1991 (interseccionalidade), expor as feridas da colonialidade (Quijano 2005) que brotam no processo sócio-histórico-educacional dessa nação-colônia. A metodologia adotada será uma revisão bibliográfica decorrente de explicações destacadas, breves compilações e alguns estudos realizados na área de ERER nos últimos 20 anos.

Palavras-chave: educação; interseccionalidade; colonialidade.

 

Resumen: Este artículo pretende discutir la importancia de la Educación para las Relaciones Étnico-raciales (ERER) en Brasil, a partir de la promulgación de las leyes 10.639/2003 y 11.645/2008. Esas normas modificaron la Ley de Directrices y Bases de la Educación Nacional (LDBEN) 9.394/96 sobre la enseñanza de la Historia Africana, Afrobrasileña e Indígena en los espacios de educación básica. El breve análisis coyuntural trae un contexto histórico marcado por la baja adherencia a las leyes (70% de distorsiones a las normas, según Geledés, Instituto da Mulher Negra e Instituto Alana), donde trataré las principales estrategias para el cumplimiento de las normas y los cuellos de botella socioeducativos observados. Intentaré, en este breve ensayo, explicar la importancia de la militancia negra brasileña en los cortos pasos conquistados hasta ahora. Y, a través del concepto acuñado por Kimberlé Crenshaw, en 1991 (interseccionalidad), exponer las heridas de la colonialidad (Quijano 2005) que brotan en el proceso socio-histórico-educativo de esta colonia-nación. La metodología adoptada será una revisión bibliográfica resultante de explicaciones destacadas, breves recopilaciones y algunos estudios realizados en el ámbito del ERER en los últimos 20 años.

Palabras clave: educación; interseccionalidad; colonialidad.

 

Abstract: This article intends to discuss the importance of Education for Ethnic-racial Relations (ERER) in Brazil, since the enactment of laws 10.639/2003 and 11.645/2008. These regulations altered the National Education Guidelines and Bases Law (LDBEN) 9.394/96 regarding the teaching of African, Afro-Brazilian and Indigenous History in basic education spaces. The brief conjunctural analysis brings a historical context marked by the low adherence to the laws (70% of distortions to the norms, according to Geledés, Instituto da Mulher Negra and Instituto Alana), where I will deal with the main strategies for complying with the norms and the socio-educational bottlenecks observed. I will try, in this brief essay, to explain the importance of Brazilian black militancy in the short steps conquered so far. And, through the concept coined by Kimberlé Crenshaw, in 1991 (intersectionality), expose the wounds of coloniality (Quijano 2005) that sprout in the socio-historical-educational process of this colony-nation. The methodology adopted will be a bibliographic review resulting from highlighted explanations, brief compilations and some studies carried out in the area of ERER in the last 20 years.

Keywords: education; intersectionality; coloniality.


 

Introdução

No rastro dos 20 anos da lei 10.639/2003, busco analisar dados recentemente publicados pelas instituições, Géledes - Instituto da Mulher Negra e o Instituto Alana, no que se refere a baixa adesão por parte das secretárias municipais brasileiras às diretrizes presentes na supracitada lei, ao modificar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9.394/1996 (LDBEN), documento “suleador” dos processos educativos formais da Educação Básica. A lei 10.639 ainda seria complementada pela norma nº 11.645, no ano de 2008, trazendo outros elementos étnicos sobrevindos de múltiplas perspectivas indígenas. Sendo os dados estatísticos compilados por regiões nacionais, o estudo intitulado "Lei 10.639/03: a atuação das Secretarias Municipais de Educação no ensino de história e cultura africana e afro-brasileira" (Benedito Soares, Carneiro e Portella 2023) nos apresenta que 70% das secretárias educacionais não aplicam as normativas de maneira producente às novas (re)formulações educacionais pleiteadas. Vale ressaltar que, apesar de configurações variáveis em determinados locais, a responsabilidade da educação básica de nível infantil e fundamental fica à cargo dos municípios, sendo a escola, geralmente, um dos primeiros espaços sociais de contatos com a história, a cultura e as artes afro-brasileiras, africanas e indígenas. Nos escritos da Prof. Dra. Petronilha Beatriz Gonçalvez e Silva, pronuncia-se que: “As dificuldades para implantação dessas políticas curriculares assim como a estabelecida no art. 26º da Lei 9.394/1996, por força da Lei 10.639/ 2003, se devem muito mais à história das relações étnico-raciais neste país e aos processos educativos que elas desencadeiam, consolidando preconceitos e estereótipos, do que a procedimentos pedagógicos, ou à tão reclamada falta de textos e materiais didáticos” (Gonçalves e Silva 2008, 500). Isto me permite caminho analítico que contesta os argumentos, principalmente de professores e gestores educacionais, referentes à falta de materiais didático-pedagógicos concernentes à prática da ERER nos quatro eixos educativos da educação de base (Educação Infantil, Ensino Fudamental I, Ensino Fundamental II e Ensino Médio). Em eventos direcionados a temática da ERER, pude perceber que além de muitos NEABIs espalhados pelos campis universitários nacionais, temos instituições e grupos de pesquisas inclinados à formação, elaboração e divulgação de tais conteúdos curriculares, estando estes dispostos ao diálogo com as secretárias de Educação e, consequentemente, com os espaços educacionais. Ainda, ao tensionar processo sócio-histórico colonial citado pela Dra. Petronilha, atribuo arcabouço epistemológico pautado nos caminhos do materialismo histórico dialético, ou seja, uma perspectiva educacional crítica, onde assumo a posição teórico-política contrária à ordem social burguesa que produz um peculiar cenário de desigualdades na América Latina. A partir da filosofia da práxis de Paulo Freire e autores precedentes (MESQUIDA, 2011), permito-me analisar a lei 10.639 (e a lei 11.645) em seus desdobramentos contidos nas “Orientações e Ações para a Educação das Relações Étnico-Raciais” (Ministério da Educação 2006), no documento do Instituto Alana/Géledes e nos escritos de pesquisadores de amplo reconhecimento teórico-metodológico na ERER, possibilitando assim a junção de categorias analíticas advindas dos problemas apresentados como delimitadores ao avanço das práticas curriculares antirracistas e, ainda, traçando possíveis trajetos prático-teóricos para uma melhor implementação das leis. O método do materialismo histórico-dialético e a Educação (Pires Freitas de Campos 1997) abre-me horizontes interpretativos, onde com intuito de experienciar uma vida mais fluída, entendo que as novas sínteses do processo enunciado pela ERER, em efetividade de aplicação, nos apresentará desafios outros e demandantes de novas regulamentações. Para Kimberlé Crenshaw (2012 [1991]), a interseccionalidade é a forma como as opressões sociais interagem, gerando especificidades existenciais, argumentativas e regulatórias diante das necessidades de tratativas de problemas coletivos (de variadas dimensões qualitativas e/ou quantitativas). Ao pensar sobre terrenos socioeducativos transpassados por inúmeras variáveis condicionantes, o conceito de Crenshaw, ao centralizar um olhar cuidadoso para as (des)padronizações sociorraciais, enuncia questões, por vezes, pouco aparentes, como por exemplo a evasão escolar nacional ser expressivamente atrelada às pessoas negras, pobres, dentre outras categorias em correlações (Ratusniak e Clauber da Silva 2022). Ao caminhar por esteira conceitual concernente à colonialidade (Quijano 2005), lanço mão das explanações apresentadas pela Prof. Dra. Nilma Lino Gomes sobre os movimentos negros brasileiros no século XX, onde esta nos revela que: “Uma coisa é certa: se não fosse a luta do Movimento Negro, nas suas mais diversas formas de expressão e de organização – com todas as tensões, os desafios e os limites –, muito do que o Brasil sabe atualmente sobre a questão racial e africana, não teria acontecido. E muito do que hoje se produz sobre a temática racial e africana, em uma perspectiva crítica e emancipatória, não teria sido construído. E nem as políticas de promoção da igualdade racial teriam sido construídas e implementadas” (Gomes 2017, 19). Tal recorte teórico me permitirá analisar a lei 10.639/2003 e suas complementações jurídico-normativas como fruto de mobilizações e tensionamentos racialmente concebidos, contrapondo-se as hierarquizações sociais construídas ao longo do trajeto colonial-escravista que dá contornos as sociedades afro-latino-americanas. A lei “não pegar”, ou seja, não ser aplicada conforme concebida para efetividade, é espelhamento das crenças sociorraciais advindas da formação intelectual brasileira nas trilhas teóricas de Gilberto Freyre, em seu livro “Casa Grande e Senzala” (Freyre 2003 [1900-1987]), e de outras intelectualidades tradicionais de épocas pretéritas e posteriores ao autor. Com o intuito de contrapor tais processos hegemônicos de maior penetração no tecido social, trago um trecho do artigo da Prof. Dra. Jessica Visotsky (2018), Interseccionalidad crítica y educación, onde se direciona a necessidade de confrontarmos as lógicas de poder que predominam nos contextos educativos provenientes dos processos histórico-sociais, onde: “Entendemos que resulta central revisar los modos en que se dan los entramados de poder en los que se insertan los procesos educacionales y reflexionar acerca de cómo se constituye la experiencia social y cómo se van imbricando las categorías de clase, el racismo y la experiencia que el patriarcado ha dado lugar en el capitalismo colonial en este sur del continente” (Visotsky 2018, 168). A partir desta breve contextualização, encaminho, no próximo tópico, a metodologia de revisão bibliográfica ou revisão de literatura (Laville 1999), fundamentando minhas contribuições argumentativas sobre o momento educacional da ERER e, por conseguinte, descrevendo os possíveis cenários para efetiva implementação das leis como processo orgânico.

 

Perspectiva metodológica

Conforme Marília Freitas de Campos Pires, em 1997 dispôs, o materialismo histórico-dialético assume no campo educacional caráter interpretativo aproximado, ou seja, que nos possibilita enxergar algumas interações sociais, de maneira a pensar concretamente situações provenientes de pesquisas empíricas. A totalidade do objeto ERER como momento estático em tempo que flui; como uma fotografia da realidade que coloca-se mutável em cada instante de vida, me possibilita recorte localizado em espaço-tempo presente, onde logo lhe atravessarão novas inserções das existências, suscitando novas pesquisas e análises diante das contradições futuramente identificadas. E, por isso, estudá-la é perseguir cavalo alazão em franco movimento. Dentro das pretensões analíticas no campo mencionado, os fenômenos e suas múltiplas variáveis serão içados doravante uma prioridade de estudo, ao buscar interpretações interconectadas a um pequeno universo restrito do todo. A partir do que se deseja mapear, o eu pesquisadora tenta ser capaz de incompletas inferências para pontuais soluções sobre o problema apresentado. Aqui refletirei a partir de intuição nascida na experiência escolar, primando por uma posição que justificará o dado (70%) encontrado pelos institutos Géledes/Alana e que fará coro a iniciativa de militância educacional nomeada como Campanha Nacional Fazer valer a Implementação Efetiva das Leis 10639/03 e 11.645/08. A campanha “Fazer Valer as Leis 10.639 e 11.645”, segundo Elza Rodrigues e Valdisio Fernandes, em artigo publicado pelo Instituto Búzios, surgiu como: “... a estratégia para pressionar o estado brasileiro para efetivar as Leis [que] aconteceu em 12 de agosto de 2015 (Dia da Revolta dos Búzios), [com] organizações do movimento negro em diversos estados do Brasil, a partir de uma iniciativa do Centro de Cultura Negra do Espírito Santo – CECUN, [onde] se uniram e lançaram a CAMPANHA NACIONAL PELA IMPLEMENTAÇÃO DAS LEIS 10.639/03 E 11.645/08. Nesta data encaminharam um documento para à Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão – PFDC – PGR, solicitando a realização de um Diagnóstico sobre a Implementação efetiva do Art. 26-A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB, em todo o país. (Rodriguez e Fernandes 2020). O diagnóstico preliminar já condizia ao que se encontraria como dado estatístico no presente ano. Ao partir de tais percepções ao processo histórico-social, farei uso da metodologia de revisão de literatura (Laville 1999) a partir de dois documentos: a) documento - Orientações e Ações para a Educação das Relações Étnico-Raciais - documento publicado pelo Ministério da Educação (MEC), no ano de 2006, onde se delineiam algumas sugestões, práticas e encaminhamentos determinados por faixas de idades, possibilitando uma melhor apropriação da temática por parte dos docentes, gestores, secretários, demais profissionais da Educação e membros da comunidade escolar, objetivando aplicação dos conteúdos em espaços de educação formal; b) documento - Lei 10.639/03 a atuação das Secretarias Municipais de Educação no ensino de história e cultura africana e afro-brasileira - estudo quantitativo publicado em 2023, onde se traz o diagnóstico da aplicabilidade das leis modificadoras do art. 26 da LDBEN através de mapeamento de (in)ações das secretarias educacionais espalhadas pelo país, em seus contornos municipalizados. Os materiais foram acessados por meio digital, respectivamente, pelo site do Ministério da Educação e do Instituto Alana. Objetiva-se com tal estudo, a aproximação do que se traçou como possibilidades/formatos para a implementação das leis, ao longo de concepções e construções teórico-prático-políticas dos movimentos negros e seus intelectuais, em consonância/dissonância com o que nos vem revelar a pesquisa sobre a inaplicabilidade das normas em mais 70% das cidades brasileiras.

 

Achados

Por uma questão de organização cronológica, inicio os apontamentos pela descrição dos principais pontos extraídos do escrito - “Orientações e Ações para a Educação das Relações Étnico-Raciais”, publicado no ano de 2006, pelo Ministério da Educação e secretarias afins. Como atravessamentos comuns aos estágios da educação básica, o documento reflete a necessidade de formações multivariadas para toda comunidade escolar, a partir de aportes histórico-culturais tangenciais ao entorno das escolas, para assim diversificar as contribuições sociopedagógicas e possibilitar a inserção da questão étnico-racial ao Projeto Político Pedagógico (PPP). A interlocução com grupos de pesquisas, os movimentos negros e os institutos são pontos realçados. Em termos de concepções relacionais, priorizando as demandas das fases vinculadas as primeiras infâncias (0 a 6 anos, em média), traz-se as dimensões dos cuidados, das afetividades, das aproximações/interlocuções com os entes familiares, a socialização entre os pares, os docentes, os auxiliares e demais profissionais educadores. Ainda se reporta a atenção para as ritualísticas no espaço escolar, ao primar por um espaço laico e de descentralização das formulações curriculares hegemônicas. Pensa-se sobre uma docência permeada por fazeres pesquisadores e produtores de conteúdos, que no entanto, de acordo com o descrito por Guedes, em 2017, encontra-se pressionada por cargas horárias extenuantes, dificuldades na realização de estudos e baixas remunerações. A noção de multi/inter/transdisciplinaridade ao longo de todo ano letivo traz anseios de inovações temáticas e teórico-metodológicas, que ao fundamentarem a implementação das leis, tenderiam a transformar o contexto do ensinar-aprender. As avaliações deveriam ter caráter regular e retroalimentador, ao permitirem análises sobre as ações, as respostas, as limitações e os rearranjos necessários. O documento ainda propõe: “... a aquisição de recursos adequados para o trato das questões étnico-raciais, como, por exemplo, munindo a biblioteca de acervo compatível, folhetos, gravuras e o e outros materiais que falem da temática e brinquedoteca com bonecos(as) negros(as), jogos que valorizem a cultura negra e decoração multiétnica (Ministério da Educação 2006, 68); “Recusar o uso de material pedagógico contendo imagens estereotipadas do negro, como postura pedagógica voltada à desconstrução de atitudes preconceituosas e discriminatórias.” (Ministério da Educação 2006, 73). Nos estudos quantitativos desenvolvidos pelos Institutos Géledes / Alana (Benedito Soares, Carneiro e Portella 2023, 8), 21% das secretarias municipais (1.187) responderam a pesquisa encaminhada a mais de 5.000 órgãos espalhados pelo território brasileiro. A pesquisa, ao avaliar as repostas, revelou que: “(...) 18% deles não realizam nenhum tipo de ação para assegurar um currículo racialmente justo e que proporcione uma experiência escolar digna para todas as crianças e adolescente...” e que ... 29% das redes municipais de ensino desenvolvem ações (entenda-se efetivas) que nos permitem reconhecer a intencionalidade em aplicar a referida lei (Benedito Soares, Carneiro e Portella 2023, 8). Alguns números foram retirados para criarmos um horizonte analítico e dialógico: a) “26% dos municípios têm uma área, equipe ou profissionais específicos responsáveis pelo ensino de história e cultura africana e afro-brasileira dentro das Secretarias Municipais de Educação; b) 39% realizam investimentos e disponibilizam recursos para o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira; c) 8% afirmam ter uma dotação orçamentária para o tema” (Benedito Soares, Carneiro e Portella 2023, 41); d) “57% das secretarias oferecem formações sobre relações étnico-raciais, ensino de história e cultura africana e afro-brasileira, principalmente para os docentes e isso tem implicações especificas que abaixo listarei. d) 24% das secretarias acompanham indicadores de desempenho dos estudantes por raça; e) A maioria das secretarias afirma que as escolas da rede incorporaram a temática em seus PPPs. Entretanto, 69% declararam que a maioria ou boa parte das escolas realiza atividades apenas em novembro, durante o mês ou semana do Dia da Consciência Negra; f) “... materiais didáticos utilizados pelas escolas sobre a temática são distribuídos via Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) na maior parte dos casos... 1/3 menciona materiais específicos distribuídos pelas secretarias, que muitas vezes podem ser comprados, recebidos em doação ou produzidos pelos próprios educadores e coordenadores”; (Benedito Soares, Carneiro e Portella 2023, 49-50); g) “A realização de oficinas de formação e eventos para as famílias sobre questões étnico-raciais pelas escolas é pouco comum. 63% das secretarias afirmam que essas atividades não ocorrem em nenhuma ou só em algumas escolas” (Benedito Soares, Carneiro e Portella 2023, 54). Ainda, mais da metade das secretarias (53%) declararam “não receber apoio de outros entes federados e organizações” (Benedito Soares, Carneiro e Portella 2023, 64).

 

Discussão

Concluo, perante as acepções supracitadas, que a lei 10.639/2003 (e complementações) tem sofrido com as heranças sociorraciais apontadas pela Professora Petronilha Beatriz em seu artigo, dada nossa formação histórica. A elaboração do presente trabalho revela-se como uma análise panorâmica do processo legislativo e prático da ERER, onde se considera o acesso aos dados qualitativos da pesquisa mais recente (em desenvolvimento) e demais aprofundamentos investigativos como centrais à otimização da aplicabilidade das leis antirracistas. Na intenção de facilitar processo de implementação, avaliação e readequação da normativa modificadora da LDBEN, o MEC, a época, contribuiu com inúmeros documentos, resoluções e normativas que pudessem facilitar os fazeres escolares em suas especificações comunitárias (gestões, docentes, discentes, profissionais de apoio educacional e familiares). Contudo, interponho sugestões que possam contribuir para uma maior esquematização do processo organizativo da ERER no Brasil, como por exemplo as formações direcionadas aos cargos e demais entes escolares; a organização de um banco de dados sobre os principais grupos, NEABI´s e organizações do movimento negro educador que possam contribuir tanto para o desenvolvimento do-discente (Freire 1996, 16), quanto para a contribuição nas pesquisas e formulações dos conteúdos didáticos; a produção de cartilhas instrucionais com linguagens voltadas a um público não acadêmico; dentre outras ações. Diante dos dados apresentados no estudo Lei 10.639/03 a atuação das Secretarias Municipais de Educação no ensino de história e cultura africana e afro-brasileira” (Benedito Soares, Carneiro e Portella 2023), chamou-me atenção que 79% dos órgãos municipais não responderam às questões referentes a aplicabilidade da lei em âmbito nacional, dificultando o mapeamento das (in)eficiências, ausências e principais questionamentos sobre a normativa. Penso ser relevante acionar, a partir da União, os órgãos ministeriais que tenham interesses diretos na efetiva implementação das leis (Ministério da Educação, Ministério da Igualdade Racial, Ministério dos Povos Originários, etc.), a fim de gerar movimentações voltadas para políticas interinstitucionais de mapeamentos, organizações e acompanhamentos das práticas educativas da ERER. O levantamento estatístico informou maiores dificuldades de cidades menores na execução orçamentária e pedagógica, onde: Grande parte das secretarias afirma não ter recebido suporte suficiente de outros entes e instituições para a implementação da lei.  A ausência de suporte é sentida, principalmente, entre os municípios de pequeno porte.” (Benedito Soares, Carneiro e Portella 2023, 69). O que aqui encaro como contrassenso, na observação dos respondentes, é resultante qualitativa que revelou majoritária satisfação com o execução das normas, mesmo diante dos números apontados sobre as dificuldades formativas e orçamentárias, além de baixos engajamentos por parte das comunidades escolares. No cenário que se apresenta conjunturalmente, é exposto que: “Após 20 anos da promulgação desta lei, chama atenção que a história e cultura africana e afro-brasileira sejam abordadas majoritariamente apenas no mês em que se celebra o Dia da Consciência Negra”(Benedito Soares, Carneiro e Portella 2023, 74). Como principal temática, o assunto diversidade cultural surge na maior parte das respostas, porém os estudos e debates sócio-históricos da colonialidade (Quijano 2005) são enxergados como irrelevantes. No disposto pelo Prof. Dr. Amauri Mendes, buscar articular a: “...extraordinária massa crítica a partir de visões antirracistas de novos/as pensadores/as sociais, capitaneados/as pelo protagonismo político-ideológico do Movimento Negro, especialmente no âmbito da Educação, problematizando e ressignificando saberes “universalmente consolidados” e a naturalização do racialismo e etnocentrismo em currículos e procedimentos pedagógicos...”(Pereira Mendes 2022, 10) é caminho propositivo para avanços mais significativos na efetivação da ERER. No trajeto das análises interseccionais que perpassam tais contextos educacionais, em seus aspectos sociais, econômicos e políticos, especificar a busca por dados racializados (e outros) faz-se fundamental para compreensão dos atravessamentos entre raça, classe, gênero e sexualidade, etc., diante de suas implicações. As políticas públicas educacionais só podem ter efetiva aplicabilidade ao derivarem de levantamentos estatísticos amplos, confiáveis e analiticamente conectados.

 

 

 

 

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Regulações legais

Lei Nº 9.394, DE 20 DE DEZEMBRO DE 1996: Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Presidência da República: Casa Civil: Subchefia para Assuntos Jurídicos, 1996. Acesso em 03 de março de 2020. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm

Lei n°. 10.639, de 9 de janeiro de 2003: Altera a Lei nº. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Presidência da República: Casa Civil: Subchefia para Assuntos Jurídicos, 2003. Acesso em 03 de março de 2020. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm

Lei Nº 11.645, DE 10 MARÇO DE 2008: Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Presidência da República: Casa Civil: Subchefia para Assuntos Jurídicos, 2008. Acesso em 03 de março de 2020. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm

 

 

 

 

 

Biodata

Dayana da Silva Ferreira: Mestranda em Educação, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (PPGEDU/UNIRIO). Membro do GEASur - Grupo de Estudio sobre Educación Ambiental Desde el Sur. Licenciada em História, Universidade Estácio de Sá (UNESA-RJ). Discente-pesquisadora da área da Educação com ênfase nas questões étnico-raciais. Certificada pelo Afro-Latin American Research Institute - Harvard University e outras universidades privadas/públicas nacionais. Bolsista Santander em parceria com a Universidade Estácio de Sá, de novembro de 2020 a novembro de 2021. Bolsista CAPES Demanda Social - 2022/2024. Militante e ativista de movimentos negros e educacionais: Educação e Insubmissão (FE-UFRJ) e Rede das Pretas - Região dos Lagos. Professora voluntária do PAS - EDUCAFRO. Publicação relevante: 20 anos da Lei n°. 10.639/03 e 15 anos da Lei n°. 11.645/08: avanços, conquistas e desafios:

https://www.editoraschreiben.com/_files/ugd/e7cd6e_89633c9c98db46a08e7e436b374a861f.pdf

 

 

 

Revista nuestrAmérica, ISSN 0719-3092, editada en la ciudad de Concepción, Chile. Ediciones nuestrAmérica. Correo contacto@revistanuestramerica.cl