Rev. nuestrAmérica, 2023, n. 22, publicação contínua, e8194733

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Licença: CC BY NC SA 4.0

Recebido: 15 de maio de 2023

Aceito: 23 de junho de 2023

Publicado: 29 de julho de 2023


“Encontro de Saberes” como  um caminho à pluriversidade

“Encontro de Saberes” como un camino hacia la pluriversidad

“Encontro de Saberes” as a path to pluriversity

 

Joana Bazzo Faggion Paim

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional

Universidade Tecnológica Federal do Paraná

 Pato Branco, Brasil

jfaggion@utfpr.edu.br

https://orcid.org/0000-0002-3906-6707

 

Marlize Rubin Oliveira

Doutora em Educação

 Professora Associada do Departamento de Ciências Humanas e do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional

Universidade Tecnológica Federal do Paraná

 Pato Branco, Brasil

rubin@utfpr.edu.br

https://orcid.org/0000-0003-3234-7562

 

Resumo: O projeto Encontro de Saberes iniciou em julho de 2010, como uma iniciativa do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa, sediado na Universidade de Brasília e atualmente encontra-se em vinte universidades. O objetivo do trabalho é analisar o projeto Encontro de saberes como uma experiência que utiliza o diálogo de saberes na busca do pluriverso e descolonização da universidade. Para isso, utiliza a perspectiva da decolonialidade, com os olhares do Sul, a partir de autores como Aníbal Quijano, Boaventura de Sousa Santos, Ramón Grosfoguel, entre outros. A pesquisa ocorreu por meio de observação, entrevistas semiestruturadas e análise documental e a partir de uma matriz metodológica, foram elaborados marcadores que auxiliaram na análise. Assim, depreende-se que o encontro de saberes é uma maneira para descolonização, em busca da universidade pluriversa.

Palavras-chave: universidade; epistemologia; Encontro de Saberes; pluriversidade; decolonialidade.

 

Resumen: El proyecto Encontro de Saberes comenzó en julio de 2010, como una iniciativa del Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa, con sede en la Universidad de Brasilia y actualmente se encuentra en veinte universidades. El objetivo del trabajo es analizar el proyecto Encontro de Saberes como una experiencia que utiliza el diálogo de saberes en la búsqueda del pluriverso y la descolonización de la universidad. Para ello, utiliza la perspectiva de la decolonialidad, con miradas desde el Sur, a partir de autores como Aníbal Quijano, Boaventura de Sousa Santos, Ramón Grosfoguel, entre otros. La investigación se llevó a cabo a través de la observación, entrevistas semi-estructuradas y análisis de documentos y a partir de una matriz metodológica, se desarrollaron marcadores para ayudar en el análisis. Así, se entiende que el encuentro de saberes es un camino para la descolonización, en busca de la universidad pluriversal.

Palabras clave: universidad; epistemología, cuotas universitarias; Encontro de Saberes; pluriversidad; decolonialidad.

 

Abstract: The project Encontro de Sabres began in July 2010, as an initiative of the Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa, based at the University of Brasilia, and is currently in twenty universities. The objective of the paper is to analyze the project Encontro de Sabres as an experience that uses the dialogue of knowledges in the search for the pluriversity and decolonization of the university. To do so, it uses the perspective of decoloniality, with looks from the South, based on authors such as Aníbal Quijano, Boaventura de Sousa Santos, Ramón Grosfoguel, among others. The research was carried out by means of observation, semi-structured interviews, and document analysis, and from a methodological matrix, markers were elaborated to help in the analysis. Thus, it is understood that the Meeting of Knowledges is a way to decolonize, in search of the pluriversial university.

Keywords: university; epistemology, university quotas; Encontro de Saberes; pluriversity; decoloniality.

 


 

Introdução

Este artigo teve como objetivo analisar o projeto Encontro de Saberes como uma experiência que utiliza o diálogo de saberes para a busca do pluriverso e da descolonização da universidade. O Encontro de Saberes é um projeto que iniciou na Universidade de Brasília (UnB) em 2010 - hoje presente em 20 universidades - e que tem entre seus objetivos o enfrentamento da racionalidade moderna excludente presente na universidade.

 A racionalidade da modernidade direciona a universal, e é centrada no modelo hegemônico europeu. A partir dela, formam-se dispositivos de poder que trazem as narrativas dominantes, que modulam a compreensão da história, da ciência, da religião, da economia, da sociedade como um todo. Nesse contexto, Quijano (2005) afirma que a América é o primeiro espaço/tempo do padrão de poder mundial da modernidade, sendo que a ideia de raça, em seu sentido moderno, não tem precedente histórico antes da América. É a partir daqui que foram externalizadas as diferenças entre conquistadores e conquistados por meio do conceito de raça. Portanto, a utilização do conceito racial foi determinante para a divisão do trabalho, de maneira que “as novas identidades históricas produzidas sobre a ideia de raça foram associadas à natureza dos papéis e lugares na nova estrutura global de controle do trabalho. Assim, ambos os elementos, raça e divisão do trabalho, foram estruturalmente associados e reforçando-se mutuamente” (Quijano 2005, 118).

Essa característica da modernidade ser um sistema que classifica e separa também é mencionada por Segato (2014), ao afirmar que na modernidade/colonialidade não existe dualidade, mas sim binarismo. A autora explica que com a dualidade é possível os diferentes coexistirem, em uma relação de complementariedade, enquanto no binarismo, a relação é suplementar, sendo que um termo suplementa o outro, e não o complementa. Para Segato (2014), quando um desses termos se torna “universal”, aquilo que antes era hierarquia se transforma em abismo, de maneira que o segundo termo é transformado em resto e resíduo, ou seja, os outros.

Portanto, é importante esclarecer que nesse contexto excludente a universidade também é considerada uma instituição moderna que sustenta e promove desigualdades, já que ela é responsável pela formação de empresários, de quadros de servidores do Estado: do Poder Judiciário, do Poder Executivo, do oficialato militar, entre outros, sendo que o racismo, a discriminação racial, a despossessão de terras tradicionais “são práticas seculares que se reproduzem em boa medida pelo modo como esses profissionais foram formados nas universidades” (Carvalho 2018b, 81).

Dessa maneira, o artigo problematiza a universidade que corrobora com as desigualdades, principalmente com o enfoque nas desigualdades de conhecimentos. Nesse contexto, é necessário ponderar que, em uma conjuntura de desigualdades - já que não se pretende que a academia seja inclusiva, dentro de um grande contexto social de exclusão -, há a necessidade de descolonizar o espaço universitário, seja social ou epistemologicamente. Portanto, abordamos em um primeiro momento, os marcos metodológicos utilizados na investigação e a matriz metodológica utilizada. Na sequência são discutidos os conceitos de colonialidade, de como a modernidade criou processos de exclusão que estão presentes na universidade. Para isso, apresentamos o Encontro de Saberes e a partir de marcadores decoloniais, uma análise de como o projeto tem sido um caminho na busca do pluriverso, de maneira a descolonizar o ambiente acadêmico. Na última seção, são pontuadas as principais considerações do estudo.

 

Marcos metodológicos

Os marcos teórico-metodológicos empregados aqui tiveram como base a perspectiva da decolonialidade, bem como foram utilizados outros autores cujos conceitos dialogam com os decoloniais. No que se  refere aos procedimentos de pesquisa  foram utilizados: i) observação (principalmente na Semana do Conhecimento da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em Belo Horizonte,  de 17 a 21 de outubro de 2022 e na disciplina do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS), da UnB, do ano de 2022/1); ii) entrevistas semiestruturadas[1] realizadas com quatro professores, que são identificados/as no texto como P1, P2, P3 e P4 (três docentes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e o coordenador do Projeto Encontro de Saberes em âmbito nacional, da UnB); quatro mestres e mestras, que são identificados/as como M1, M2, M3, M4 e dois estudantes da UFMG, identificados como E1 e E2 e, iii) estudo de documentos vários (Bogdan e Biklen 1991).

Ainda, foi utilizada a matriz metodológica decolonial proposta por Martins e Benzaquen (2017), com a utilização de marcadores que demonstram aspectos de colonialidade e de decolonialidade. Importante esclarecer que com a crítica decolonial, os marcadores não são categorias essenciais hierarquizadas, ou seja, não existe superioridade de uma categoria sobre as demais, como ocorre com as abordagens utilitaristas modernas. Por isso, os autores explicam que se na perspectiva eurocêntrica os marcadores são definidos como categorias mais ou menos fixas e objetivadas, “na abordagem descolonial tais categorias continuam válidas, mas devem ser mediadas pelos contextos de organização da tensão entre colonialidade e descolonialidade e pelas subjetivações sociais e culturais” (Martins e Benzaquen 2017, 25).

Como trata-se de uma matriz decolonial, os marcadores são identificados em uma das três categorias: colonialidade do poder (que abrange as instituições), colonialidade do saber (compreendendo os aspectos epistêmicos, filosóficos, científicos) e colonialidade do ser (que opera na subjetividade dos indivíduos, separando-os em raças: europeus, índios e negros) (Martins e Benzaquen 2017). Portanto, considerando os objetivos da pesquisa e as observações de campo, o destaque foi para os marcadores da colonialidade do saber, do poder e do ser, conforme Quadro 1.


Quadro 1: Matriz metodológica a partir da decolonialidade

Categorias Ontológicas

Marcadores de Colonialidade

Marcadores de decolonialidade

Saber

Universalidade do conhecimento

Pluriversidade

Interculturalidade

Desigualdades de conhecimento: Eurocentrismo

Saberes locais

Epistemologias do Sul

Neutralidade

Sensibilidade de mundo

Experiências

Saber hierarquizado – Invisibilidade epistêmica

Diálogo de saberes

Relação sujeito – saberes: objetos de estudo

Relação não extrativista

Saber com

Poder

Universidades elitistas e excludentes

Cotas universitárias

Encontro de Saberes

Ser

Raça

Movimentos políticos e culturais

Fonte: Autoria própria (2023).


As temáticas que se encontram nas categorias ontológicas dos marcadores de colonialidade e de decolonialidade estão presentes em todo o artigo, entretanto, ao adentrar ao campo e analisar a realidade durante a pesquisa alguns aspectos chamaram mais a atenção, seja por serem mais recorrentes ou pelo impacto causado na análise. Assim, no desenvolvimento da pesquisa a argumentação foi organizada a partir dos marcadores de: desigualdades de conhecimento; diálogo de saberes e relação sujeito-saberes.

 

Pluriversidade: um caminho à descolonização da universidade

Pode-se questionar em que medida a universidade está inserida na modernidade, já que existem vários sistemas de ensino no mundo, não sendo possível indicar leis universais que englobem todas as instituições de ensino superior, em virtude da diversidade da relação entre esses sistemas com a sociedade e com o Estado. Entretanto, Magalhães (2006) explica que existem duas evidências que demonstram que os sistemas de ensino superior são acontecimentos modernos: a primeira é narrativamente, se considerar que as narrativas dos sistemas de ensino se articulam com a própria narrativa da modernidade; e a segunda, que, enquanto sistemas de ensino, produzem os recursos humanos que possibilitam a formação e consolidação do Estado-nação moderno (Magalhães 2006).

Nesse sentido, como a universidade possui a narrativa da modernidade, pode-se considerar que ela foi fundamental para que a racionalidade do projeto moderno/colonial percorresse o mundo, ou mais especificamente a América Latina, já que conforme García Guadilla (2008, 31) “Ninguna otra institución europea se ha extendido por el mundo entero de la forma en que ocurrió con la universidad. El primer lugar del mundo donde se trasplantó esta institución fue en América Latina”. Nessa mesma perspectiva, há autores que consideram que não somente a universidade, mas todos os níveis de educação são responsáveis pela perpetuação da pedagogia eurocêntrica de raça, que é um dos fundamentos da modernidade (Segato 2012).

Assim, o conhecimento reproduzido nas universidades é excludente ou desigual no sentido de não haver o reconhecimento da validade das outras epistemes, sem ser as eurocentradas. Essa característica é central na modernidade. De tal maneira, verifica-se que o modelo epistemológico moderno das universidades está inserido no contexto da colonialidade do saber, que está diretamente associada à diferença colonial e geopolítica do conhecimento, de maneira paralela à diferença geopolítica da economia (colonialidade do poder). Com essa colonialidade a perspectiva de conhecimento válida é a eurocentrada, que se tornou mundialmente hegemônica a partir do domínio da Europa burguesa. Dessa maneira, pode-se constatar que a ciência moderna ao transformar as experiências de uma classe, sexo, raça dominante em experiências que se pretendem universais, torna-se uma ciência ocidental, capitalista, racista e sexista (Santos 2002; 2008).

Também, a universidade é considerada elitista ao fazer a segregação de corpos e suas epistemes, e considerar como válidas apenas determinadas experiências. Carvalho explica que a universidade possui três expressões que demonstram a característica excludente da instituição, que são: i) o “desenraizamento constitutivo” (Carvalho 2018a, 144), já que em sua constituição foram retiradas quaisquer referências ao local de origem, do lugar onde as universidades foram instaladas; ii) a restrição da educação a uma parte da população, excluindo a maioria da população até os dias de hoje. Historicamente tiveram acesso à instituição os homens, brancos, católicos, com propriedades (privadas) e; iii) o modelo do conhecimento que é transmitido, tendo em vista que “as universidades nasceram tomando como referência exclusiva certos tipos do conhecimento ocidental. Esta aposta, apoiada por mais de três séculos, empobreceu o mundo universitário [...] e culminou num modelo monoepistêmico predominante” (Carvalho 2018a, 144).

Portanto, a realidade histórica da universidade brasileira sempre foi inserida na perspectiva da colonialidade do saber, com um modelo monoepistêmico. Teixeira (1968) aponta que a história das universidades brasileiras foi eurocentrada, ao afirmar que “todo o passado brasileiro era conservado em cultura estrangeira. A alienação não é uma figura de retórica; mas, uma realidade. Educaram-nos em uma cultura diversa da cultura local.  Os nossos modelos de cultura eram sempre estrangeiros” (1968, s.p). Dessa forma, as universidades brasileiras seguiram um modelo epistemológico que valoriza a episteme europeia em detrimento de todas as demais. Nesse sentido, Teixeira (1968) expõe muito bem a ontologia das universidades brasileiras:

Mais do que tudo, porém, importava o fato de transmitir uma cultura dominantemente européia. De modo que tínhamos duas alienações no ensino superior. A primeira grande alienação é que o ensino, voltado para o passado e sôbre o passado, nos levava ao desdém pelo presente. A segunda alienação é que tôda a cultura transmitida era cultura européia. Recebíamos ou a cultura do passado, ou a cultura européia. E nisto tudo o Brasil era esquecido. A classe culta brasileira refletia mais a Europa e o passado do que o próprio Brasil: estávamos muito mais inseridos na verdadeira cultura ocidental e até na antiga - latina e grega - do que em nossa própria cultura. (Teixeira 1968, s.p., grifo nosso)

Observa-se que o modelo eurocentrado de ensino nas universidades brasileiras não é algo que ficou no passado da instituição, tendo em vista que ainda hoje não houve a superação dessa racionalidade. Desse modo, ao analisar os padrões de racionalidade modernos, Grosfoguel (2016) questiona o motivo das disciplinas das Ciências Sociais nas universidades ainda reproduzirem o pensamento de alguns homens de cinco países: Itália, França, Inglaterra, Alemanha e os Estados Unidos, deixando de levar em consideração as experiências sócio-históricas de outros lugares, mais especificadamente do Sul (Grosfoguel 2016).

Dessa forma, a partir da modernidade foi normalizada a ideia de que homens ocidentais de cinco países produzam o cânone de todo conhecimento científico das universidades, de maneira que há uma segregação do conhecimento, já que os saberes que não estão inseridos no modelo hegemônico moderno/colonial, produzido pelo  homem/branco/europeu/cristão/heterossexual é considerado inferior ou simplesmente deixa de ser considerado como conhecimento científico. Portanto, o conhecimento que provém das experiências do Sul[2] global “é segregado na forma de ‘apartheid epistêmico’ (...) do cânone de pensamento das disciplinas das universidades ocidentalizadas” (Grosfoguel 2016,  28). Para o autor, a experiência das universidades fica reduzida basicamente a aprender as teorias advindas da experiência e dos problemas da Europa, com suas peculiaridades espaciais e temporais, e simplesmente fazer aplicação em outras localizações geográficas, sem levar em consideração que essas experiências não condizem com a realidade local de outros países.

Ainda, nesse sentido de a modernidade segregar os conhecimentos, Segato (2012, 9), afirma que todos somos “lidos, classificados e racializados”, sendo que a história e a geopolítica incidem na leitura de nossos corpos, de maneira que somos lidos com a perspectiva de não-brancos. A autora expõe essa leitura como fator determinante na valorização do conhecimento produzido no Sul, já que ela “atinge e contamina a tarefa intelectual e a atribuição de valor à nossa produção acadêmica, e determina uma valoração diferencial entre os conhecimento e produções intelectuais dos autores do Norte e dos autores do Sul” (Segato 2012, 9). Assim, ensinar outras epistemes, que não a eurocentrada, não é bem visto pela própria academia:

Tocamos varias fibras, por ejemplo, la del marxismo eurocéntrico, la del marxismo clásico, que se refiere solamente a clases. Tocamos otras fibras, también. La universidad, que siendo fatalmente eurocéntrica, no soporta verse negra, verse no blanca, verse india, verse contaminada por el aspecto general de nuestras mayorías, porque esto representa, a los ojos de la comunidad académica mundial, la pérdida de prestigio, modernidad y autoridad, siempre referidas a una visión estereotipada del Norte. Porque ¿cómo el saber podrá estar encarnado en una persona cuyo aspecto físico es asociado por el imaginario eurocéntrico al subdesarrollo, al atraso, al pasado ‘bárbaro’ de nuestros países? (Segato 2012, 13-4, grifo nosso)

Portanto, apesar de não existir a possibilidade de a universidade (e de a sociedade, de uma forma geral), estar fora do projeto eurocêntrico da modernidade, o pensamento crítico de fronteira seria uma resposta epistêmica do lado subalterno, já que ao invés de recusar a modernidade e se configurar num absolutismo fundamentalista antimoderno, esse pensamento redefine a ideia de emancipação da modernidade a partir das epistemologias do lado oprimido e explorado da diferença colonial, em direção a uma luta de libertação decolonial, com o intuito de alcançar um mundo capaz de superar a modernidade eurocentrada (Grosfoguel 2008). Para isso, ao mesmo tempo em que são ensinados nas universidades os autores da modernidade, também se faz necessário que estejam presentes outras perspectivas, principalmente aquelas que foram excluídas ou ocultadas no processo da revolução científica:

É necessária a perspectiva da colonialidade daqueles que sofreram as consequências do lado ‘mau’ da modernidade. Bartolomé de Las Casas é necessário, mas não suficiente. Também necessitamos da perspectiva de Waman Puma de Ayala e de Alvarado Tezozomoc. Karl Marx é necessário, mas está longe de ser suficiente. Precisamos de Frantz Fanon, W. E. B. Dubois, Gloria Anzaldúa, Mohammed Abed Al-Jabri, Vine Deloria Jr, etc., para ‘corrigir’ o lado ‘mau’, da modernidade e para ‘nos movimentarmos numa direcção diferente’, e não necessariamente na direção do que se supõe ser a do lado bom da modernidade. [...] o problema é que não pode haver um caminho, uni-versal. Tem de haver muitos caminhos, pluri-versais. (Mignolo 2006, 677-8)

Dessa forma, constata-se que o modelo monoepistêmico aplicado nas universidades acaba empobrecendo o conhecimento, já que com a pretensão de ser uma racionalidade universal há a exclusão de experiências cognitivas diversas. Desse modo, corrobora-se a importância dos conhecimentos outros, que não sejam os eurocentrados. Assim, de acordo com Mignolo (2006), o novo paradigma das ciências está surgindo com o paradigma emergente se distanciando da “‘uni-versalidade do conhecimento’, imposta pelo cristianismo, pela filosofia secular e pela ciência moderna, na direcção de uma ‘pluri-versalidade do conhecimento e da compreensão’” (Mignolo 2006, 682). Ou seja, enquanto a modernidade promove um pensamento territorial, imbuído de “monocultura de espírito” (2006, 691), a decolonialidade procura outras lógicas, com o pensamento de fronteira e com pluralidade hermenêutica (Mignolo 2006).

Assim sendo, o pluriverso é pensado no sentido de criar condições à coexistência de múltiplos mundos interconectados. Nesse contexto, Escobar (2012) alerta que os estudos do pluriverso precisam ir além da crítica à homogeneidade moderna, buscando descobrir quais são as possibilidades dos diversos mundos, sem tentar reduzi-los a princípios já existentes. Portanto, os estudos pluriversais não devem ser reduzidos a uma simples oposição aos estudos da globalização ou então serem definidos apenas como seu complemento, todavia “precisam ser delineados como um projeto intelectual e político completamente diferente. Não existe uma noção única de mundo, de ser humano, de civilização, de futuro ou mesmo do natural que possa ocupar plenamente o espaço dos estudos pluriversais” (Escobar 2012, 54).

Desse modo, considerando a busca do pluriverso com a valorização dos saberes do Sul, que são ignorados pelo modelo hegemônico de ciências, na próxima seção discutimos e problematizamos os achados de pesquisa a partir do Encontro de Saberes.

 

A busca do pluriverso:  o Encontro de Saberes

O projeto Encontro de Saberes nas Universidades Brasileiras foi instituído em julho de 2010, sendo uma iniciativa do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa (INCTI), sediado na UnB. O projeto tem a proposta de trazer mestres e mestras oriundos de sociedades indígenas, comunidades de terreiro, quilombolas, agroextrativistas, grupos urbanos de diferentes culturas, além de outros povos tradicionais para contribuírem como professores nas universidades. Assim, é formada uma rede, uma relação triádica constituída pelos mestres e mestras, pelos docentes das universidades e pelos discentes das mais diversas áreas do saber acadêmico (Carvalho e Vianna 2020).

Carvalho (2018b) explica que há quatro dimensões no projeto Encontro de Saberes, que são “a dimensão de inclusão étnico-racial, a dimensão política, a dimensão pedagógica e a dimensão epistêmica” (Carvalho 2018b, 93). A inclusão étnico-racial busca encerrar um ciclo da academia de segregação e desigualdade. A dimensão política diz respeito à proposta de alteração da classe docente, sendo que a universidade precisará em âmbito institucional procurar soluções para resolver os impasses burocráticos referentes à contratação dos mestres. A terceira dimensão, a pedagógica, está relacionada à criação de protocolos específicos, de cada área, para que o diálogo interepistêmico seja alcançado. Pode-se citar como protocolo o rompimento da escrita sobre a oralidade ou então a transdisciplinaridade. Por fim, a dimensão epistêmica, já que o projeto busca o convívio, o diálogo entre saberes com origens absolutamente distintas. Almeja-se, assim, a promoção da diversidade epistêmica.

Ainda, é preciso entender quem são os sujeitos envolvidos nessa relação tríade: mestres/as, docentes e alunos/as. Inicialmente, cabe esclarecer o conceito de mestre, amplamente utilizado no projeto. A escolha dos mestres leva em consideração as respostas de três questões distintas: “a) os critérios utilizados para decidir quais mestres iremos convidar para ensinar nas universidades; b) as dimensões e as caraterísticas do saber dos mestres; e c) a legitimação e certificação do seu saber” (Carvalho e Vianna 2020, 34).

Nesse contexto, as comunidades de pertencimento dos 161 mestres que participaram do projeto nos dez primeiros anos de existência demonstram a grande representação dos povos indígenas, já que apesar de eles serem apenas 0,4% da população, representam 34% dos mestres do projeto, sendo que “essa presença marcante pode ser compreendida quando lembramos que a maior diversidade epistêmica com que contamos no Brasil vem dos 305 povos indígenas, que falam pelo menos 180 línguas distintas” (Carvalho e Vianna 2020, 31).

Cabe elucidar que as disciplinas do projeto Encontro de Saberes são divididas em alguns módulos, ministrados pelos mestres sempre em parceria com os docentes da universidade. Dessa forma, o professor exerce a função de anfitrião e de mediador, sendo responsável por criar a familiarização do mestre junto à estrutura acadêmica. O docente, ainda, fica responsável pelas atividades pedagógicas, de ensino e de gestão, tais como, em conjunto com o mestre, a criação da ementa da disciplina.

Por fim, os alunos envolvidos no projeto Encontro de Saberes podem ser tanto da graduação quanto da pós-graduação, já que não há um rigor quanto ao formato do projeto. Conforme esclarecem Carvalho e Vianna (2020), em algumas universidades o projeto é apresentado como disciplina de pós-graduação, graduação ou, ainda, como extensão. Isso se explica por questões administrativas das próprias universidades, que não dispõem de meios jurídicos para contratar os mestres como docentes, tendo em vista que eles que não possuem a titulação exigida para o ingresso por concurso nas instituições federais. Portanto, a estratégia inicial que muitas universidades encontram para conseguirem efetuar a contratação do mestre é por meio da extensão, sendo que muitas vezes, posteriormente, acaba havendo a superação dos entraves burocráticos e as disciplinas passam a ser ofertadas nos cursos de graduação e/ou pós-graduação.

Apesar de não haver rigidez no formato em que o projeto é apresentado, há alguns princípios que são levados em consideração quando ele é ofertado, que são: a) a remuneração dos mestres deve ser compatível com a dos professores substitutos com doutorado; b) seguir a concepção de inter e transdisciplinaridade; c) teoria e prática devem estar interligadas; c) respeito às dimensões sagradas e afetivas como formas de compreensão do mundo e; d) fomento à leitura, à escrita, à escuta e à performance (Carvalho e Vianna 2020).

Ao pensar a construção de outras possibilidades de ciências e, ainda, a efetivação da pluriversidade na academia com a inclusão de pessoas e conhecimentos excluídos desse ambiente, investiga-se a viabilidade de o projeto Encontro de Saberes ser uma forma de busca ao pluriverso e, consequentemente, de descolonização da universidade. Para isso, são expostas as análises realizadas utilizando os três marcadores acima mencionados (desigualdades de conhecimento; diálogo de saberes e relação sujeito-saberes).

A partir do marcador das desigualdades de conhecimento é possível problematizar como são valorizados os saberes norte-eurocentrados, com a realização do apartheid epistêmico dos demais saberes e, ainda, como é percebido o privilégio dos cinco países europeus na formação do cânone das universidades ocidentalizadas, que é refletido no padrão moderno do tipo de ciências reproduzido na universidade (Grosfoguel 2016). Assim, nesse marcador busca-se identificar contrapontos a essa visão eurocêntrica da ciência, a partir da valorização dos saberes locais e das epistemologias do Sul (Santos 2019).

Inicialmente, é preciso ressaltar que o modelo de ciência moderno traz a invisibilidade aos outros saberes (Segato 2014) e empobrece a universidade (Carvalho 2018a), conforme esclarece a Entrevistada P1, “Eu sou professora da música, do Departamento de música, que se centra apenas num tipo de repertório europeu, século XIX, muitas vezes romântico, no máximo, clássico. É um currículo pobre, é um currículo estreito, é um currículo que não demonstra o poder, a potência epistêmica cultural da nossa sociedade, para não falar do mundo. Mas especialmente pensando em Brasil, o que vai representar esse currículo? A ínfima proporção da sociedade, porque nós temos maioria da população, cinquenta e quatro, senão mais porcento da população negra. Um contingente de 1 milhão de pessoas originais, de mais de duzentos e cinquenta povos. Como que isso não está no currículo?” (Entrevistada P1).

Nesse contexto, quando a modernidade apaga os demais conhecimentos (Grosfoguel 2016) sem ser os norte-eurocentrados, pensar a inserção de novos saberes até então silenciados é uma forma de descolonizar a universidade. Assim, o projeto Encontro de Saberes procura justamente visibilizar, complementar a riqueza da diversidade das outras epistemes na academia. Aqui, cabe elucidar que o termo utilizado é complementar, tendo em vista que o projeto Encontro de Saberes não tem o escopo de destruir, ou então rejeitar os saberes ocidentais, mas de trazer outras perspectivas para a universidade (Mignolo 2006).

O Encontro de Saberes está visibilizando epistemes até então excluídas da modernidade e, consequentemente, do universo acadêmico, já que os diversos temas relacionados aos povos tradicionais estão sendo abordados com ineditismo na universidade. Esse ineditismo, diz respeito tanto aos conteúdos que estavam excluídos da grade curricular eurocentrada, quanto pela forma em que os temas são ministrados, pelos próprios detentores do saber, e não sendo representados pelo viés da lente de docentes com formação eurocêntrica. De fato, é grande a diferença entre um professor com a formação eurocêntrica falar em sala de aula, por exemplo, sobre a cultura guarani, e o próprio indígena demonstrar seus conhecimentos, já que, conforme Carvalho e Vianna (2020, 39) “eles sabem o que nós não sabemos e que por isso mesmo não podemos ensinar”. Dessa forma, percebe-se que nesse ambiente o lado oprimido e excluído da colonialidade possui não apenas representatividade, mas também local de fala.

Assim, se a universidade é excludente por ter passado pelo “desenraizamento constitutivo” (Carvalho 2018a), que retirou as referências dos locais de origem das universidades, o Encontro de Saberes faz o movimento contrário, de enraizamento epistêmico, com uma escuta epistêmica dos saberes regionais dos mestres. Pode-se citar como exemplo desse enraizamento epistêmico o caso da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) (informação verbal)[3], em que os envolvidos com o Encontro de Saberes daquela universidade visitaram todos os povos tradicionais da região, confeccionando um catálogo de mestres indígenas, comunidade quilombolas, mateiros da Mata Atlântica, marisqueiros, terreiros, assentamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), demonstrando a diversidade epistêmica daquele local, de maneira que esse projeto permite aos envolvidos poder ser de onde se pensa.

Também, ressalta-se a importância da efetivação do pluriverso na universidade como uma forma de inclusão de pessoas que sempre foram excluídas, que são “o resto” (Segato 2014) da lógica da modernidade, tal como os indígenas e os negros, que passam a adentrar nas universidades a partir das cotas universitárias. Nessa mesma conjuntura, a Entrevistada P1 constata que “o estudante guarani que chega no currículo da odontologia, mas não se vê contemplado em nada no currículo, daqui a pouco vai desistir. Então nós precisamos ter ao menos um contingente mínimo de docentes, mestres, professores ou pessoas que integrem, (...) em alguns momentos aquele currículo do estudante e que aos poucos aquele currículo vá se tornando um pouco mais guarani, com presenças mais efetivas desses docentes” (Entrevistada P1). Importante esclarecer que a inclusão dessas outras epistemes no currículo, além de contextualizar os alunos cotistas no ambiente da universidade, também é uma forma de ampliar o conhecimento de todos os discentes, já que quando encobre-se as epistemes não eurocentradas também nega-se conhecimento aos demais alunos que não fazem parte daquela etnia, entre eles os brancos.

Outro marcador destacado é do diálogo de saberes. No contexto da modernidade/colonialidade, apregoa-se a hierarquização do conhecimento (Grosfoguel 2008), sendo que os saberes tradicionais, sob essa perspectiva, sequer são considerados como válidos. Portanto, a partir de uma história universal, com um espírito universal, que exclui e invisibiliza as epistemes do Sul (Santos 2019), não é possível existir um diálogo interepistêmico. Quando existe algum interesse pelos saberes tradicionais, é para tratá-los como exóticos, místicos, folclóricos (Gonzalez 1988), com um diálogo hierarquizado, sempre considerando os saberes eurocentrados como superiores. Portanto, com esse sistema de classificação dos povos do mundo houve um processo de dissimulação, esquecimento e silenciamento de outras formas de conhecimento que dinamizavam outros povos e sociedades. Assim, o ambiente neutro da modernidade (Segato 2014), que é replicado na universidade, silencia os diálogos.

Portanto, o diálogo que pretende se estabelecer com saberes tradicionais, por si só já representa uma ruptura da colonialidade, tendo em vista que por excelência a modernidade é um sistema que exclui e silencia os saberes outros, ou que quando dialoga, o faz de maneira hierarquizada. Nesse momento, ao buscar sinais de diálogo de saberes no projeto Encontro de Saberes, atentou-se para um diálogo concreto, já que conforme aponta Grosfoguel (2008), para haver um efetivo diálogo entre Norte-Sul deve haver a descolonização das relações de poder, tendo em vista que se almeja um diálogo do tipo horizontal, em oposição ao diálogo vertical presente na racionalidade moderna. O autor explica que não se pode conjecturar que há uma relação de igualdade entre culturas e povos localizados nos dois polos da diferença colonial, entretanto, pode haver a imaginação de mundos que não estejam centrados na modernidade europeia (Grosfoguel 2008).

Assim, por se tratar da temática de diálogo, é exposta a questão do idioma, que foi um assunto constante nas análises feitas. Se é almejado estabelecer um diálogo com pessoas que até então estavam excluídas do ambiente universitário, é importante que as demais línguas, como as indígenas e as africanas, também sejam respeitadas. Nesse aspecto, convém demonstrar que toda a diversidade de conhecimentos e de pertencimento dos mestres foi refletida nas línguas que foram faladas nos dez anos de experiência do projeto Encontro de Saberes, pois além do português, foram pronunciados os seguintes idiomas:  a) Indígenas: Ashaninka, Mbyá, Huni Kuin, Ka'apor, Kaiowa, Kamayurá, Krenak, Krahô, Matipú, Maxacali, Pataxó, Tukano, Kubeo, Xavante, Yanomami, Yawalapiti, Ye'kuana e; b) Africanas: Iorubá, Kimbundo (Carvalho e Vianna 2020).

 Quando há a intenção de diálogo com os indígenas, pode-se constatar a dificuldade enfrentada por essas questões linguísticas. A Entrevistada M2, quando questionada sobre a maior dificuldade ao dar aula em uma universidade, disse que na sala de aula foi tranquilo, mas o problema maior foi a dificuldade com a língua, “É porque a gente que é índio não sabe falar direito (...) Aí a gente fica em dúvida que tem coisa que minha língua não dá para eu falar” (Entrevistada M2). Nesse mesmo sentido, ao analisar o material disponível na página dos Saberes Tradicionais da UFMG, na conversa entre José Jorge de Carvalho, dona Maria da Glória e Cacique Babau, esse explicou que na região da Bahia onde reside houve um êxodo escolar das pessoas da zona rural e dos indígenas, por essa questão do idioma: “(...) se não fala um português adequado são pessoas burras. Nisso as pessoas de zonas rurais começaram a abandonar as salas de aula, a sair. Por nós não falar totalmente o português, e uma hora um pouco a gente tá falando, um pouco das palavras da nossa cultura, e aí isso até ofendia os professores, né? Porque se a gente chegasse, e falasse para outro enecoema, ou chamasse nhabendicoã, pra eles era uma ofensa. Então nós foi saindo daquele espaço” (Saberes..., 2018, transcrição nossa).

Indo ao encontro da questão da linguagem como política de resistência, a entrevistada M3 menciona que esse diálogo nas universidades também é uma maneira que os indígenas têm de se defender, para que os não indígenas possam ter conhecimento das ações do seu povo na preservação ambiental. Para ela, ao estabelecer o diálogo os indígenas devem enfrentar o medo e ter coragem de confrontar as dificuldades, sendo que “com referência a essa troca, ou aprende, ou então, do contrário, a gente vai ficar sempre continuar aquela história que os europeus não contaram, não disse a verdade com referência ao que é ser índio e o que é ser não índio. Então a gente tá e nós, indígenas, temos que aprender a se preparar para enfrentar essa guerrilha, né? Porque isso aí é propriamente dito, uma guerra também contra os nossos povos indígenas” (Entrevistada M3).

Ao analisar o Encontro de Saberes, foi possível verificar que o marcador que diz respeito ao diálogo de saberes quando visto da ótica dos mestres, principalmente dos indígenas, sempre foi exposto em uma perspectiva de resistência, de intenção de demonstrar os seus saberes, de preocupação com a perpetuação de seu conhecimento. Em contrapartida, quando foram analisados os professores e estudantes envolvidos no projeto, percebeu-se que o enfoque foi outro, predominantemente na instituição e no conhecimento, com a preocupação do diálogo com outras epistemes.

Assim, percebe-se nesse marcador a reflexão de como a universidade, que possui um conhecimento hierarquizado, norte-eurocentrado, vai dialogar com outros saberes que são marcados pela sensibilidade e encantamento de mundo. Nesse sentido, Carvalho (2018a) questiona, por exemplo, como pode ocorrer o diálogo com pajés, sobre os conceitos de corpo, alma e espírito, se a nossa concepção eurocentrada é fundamentada nas áreas de Educação Física, Biologia e Medicina? O autor explica que nenhuma disciplina acadêmica isolada pode proporcionar um diálogo satisfatório, motivo pelo qual a presença dos mestres acabará proporcionando um rearranjo dos saberes, com novas formas de proposições teóricas, com a transdisciplinaridade dos saberes, a partir do diálogo interepistêmico no ensino e na pesquisa, com a ruptura do modelo vigente, em que os saberes são segmentados e compartimentados.

Para ilustrar a maneira como o projeto trata a transdisciplinaridade, Carvalho (2018a) cita o exemplo da mestra Lucely Pio, que participou do projeto no módulo plantas medicinais tanto na UnB, quanto na UFMG. Esse módulo, a princípio, estabelece conexões com a área da Farmácia, tendo em vista que a mestra é líder da Articulação Pacari das Raizeiras do Cerrado e está escrevendo um livro sobre as propriedades de seis plantas. Para se ter uma dimensão dos saberes da mestra, sua intenção é escrever sobre cem plantas, sendo que no horto de sua comunidade a mestra cultiva quatrocentas e cinquenta plantas nativas e conhece as propriedades medicinais de cada uma delas. Para a mestra, o poder curativo das plantas não está presente no princípio ativo, isolado, inorgânico, que pode ser produzido em laboratório, mas sim, na planta considerada como um todo, como um ser vivo sensível, que pode inclusive aumentar ou diminuir seu potencial curativo por causa de determinadas condições específicas, como haver alguma planta considerada amiga ao seu redor. Nesse contexto, a cura possui outros significados, que poderiam interagir com a Psicologia, por exemplo, já que as plantas podem ser consideradas como uma espécie de terapeuta. Trata-se, obviamente, de outra epistemologia, com a qual pode-se questionar a grade disciplinar das universidades e o próprio caráter monoepistêmico atual. Portanto, se o saber é algo da ordem do sujeito, o encontro de diversos sujeitos enriquece a produção dos saberes (Carvalho 2018a).

No que se refere ao marcador das relações sujeitos-saberes, é possível observar que há três percepções características desse marcador que se contrapõem à lógica da ciência moderna: a relação não extrativista; a mudança da condição de objeto de pesquisa e as alianças, ou um engajamento entre os sujeitos de pesquisa.

No sistema universitário moderno, utiliza-se o que Freire (1987) denominou modelo de educação bancária, em que existe “uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber” (1987, 38), consequentemente, a partir dessa relação constata-se que o “Saber que deixa de ser de ‘experiência feito’ para ser de experiência narrada ou transmitida” (Ídem).

Carvalho (2010) faz uma comparação entre o projeto Encontro de Saberes com a revolução pensada por Paulo Freire. O autor explica que Freire considerava que as pessoas não eram alfabetizadas a partir de uma tábua rasa, mas que elas possuíam experiências e consciência que deveriam ser ativadas no processo de alfabetização. O processo de aprendizagem de Freire visava a alfabetização básica, enquanto o projeto Encontro de Saberes está vinculado ao ensino superior, mas apesar dessa diferença, os dois movimentos podem ser considerados paralelos e complementares, tendo em vista que ambos valorizam os conhecimentos existentes sem ser necessariamente aqueles formais ou ditos científicos. Ainda, pode-se mencionar a complementariedade pelo fato que os mesmos analfabetos têm a possibilidade de aprender a escrever com a técnica de Freire, também podem ser mestres e adentrar a universidade ensinando, a partir do projeto Encontro de Saberes.

Em oposição ao modelo de educação bancária descrito por Freire, pode-se verificar no Projeto Encontro de Saberes os conceitos de Santos (2019) ao defender que a pluriversidade precisa ser pensada com as epistemologias do Sul, utilizando a metodologia colaborativa não extrativista, a partir da a ideia do “conhecer com”, e não “conhecer sobre” (Santos 2019).

Nesse sentido, verificou-se que o Encontro de Saberes não é um projeto acabado, com todas as respostas ou fórmulas prontas. Ficou muito evidente nos diálogos com os entrevistados P1, P2 e P4 que o projeto é algo que vem sendo pensado e construído com a coletividade, a partir de realidades regionais distintas. Também, evidenciou-se na “Exposição dos cinco anos do Encontro de Saberes da UFRGS” esse aspecto de construção coletiva, do “conhecer com” (Santos 2019), a partir da forma em que as experiências do projeto foram narradas nos vídeos e nas imagens e, também, com os subtítulos da exposição: “Fazendo junto”, “ouvindo junto”; “cantando junto”; “dançando junto”; “construindo junto”, “caminhando junto”; “plantando junto”; “tocando junto”; “observando junto”; “sorrindo junto”, “sonhando junto”, (UFRGS 2021) observa-se, portanto, o Encontro de Saberes como ensino que “aponta transformações e práticas comunitaristas de construção do saber. Trata-se de FAZER JUNTO” (UFRGS 2021).

Outro ponto a destacar do marcador na relação sujeito-saberes é que   perspectivas modernas utilizam-se metodologias extrativistas, que são direcionadas para extrair conhecimentos, sendo que a informação relevante é fornecida por objetos, sejam esses objetos humanos ou não-humanos. Assim, a extração é unilateral, de maneira que "os que extraem nunca são extraídos, por assim dizer; pelo contrário, controlam o processo extrativo. A extração pode ser intensiva ou extensiva, mas parte sempre do princípio de que as fontes de extração estão disponíveis até a sua completa exaustão" (Santos 2019, 191).

Por sua vez, para haver a descolonização dessas metodologias, é preciso que os processos que produzem conhecimentos aceitáveis e confiáveis sejam realizados de maneira não-extrativista, a partir da cooperação entre sujeitos de saber, ou seja, entre sujeito/objeto. Assim, com as epistemologias do Sul, existe a seguinte imaginação epistemológica: "Imaginar sujeitos onde as epistemologias do Norte apenas veem objetos. (...) Imaginar que os saberes ausentes significam provavelmente lutas sociais que efetivamente tiveram lugar, mas das quais não há vestígios nas histórias canônicas" (Santos 2019, 188). Logo, pode-se visualizar essa metodologia não extrativista no Encontro de Saberes, tanto pela valorização do conhecimento dos mestres, quanto pela valorização dos próprios mestres e suas causas.

Desse modo, entende-se que com as Epistemologias do Sul existe o intuito de reconhecimento dos saberes que vêm das lutas sociais, mas além disso, “o objetivo é promover partilhas e diálogos com outras experiências e outros conhecimentos, visando identificar afinidades e potencializar a solidariedade ativa” (Santos 2019, 121-2).

A construção de alianças foi mencionada pela Entrevistada P1, que ressaltou o que para ela é um dos aspectos mais importantes do Encontro de Saberes: o fato de trazer os mestres e as epistemologias para a universidade, com seus conhecimentos, suas metodologias, de maneira que os envolvidos do projeto estão na presença dos mestres mente com mente, coração com coração, olhar com olhar, motivos pelos quais a presença dos mestres é o fator fundamental. Ela afirma existir a intenção de que os estudantes tenham postura de escuta específica, escuta engajada, com interculturalidade crítica, não com qualquer interculturalidade e exemplifica que se o aluno não é guarani e está com o mestre guarani, haverá a escuta, que será interessante pois o aluno vai conhecer algo novo, entretanto, a pretensão do projeto não é apenas essa, mas sim que haja a escuta engajada, de uma interculturalidade crítica, com comprometimento. Assim, cria-se uma aliança, um compromisso com aquele saber, com aquela pessoa (Entrevistada P1).

A partir dessa entrevista, fica evidente uma concepção teórica da pedagogia engajada, de hooks (2013) que explica a importância de práticas pedagógicas que dialogam com questões étnico-raciais e de gênero, considerando a educação como uma prática libertadora. Com a pedagogia engajada, alunos e professores precisam pensar criticamente e dedicar-se à práxis pedagógica, para a formação de uma comunidade de aprendizagem. Além disso, a pedagogia engajada é “uma expressão de ativismo político”, já que se contrapõe à noção universal de experiências e pensamentos. Portanto, essa pedagogia manifesta a preocupação com o bem estar do outro e possui como objetivo compromisso na autoavaliação dos educadores impactando seus processos educativos (hooks 2013). Ou seja, com essa escuta engajada dos envolvidos no projeto Encontro de Saberes o propósito é ir além do aprendizado, com a compreensão e sensibilização com os povos tradicionais e as suas causas.  

 

Considerações finais

O objetivo aqui foi analisar o projeto Encontro de Saberes como uma experiência que utiliza o diálogo de saberes para a busca do pluriverso e da descolonização da universidade. Para tanto, como estratégia metodológica usamos marcadores de colonialidade e decolonialidade.

Dessa forma, destacamos os marcadores desigualdades de conhecimento, diálogo de saberes e relações sujeitos-saberes, que demonstram perspectivas distintas das que são observadas no modelo hegemônico vigente, da colonialidade do saber e do poder. Enquanto no modelo de universidade moderna/colonial apregoa-se a universalidade do conhecimento, o projeto Encontro de Saberes pode ser considerado um meio de busca de pluriversidade. Também, tendo em vista um padrão de ciência norte-eurocentrado, vislumbra-se que o projeto dá possibilidade de saberes locais serem ministrados na academia. Por fim, ao invés de um saber hierarquizado, o Encontro de Saberes possibilita um diálogo interepistêmico.

Isso posto, observa-se que o Encontro de Saberes é uma maneira viável de superar a herança da colonialidade do saber e do saber monoepistêmico da universidade. Portanto, trata-se de um projeto que pode ser considerado como um meio para a descolonização da universidade, tornando-a um ambiente de pluriversidade, com o respeito à coexistência dos diferentes e de diálogos interepistêmicos.

 

 

Referências

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Notas

[1] As entrevistas foram submetidas e aprovadas pelo Comitê de Ética em Pesquisa, da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (sob o Certificado de Apresentação de Apreciação Ética – CAAE nº 60033822.8.0000.0177)

[2] O termo sul nesse contexto não diz respeito à localização geográfica, mas sim à produção geopolítica do conhecimento. Assim, o sul epistemológico refere-se a todas as epistemes nascidas da oposição ao capitalismo, ao colonialismo e ao patriarcado, independentemente de sua posição geográfica. As Epistemologias do Sul valorizam as diferenças, aquelas que ficam após a eliminação das hierarquias de poder, e pretendem resgatar aqueles saberes que foram inferiorizados e silenciados (Santos 2019).

[3]  Conteúdo da aula da disciplina “Tópicos Especiais em Antropologia das Sociedades Complexas - Interculturalidade, Descolonização Epistêmica e Encontro de Saberes”, do PPGAS, da UnB, ministrado pelo professor José Jorge de Carvalho, no dia 20.06.2022.

 

 

 

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