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Currículos de História, Identidades e Identificações. a América Latina nas Diferentes Versões da Base Nacional Comum Curricular Brasileira
Currículos de Historia, Identidades e Identificaciones: América Latina en diferentes versiones de la base curricular nacional común brasileña
History Curricula, Identities and Recognition: Brazilian Common National Curriculum Basis Versions
Revista nuestrAmérica, vol. 10, núm. 19, e6062976, 2022
Ediciones nuestrAmérica desde Abajo

Artículos libres

Esta obra podrá ser distribuida y utilizada libremente en medios físicos y/o digitales. La versión de distribución permitida es la publicada por Revista nuestrAmérica (post print). Su utilización para cualquier tipo de uso comercial queda estrictamente prohibida

Recepción: 10 Agosto 2021

Aprobación: 10 Febrero 2022

Publicación: 13 Febrero 2022

Resumo: O artigo apresenta uma investigação incipiente sobre a presença da América Latina como objeto de prescrição curricular durante a produção e discussão das versões da Base Nacional Comum Curricular (BNCC 2015-2017) no Brasil. Procurou-se analisar, em um estudo comparativo, o espaço ocupado, o lugar onde foi inserida e a maneira como foi tratada a América Latina nas diferentes versões da base. Como chave interpretativa, tomou-se por referência a discussão sobre as identidades, afetos e identificações na sua relação com as funções políticas, psíquicas, terapêuticas e sociais do pensamento histórico e da consciência histórica. Constatou-se, especialmente, que as disputas e variações presentes nas diferentes versões do documento iluminam valores e substratos mais profundos da própria composição do código disciplinar da História brasileiro. Por fim, o artigo defende que a busca por identificação com os demais povos que compõem a América Latina é imperativa como um projeto de resistência e re-existência para o ensino de História, a escolarização pública e a sociedade brasileira como um todo.

Palavras-chave: ensino de história, currículo, BNCC, América Latina, decolonialidade.

Resumen: El artículo presenta una incipiente investigación sobre la presencia de América Latina como objeto de prescripción curricular durante la producción y discusión de versiones del Currículo Base Común Nacional (BNCC 2015-2017) en Brasil. Intentamos analizar, en un estudio comparativo, el espacio ocupado, el lugar donde se insertó y la forma en que se trató a América Latina en las diferentes versiones de la base. Como clave interpretativa, se tomó como referencia la discusión sobre identidades, afectos e identificaciones en su relación con las funciones políticas, psíquicas, terapéuticas y sociales del pensamiento histórico y la conciencia histórica. Se encontró, especialmente, que las disputas y variaciones presentes en las diferentes versiones del documento iluminan valores y sustratos más profundos de la composición del código disciplinario de la Historia brasileña. Finalmente, el artículo sostiene que la búsqueda de la identificación con los otros pueblos que componen América Latina es imperativa como proyecto de resistencia y re-existencia para la enseñanza de la Historia, la educación pública y la sociedad brasileña en su conjunto.

Palabras clave: enseñanza de la historia, curriculum, BNCC, Latinoamérica, decolonialidad,.

Abstract: This paper presents an incipient investigation on the presence of Latin America as an object of curricular prescription during the production and discussion of the Base Nacional Comum Curricular (BNCC 2015-2017) versions. This paper also analyzes, in a comparative study, the space occupied by Latin America, as well as the place where it was inserted and the way it was approached in the different versions of the BNCC. Discussions on identities, affections and recognition in regard to their political, psychological, therapeutic and social functions of historical thinking and historical consciousness were used to build a frame of reference and an interpretative key for the research. It was notably found that the disputes and variations present in different versions of the aforementioned document shine light upon underlying principles and fundamentals of the Brazilian History disciplinary code’s composition. Lastly, this paper states that the search for recognizing Brazilian peoples as part of the rest of the peoples that make up Latin America is mandatory as a project of resistance and re-existence for History teaching, public education and Brazilian society as a whole.

Keywords: history teaching, curriculum, BNCC, Latin America, decoloniality.

Introdução

O contexto político brasileiro e mundial, dos últimos 5 ou 6 anos[1], tem provocado um torvelinho de sensações em toda a sociedade brasileira, especialmente aos professores, dentre estes, talvez com mais intensidade, os professores de História: medo, vulnerabilidade, falta de perspectiva e de sentido em relação a uma realidade que atropela, tolhe iniciativas, desafia possibilidades de orientação, de projeção de um horizonte plausível. Disputas em torno de um projeto de sociedade não são novidade, mas se intensificou a percepção de uma reação articulada muito mais forte, visível e violenta por parte de grupos poderosos que se opõem à ampliação de direitos humanos, sociais e trabalhistas que se vislumbrava anteriormente como perspectiva de um futuro, senão próximo, ao menos realizável no tempo concreto da vida humana.

Além desta busca deliberada por paralisar e retroagir a democracia, vive-se uma tentativa de instaurar um caos propositado, marcado por um profundo desprezo pela res publica, pela confusão deliberada com o uso de tecnologias novas – do dizer e do desdizer – na negação dos resultados das investigações baseadas em procedimentos científicos e processos de repressão e vigilância da atividade docente, a partir de posicionamentos moralistas que negam que os valores humanos sejam situados histórica e culturalmente, e, portanto, possam ser discutidos coletivamente, inclusive nas escolas. No meio deste vendaval, debates educacionais intensos: Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNCFP), Reforma do Ensino Médio, proibição da discussão sobre gênero nas escolas, aulas remotas provocadas por uma pandemia, recorrentemente negada pelo governo nacional, e uma tensão interna grande provocada pela discussão da Base Nacional Comum Curricular, há 4 anos, que ainda deixa sequelas e consequências (BNCCs estaduais) no campo do ensino escolar de História e da formação docente.

Sigmund Freud publicou, em 1919, um curto texto intitulado Das Unheimliche (2016). O título poderia ser traduzido por ‘o inquietante’, ‘o angustiante’, mas, talvez, a melhor expressão seja ‘o estranho-familiar’. Heimlich significa o familiar, o doméstico - um local livre de fantasmas. Unheimliche pode ser ligado, então, a algo oculto, dissimulado, enfim aquilo que deveria ter permanecido oculto, mas veio à tona, apareceu. É um pouco assustador, mas também não é algo que não se reconheça.

A partir de um recorte específico – e, ao nosso ver, fundamental -, o lugar ocupado pela América Latina nas diferentes versões da BNCC (História), este artigo interpreta que situações como estas vividas recentemente fazem emergir valores e substratos mais profundos da própria composição e formação da sociedade brasileira[2] e, também, no campo específico, do código disciplinar da História (CUESTA Fernández 1997) – estranhos-familiares - que, talvez, não viriam à tona – ou não ficassem tão explícitos - em tempos de calmaria.

Na batalha em torno do ensino escolar de História, o posicionamento dos historiadores revelou o quanto a tradição pesa, na solidez e solidificação das cátedras que lutam por definir e perpetuar os tais ‘conteúdos’ disciplinares. Não nos parece, então, apenas uma guerra de narrativas ilusória[3] que a apropriação do famoso texto de Laville (1999) como chave interpretativa poderia fazer parecer. Ao contrário, estes embates são extremamente reveladores e importantes para entender os interesses e visões envolvidos no campo da escolarização de maneira mais ampla. No mínimo, os confrontos demonstram quanto os historiadores estão, eles mesmos, imersos em uma cultura histórica.

Enfim, quando o ímpeto controlador que regeu parte dos propósitos da BNCC avança seus tentáculos sobre programas fundamentais, como o PNLD (ver Franco, Silva Jr. e Guimarães 2018), e sobre as licenciaturas (BNCFP), numa compreensão instrumental da formação docente, refletir sobre currículo de História, aprendizagem histórica e escolarização faz-se atividade fundamental de resistência propositiva. Sobretudo, quando a política formal e, notadamente, a justiça dos Estados Nacionais já se mostram débeis, a construção de transnacionalidades e solidariedades políticas para além das fronteiras estabelecidas pelo projeto moderno emerge como imperativo de sobrevivência para qualquer um que pense a educação como um projeto coletivo.

Currículos, narrativas e BNCC

Concepções críticas a respeito do currículo foram construídas e divulgadas desde os anos 1970. Desde então compreende-se este artefato da cultura escolar como uma política cultural profundamente envolvida em disputas de poder. A construção de um currículo é sempre um processo social onde operam tradições, concepções educacionais e os mais diversos interesses, do controle social à emancipação humana. Isso faz com que o conhecimento corporificado no currículo seja tanto o resultado de relações de poder quanto algo que constitui estas mesmas relações (Moreira e Silva 2008).

A possibilidade de um currículo integrado, em um país com uma extensão territorial gigantesca e, portanto, uma diversidade sociocultural imensa, é uma discussão de longa data entre educadores e políticos brasileiros. Na maior parte do tempo do processo de implantação de um sistema educacional nacional predominou a ideia de que a função da definição final dos currículos era atribuição dos estados que compunham a federação. A possibilidade de uma base comum, no entanto, era demanda tanto de um desejo de controle e aferição maior do sistema nacional como de uma busca por diminuir as desigualdades entre os sistemas das unidades federativas.

O processo de elaboração da BNCC foi, portanto, como não poderia deixar de ser, permeado por disputas intensas. Destacou-se a atuação, muito articulada, do Movimento pela Base, com preponderância do que se convencionou chamar de reformadores empresariais da educação que, ao se apropriar das teorias de aprendizagem (ressignificadas a partir da expressão “direitos de aprendizagem”), propugnavam por uma concepção em torno da qualificação do capital humano, vinculando a proposição à necessidade de avaliações externas que afeririam o nível de eficácia do sistema educacional brasileiro[4]. Não é preciso grande esforço para perceber que, direta ou indiretamente, esta concepção serviria de instrumento de controle, de padronização da construção cotidiana da ação pedagógica docente.

Mesmo reconhecendo os ganhos que a perspectiva da “aprendizagem” (em relação a compreensões anteriores em torno do “ensino”) traz para a relação educativa, o educador holandês Gert Biesta (2017), enfatiza que certas apropriações destas teorias acabaram culminando em uma descrição do processo da educação como uma transação econômica. Seria necessário atender às necessidades dos aprendentes, através de processos facilitadores, “amigáveis”. Entre este aprendente-consumidor e o professor-provedor podem ser propostas somente questões técnicas sobre a eficiência e a eficácia da relação educativa[5]. Neste sentido, o conteúdo sistematizado pela prescrição curricular torna-se algo inquestionável a ser consumido pelo aprendente numa revitalização da velha “educação bancária” detectada por Paulo Freire há mais de 50 anos.

Se olharmos atentamente para a aprendizagem da história como “constituição do sentido da experiência do tempo” (Rüsen 2010, 43), verificamos que a disciplina escolar de História - mesmo levando em conta as vertentes mais tradicionais ou conservadoras - não se encaixa muito bem neste projeto de educação como negócio que requer uma aprendizagem aferível e quantificável por testes de múltipla escolha. Contudo, a retórica da aprendizagem só pode acontecer se há uma concepção de conteúdo escolar estabilizada como tradição. O problema se agrava quando uma parte da comunidade historiadora – e, portanto, formadora dos docentes da Educação Básica –, que debateu a BNCC, reforça esta concepção de “conhecimento como uma coisa, como um conjunto de informações e materiais inertes” (Moreira e Silva 2008), portanto a ser consumida.

O debate da BNCC no campo interno dos historiadores tomou por base uma concepção dos conteúdos históricos escolares como evidências naturais advindas de uma estruturação curricular tradicional recente conhecida como “história integrada”. Oscilando ao longo do tempo no trato em separado de uma História do Brasil, uma História da América e uma História Geral ou da Civilização, a História Integrada estabilizou-se e tornou-se hegemônica a partir dos livros didáticos (os “currículos editados” – Escolano Benito 2006) em meados dos anos 1990. Nela, uma perspectiva temporal linear e progressiva propõe tratar de “toda a história humana” no Ensino Fundamental, repetindo a mesma proposição para o Ensino Médio[6].

É da própria constituição das culturas escolares certa entificação dos conteúdos de ensino. Eles são “apresentados como se significassem um corpo inamovível de conhecimentos, que coincidiria exatamente com o acervo cultural historicamente acumulado pela humanidade” (Boto 2010, 38), como se constituíssem a “essência de uma tradição a ser perfilhada” (Id., 39). Na prática, a história integrada (do currículo editado), reforçou o núcleo canônico de uma narrativa-mestra gestada no século XIX, e, por conseguinte, o eurocentrismo, pois as outras histórias entram como um aparte de uma linha evolutiva conduzida e culminada pela Europa, consolidando os dois principais mitos fundacionais identificados por Quijano:

[...] um, a idéia-imagem da história da civilização humana como uma trajetória que parte de um estado de natureza e culmina na Europa. E dois, outorgar sentido às diferenças entre Europa e não-Europa como diferenças de natureza (racial) e não de história do poder (2005, 122).

Esta história faz os demais povos colonizados confundirem – não a “história da Europa”, mas - a história desejada pela Europa com a história da humanidade. É evidente que esta narrativa, longe de ser natural, é uma concepção construída e didatizada para ser divulgada. A história única, com validade universal, consolida o auge do imperialismo. Caberia ao ensino escolar oferecer esta memória histórica razoavelmente organizada, também aos países colonizados, solidificando uma identidade subalterna, ainda que sob a perspectiva do orgulho nacional[7]. Neste tempo colonizado (Moreno 2019c), conceitos e períodos históricos são substantivados como marcos da história humana. ‘O’ Renascimento, ‘A’ Reforma religiosa, ‘A’ Revolução Francesa são expressões que indicam passados universais decorrentes desta concepção.

O tempo colonizado, que estabeleceu europeidade como sinônimo de modernidade (e seus atributos positivos relacionados à racionalidade) - uma espécie de natureza (raça) europeia superior, expressa e consolidada através deste mesmo tempo único –, é difundido a partir do novo projeto identitário dos Estados-nação por uma socialização coercitiva em instituições como as escolas ou as forças armadas. Estabelecendo-se como uma espécie de segunda natureza (Elias 1994), tornando-se tão invisível e fundamental como o ar que se respira, a narrativa-mestra hegemônica acaba sendo determinante para os laços sociais, as aspirações coletivas e as limitações de projetos de autonomia estabelecidos dentro dos Estados-nação.

A comissão elaboradora da primeira versão da BNCC História resolveu subverter esta ordem[8]. Por um lado, os pesquisadores do ensino de História, responsáveis pela elaboração, aceitavam, diretamente ou com resistências e debates internos, as regras do jogo e a pressão pelos “direitos de aprendizagem”. Por outro lado, com ousadia na leitura das carências de orientação da sociedade brasileira, tentavam romper com um modelo curricular de história sedimentado em longo prazo.

O cerne da nova proposta pode ser lido como uma tentativa de cumprimento mais efetivo da lei 11.645/08 (história e cultura afro-brasileira e indígena), dando destaque a outras matrizes identitárias para além da já consolidada narrativa-mestra. Propunha-se, assim, “um rompimento com a gramática da temporalidade” (Cerri e Costa 2019) imaginada no século XIX. O escasso tempo de elaboração e, posteriormente, para a própria equipe explicar a sua concepção deixou expostas lacunas e inconsistências do documento, ainda que a equipe elaboradora as assumisse, argumentando tratar-se de uma versão preliminar.

Contudo, o texto não foi lido como eles, os autores da primeira versão, esperavam: uma tentativa, um ensaio, algo ainda a ser esculpido, burilado, uma ‘primeira versão’. Ao contrário, seus contendores a viram como um ataque visceral ao que representava uma tradição, sua própria sobrevivência, o financiamento de seus projetos, sua justificativa de existir. Neste caminho, não houve diálogo, como não haveria de existir na macropolítica brasileira, a partir de então.

Externamente, o crescimento dos discursos conservadores autoritários já estava visível neste momento e as oposições ao documento da primeira versão foram extremamente agressivas, mas eram previsíveis. O nosso Unheimliche se deu no campo interno da comunidade historiadora[9]. Depois de identificar e criticar o objetivo confesso nacionalista / patriótico da historiografia dos finais dos oitocentos e início do século XX, a questão das identidades - na verdade a discussão de qualquer objetivo formador que não seja o de transmitir “a história verdadeira” – é abandonado por grande parte dos historiadores de cátedra[10]. Foram as dimensões axiológica e política do currículo - melhor dizendo, do ensino escolar da História - que a parte da comunidade historiadora, que se manifestou durante o debate da BNCC, não conseguiu aceitar[11].

Durante o debate, a manifestação dos historiadores de cátedra se deu para reestabelecer a linha temporal e as áreas abrangidas pelas cátedras. Nenhuma referência foi feita em relação à produção acadêmica sobre ensino de História; pesquisas, investigações, debates foram sumariamente ignorados. O saber presumido – ‘pesquiso História, sei sobre ensino de História’ –, uma das formas mais antigas de negação da ciência, foi amplamente mobilizado:

La sin-ceremonia con que se ignoró la enseñanza de la historia como campo de investigación, de producción de conocimiento y de acumulación de discusión de políticas públicas por tantos polemistas es un síntoma preocupante de que el campo no es reconocido por amplios contingentes de historiadores “stricto “sensu”, quizá la mayoría (Cerri e Costa 2019, 87).

Através de uma retórica que estabeleceu a perda, a falta, como centro do debate, os historiadores, sem sugerir formas de organização alternativas, reivindicavam a reposição da narrativa-mestra, as cátedras quadripartites e, portanto, o tempo colonizado como um bem comum a ser defendido em meio às disputas que se travavam.

Pouco se discutiu sobre o trabalho docente, que foi representado a partir da concepção de uma transposição didática entendida da maneira mais simples possível. Mais ainda, as necessidades de uma sociedade com a mais profunda desigualdade do planeta, a divisão social do trabalho e os laços sociais a serem construídos como possibilidades de significação para o ensino de História não estiveram em pauta no debate interno da Base Nacional de História.

Identidades, Identificações: a América Latina como projeto

Nossas afinidades e aversões também são construídas socialmente. A própria estrutura de nossa subjetividade, a construção de uma leitura sobre quem somos é inteiramente social. Vladimir Safatle (2019), em uma potente argumentação, considera que, além de leis, de racionalidades, uma sociedade é formada por um circuito de afetos[12]. Estes afetos - que neste artigo também entendemos como identificações - estão intrinsecamente ligados às nossas solidariedades sociais. O regime de historicidade moderno e sua narrativa-mestra têm um impacto sobre nossa rede de solidariedades. Nossos medos, nossos critérios de humanidade – especialmente nas sociedades colonizadas - estabelecem que uns podem ser mais humanos que outros. Então, estes afetos estruturais comandam nossas sensibilidades, nosso regime de visibilidade, o que é possível de enxergar ou não (id.).

Pensar os afetos e as identificações é fator essencial da reflexão sobre as funções políticas, psíquicas, terapêuticas e sociais do pensamento histórico e da consciência histórica. Afetividade, desenvolvimento moral e cognição caminham juntos na aprendizagem histórica dentro e fora das escolas (Moreno 2014). Toda seleção de conteúdo histórico curricular, seja na Educação Básica ou na Educação Superior, é uma escolha de identificações possíveis. Manoel Salgado Guimarães destaca a dimensão evocativa como matriz para a realização do trabalho do historiador. Trazendo o passado para o presente, os atos de evocação “assumem a dimensão de atos instituintes, condição de possibilidade, fundamentando as ações humanas” (Guimarães 2007, 29). É o presente que estabelece significação e vitalidade para o passado tornando-lhe uma força criativa.

Especialmente no caso do ensino escolar de História, a consciência de que evocamos novos personagens, objetos e temas para dialogar com memórias (narrativas) já povoadas se faz essencial para entender os desafios enfrentados. Este é o caso de afecções pejorativas em relação à América Latina, constantemente retroalimentadas na mídia hegemônica em uma mescla de desprezo político, folclorização como arremedo estético e profundo desconhecimento sobre as estruturas sociais e as culturas e lutas populares. Talvez não seja por acaso que jovens brasileiros se identifiquem mais com seus colonizadores que com seus vizinhos, as demais culturas que compartilham o território do mesmo continente (Cerri 2016; Cerri e Barom, 2018; Moreno e Cruz, 2020).

Grande parte dos pesquisadores tem apontado lacunas significativas em relação ao ensino escolar de História da América Latina[13]. Esta situação decorre especialmente pela ligação inicial entre projeto identitário nacional, historiografia e ensino escolar. O modelo de Estado-nação era um modelo europeizante e os processos de construção deste discurso identitário (Moreno 2014a; 2014b;) seguiram, com algumas nuances, os passos dos colonialismos internos por parte da elite criolla no Brasil e nos demais países do continente.

O lugar da História da América nos currículos e nos livros didáticos (currículos editados) oscilou ao longo do tempo. Até a década de 1930 predominou a diluição de seus conteúdos em uma história universal ou da civilização, embora haja sempre a referência da honrosa exceção do livro de Rocha Pombo, escrito para uso das Escolas Normais em 1900 e reeditado em 1925. Ainda que na reforma Francisco Campos (1931) haja menções importantes, no programa de História, à História da América, trabalhada juntamente com a História do Brasil, será na década de 1950 que a América ganhará status de disciplina (ocupando todo o segundo ano ginasial) separada da História do Brasil e da História Geral. Este posicionamento é fruto do panamericanismo e do necessário alinhamento da América Latina ao novo bloco liderado pelos Estados Unidos durante a Guerra Fria.

Após um breve interregno durante a ditadura militar, a disciplina História da América ressurge nos finais dos anos 1970, no estado de São Paulo, já no contexto da abertura política e do exercício da resistência democrática. Neste momento há uma ênfase política na América Latina como perspectiva identitária. Um pouco mais tarde, a mesma equipe de São Paulo lançará a Coletânea de Documentos de História da América para o 2º grau – 1ª série (1983). Dentro desta perspectiva, a história latino-americana conhece um boom editorial nos anos 1980 marcado pelo grande sucesso da obra As Veias Abertas da América Latina do jornalista uruguaio Eduardo Galeano, de livros didáticos de História da América com razoável vendagem e os famosos paradidáticos, utilizados com muita frequência como referência para as aulas de história, como A Visão dos Vencidos de Miguel León-Portilla ou a Guerra do Paraguai de Julio Chiavenatto.

Um amálgama de referências norteava estes projetos dos anos 1980, desde as teorias do subdesenvolvimento e da dependência, o terceiro-mundismo e a retomada de uma tradição lascasiana de um olhar sobre a população indígena como vítima do violento processo de colonização europeu. Extremamente criticada pela historiografia acadêmica por certo reducionismo, esta perspectiva teve indispensável importância (e, a depender de melhores investigações, talvez ainda tenha) na aproximação de temas, similitudes e identificações de processos históricos numa perspectiva que tentava ir além dos limites circunscritos da dicotomia nacional x universal como única fonte e guia para a organização dos tempos históricos escolares.

Não obstante estivesse presente nas prescrições diluídas nos eixos temáticos dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), a ascensão da história integrada diminui drasticamente o espaço da América Latina no contexto escolar e suas produções correlatas a partir de meados dos anos 1990. Esta situação torna-se bastante contraditória, pois o período coincide com as discussões avançadas sobre aproximações no Ensino de História e Geografia no Setor Educacional do Mercosul com a realização dos Seminários Bienais de Enseñanza de la História y Geografia em el contexto del Mercosul entre 1997 e 2004. Concretamente, as políticas públicas que podem ser consideradas passos mais decisivos nesta aproximação foram a obrigatoriedade da oferta da língua espanhola no Ensino Médio, aprovada em 2005 e a criação da UNILA (Universidade Federal da Integração Latino-Americana), em 2010.

Mais recentemente, os estudos decoloniais têm sido fator decisivo para a retomada das reflexões sobre um projeto identitário a partir de memórias insurgentes dos movimentos populares latino-americanos. Um repensar da (re)existência dos povos originários e suas experiências às margens da colonialidade é posto em contraponto à imagem distorcida que o espelho eurocêntrico sempre estendeu aos latino-americanos. É assim que a “terra madura”, a Abya-Yala, termo oriundo do povo Kuna, é evocada como representação alternativa do continente.

Decorre de todo esse processo que a busca por identificação latino-americana no Ensino de História tem que ser entendida dentro do campo da luta política (como qualquer outro conteúdo histórico escolar), nas perspectivas que Manuel Castells (1999) caracteriza como identidade de resistência e identidade de projeto, uma construção que envolve embates, princípios e perspectivas de futuro. Não se ensina História no vácuo, mas dentro de uma sociedade com atores, sujeitos sociais inseridos em conjunturas específicas de desigualdades econômicas e de poder.

A aprendizagem histórica é permeada por processos de identificação através dos quais é possível reconhecer a humanidade no e do outro. Quando Rüsen (2015) fala em universais antropológicos é por que ninguém é outro em humanidade. O processo dialético entre aprendizagem da história e aumento da subjetividade e da intersubjetividade se dá também quando o sujeito se entende como fruto de uma construção social e cultural de longo prazo, aprimorando o autoconhecimento, e, assim, necessariamente aumentando o conhecimento sobre o outro que passa a não ser tão outro. Não pela transformação do outro no mesmo – mas em um mesmo, ainda que diferente, mas igual em humanidade, em fragilidades e em potencialidades.

Compreende-se, assim, que a identidade latino-americana é uma escolha política como foi a identidade nacional. Para esta última, um investimento escolar de longo prazo a construiu, constituiu e alinhavou. Ao contrário da tendência homogeneizadora que foi o projeto de identidade nacional, tem-se a oportunidade, atualmente, de construir identificações muito mais plurais. As populações latino-americanas não precisam ser narradas a partir de uma história só. São múltiplas histórias, pluriversais que se inter-relacionam.

Não se trata, portanto, de propugnar por uma identidade latino-americana, mas por possibilidades de identificação, de desigualdades, sofrimentos, resistências, conhecimentos e potencialidades que podem ser partilhados, pela construção de projetos em comum. Para este fim, é preciso outras periodizações e objetos que não sejam apenas da macropolítica do Estado-Nação para onde convergiram as historiografias tradicionais. É uma outra história e não a mesma com sinais invertidos. Para que esta nova imaginação social se torne possível, é preciso evocar as culturas populares e os movimentos sociais. Outros sujeitos e saberes têm que ser incluídos na narrativa escolar.

A América Latina nas diferentes versões da BNCC

Apresentamos aqui uma primeira tentativa exploratória de entender o espaço ocupado pela América Latina, o lugar onde foi inserida e a maneira como foi tratada nas diferentes versões da BNCC. Ainda que seja uma leitura restrita[14] - porque neste momento isola-se, parcialmente, o conteúdo disciplinar do contexto (a base como um todo / os objetivos do nível de ensino / os objetivos da área de ciências humanas / todas as demais questões, múltiplas e complexas, que envolvem a aprendizagem escolar da História) – pensamos que esta abordagem pode iluminar um pouco dos dilemas e enfrentamentos da produção do currículo nas suas concepções pragmática e identitária. Neste momento concentramos a análise nos anos finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio, campos de atuação dos graduados em História e de exercício de uma cultura escolar especificamente disciplinar no Brasil.

A ousada ‘primeira versão’, lançada em 2015, caracterizava-se por um recorte temático-cronológico dos conteúdos histórico-escolares, não se propondo, em nenhum momento, a abranger todo o tempo linear com uma única história. Assim, as séries finais do Ensino Fundamental dedicavam-se ao estudo da História do Brasil, um recorte plausível que se propunha a enfrentar dois problemas sérios da tradição da História Integrada. O primeiro, e mais óbvio, trata-se de excesso de prescrição curricular – toda a história dos seres humanos (a história do mundo, imaginada pelos europeus do século XIX), juntando com a tradição das histórias periféricas da América e do Brasil – para adolescentes / jovens de 11 a 14 anos, das mais diversas realidades do país, com duas a três aulas semanais. O segundo, decorrente da primeira situação, é a baixa possibilidade de significação e de produção de sentido dado ao distanciamento entre as narrativas abordadas e a vida concreta dos estudantes. Desta forma, nesta fase de ensino, foram pouquíssimas as referências à história da América Latina, na primeira versão da BNCC, com algumas inferências na prescrição ao sexto ano – colonização, rotas de povoamento – e ao 8º ano – comparação entre os processos de independência.

O Ensino Médio trazia uma proposição sui generis com o 1º ano centrado nos Mundos ameríndios, africanos e afro-brasileiros, o 2º ano nos Mundos americanos, e o 3º ano nos Mundos europeus e asiáticos (Brasil 2015). Apesar da utilização do termo “ameríndios” no decorrer das prescrições, subentende-se, claramente, que, no primeiro ano, trata-se dos povos indígenas que estão submetidos ao atual território brasileiro, com pequenos pontos de intersecção com o restante do continente. Esta restrição se explica por que o 2º ano retoma a proposição de uma história da América como unidade disciplinar independente. Nesta série temos, então, todo um programa temático-cronológico que envolve elementos de história política, social e cultural da América Latina, em muitos momentos abordando fenômenos transversais aos Estados Nacionais constituídos, ressaltando os hibridismos e mestiçagens culturais.

A concepção inicial era que esta versão, entendida como preliminar, após uma consulta popular onde grupos e indivíduos podiam sugerir alterações nos objetivos de aprendizagem propostos, fosse aprimorada e reapresentada ao público. Todavia, não foi isso que ocorreu. O contexto político tumultuado e as pressões dos coletivos de historiadores levaram ao desmanche da equipe inicial. A nova proposta, que veio a público em maio de 2016, não pode ser considerada exatamente uma “versão” – por que “desconsiderava” deliberadamente a proposta inicial - embora algumas tentativas de enfrentamentos da significação dos conteúdos históricos tradicionais possam ser vistas na organização curricular apresentada para o Ensino Médio.

No Ensino Fundamental, a proposta inicial foi desprezada como um todo, voltando à História Integrada, e seu quadripartismo, com alguns rearranjos. Para o 6º ano propunha-se partir da, assim chamada pelo documento, “Antiguidade Clássica”[15] e trabalhar a História Medieval europeia. O 7º ano foi resguardado para a “história moderna”, iniciando com o chamado Renascimento europeu, mas com bastante espaço para a América Portuguesa. Para o 8º ano prescrevia-se a História do Brasil (aqui está a inovação em relação à História integrada do currículo editado e, também, um possível diálogo com a proposta anterior) da independência à atualidade. O 9º ano abrangeria a chamada História Contemporânea, os séculos XIX e XX a partir da ótica europeia. Nesta fase, é no 7º ano que se vislumbram com mais intensidade os conteúdos da História da América Latina, com referências a etnocídios, resistência, dominação, comparação entre processos de independência, combate a preconceitos, ainda que se utilizem referências de compreensões coloniais como a de “novo mundo” para referir-se à América.

No Ensino Médio, uma possível continuidade do debate com a proposta anterior pode ser vislumbrada na prescrição de três unidades curriculares: 1. Escravismo, Liberalismo, Autoritarismos e Democracia nas Américas; 2. Da Queda dos Impérios Europeus ao Processo de Globalização; e 3. Brasil: República, Modernização e Democracia. Como se vê pelo título, é na Unidade 1 onde as prescrições sobre História da América estavam mais visíveis. Trata-se de uma proposta cronológica, centrada em marcos da história política, que se desenvolvia desde “Comparar os sistemas coloniais das Américas” até “Identificar os aspectos fundamentais do processo de redemocratização na América Latina” (Brasil 2016).

Em abril de 2017 veio a público a versão definitiva da Base Nacional Comum Curricular, que seria homologada como documento oficial em dezembro do mesmo ano. O documento final acompanhava a volta à cronologia tradicional da História Integrada, no Ensino Fundamental, já proposta pela segunda versão, dando passos a mais para o atendimento das demandas da parcela dos historiadores das cátedras quadripartites - que havia se constituído como grupo de pressão em relação aos documentos anteriores - e a concepção identitária dos finais do século XIX e início do século XX com a ideia de Ocidente. O documento trouxe pouca ou nenhuma fundamentação em leituras sobre o ensino de História, ao menos dos últimos quarenta anos, o que pode ser visto em qualquer uma das suas tentativas de proposições pedagógicas para atender às demandas dos direitos de aprendizagem. A categoria interpretação, a título de amostra, amplamente debatida entre os pesquisadores do ensino de História, é assim exemplificada no documento oficial nacional para que os docentes da Educação Básica compreendam e a executem em salas de aula:

Um exemplo claro são as pinturas de El Greco. Para alguns especialistas, tratam-se de obras que abandonam as exigências de nitidez e harmonia típicas de uma gramática acadêmica renascentista com a qual o pintor quis romper; para outros, tais características são resultado de estrabismo ou astigmatismo do olho direito do pintor.

Este é “o” exemplo de interpretação histórica para os historiadores de cátedra, elaboradores da versão definitiva da BNCC. A mesma situação se repete em relação a outras ‘habilidades’, nesta proposta, como a ideia de “comparação” ou de desenvolvimento de “procedimentos”. No que tange à abordagem deste artigo, chama atenção o vínculo mais explícito e assumido com a concepção de Ocidente, num projeto que remete, inclusive, a discursos do período da Guerra Fria. O primeiro e – pela ordem, provavelmente, considerado mais importante - procedimento geral a ser desenvolvido com os estudantes do Ensino Fundamental, presente na BNCC, seria a “identificação dos eventos considerados importantes na história do Ocidente (África, Europa e América, especialmente o Brasil), ordenando-os de forma cronológica e localizando-os no espaço geográfico” (Brasil 2017). Além da concepção de história única e linear, é bastante significativa a tentativa do enquadramento do conceito de Ocidente por um recorte da geografia física. Apesar desta tentativa, o restante do discurso e a prescrição dos conteúdos mostra que a concepção de Ocidente que atravessa a versão oficial da BNCC é a velha compreensão que associa este conceito a uma europeidade entendida como império da Razão. Para justificar o que “torna um determinado evento um marco histórico”, a versão oficial da Base, assim argumenta:

Entre os debates que merecem ser enunciados, destacam-se as dicotomias entre Ocidente e Oriente e os modelos baseados na sequência temporal de surgimento, auge e declínio. Ambos pretendem dar conta de explicações para questões históricas complexas. De um lado, a longa existência de tensões (sociais, culturais, religiosas, políticas e econômicas) entre sociedades ocidentais e orientais; de outro, a busca pela compreensão dos modos de organização das várias sociedades que se sucederam ao longo da história (Brasil 2017).

É desta forma que para o 6º ano se prescreve os estudos da Antiguidade Clássica e do período medieval europeu, sem descuidar da “necessária contraposição com outras sociedades” (id.). O 7º ano foca no mundo moderno e a conexão entre sociedades africanas, americanas e europeias. O 8º ano aborda o século XIX e o 9º ano os séculos XX e XXI. Portanto, a BNCC oficial exacerba o que já vinha acontecendo desde a adoção do currículo editado da História Integrada. O mundo vai caminhando pela lógica elaborada no século XIX europeu - no auge do imperialismo e das teorias raciais - e são enxertadas algumas outras sociedades neste caminho. A pergunta que esta organização curricular procura responder é “como atender a inserção ocidental primordial da sociedade brasileira e incluir a África, os afro-americanos e ameríndios, já que, por enquanto, existe uma lei que nos obriga”:

A relevância da história desses grupos humanos reside na possibilidade de os estudantes compreenderem o papel das alteridades presentes na sociedade brasileira, comprometerem-se com elas e, ainda, perceberem que existem outros referenciais de produção, circulação e transmissão de conhecimentos, que podem se entrecruzar com aqueles considerados consagrados nos espaços formais de produção de saber (id. grifo nosso).

Fica muito claro nesta citação quem é o ‘nós’ dos elaboradores da proposta da BNCC e, em se tratando de um documento oficial do Estado brasileiro, quem é o “outro” desta referência identitária nacional. O adolescente afrodescendente, indiodescendente, na escola, deve estudar a história ameríndia e afro-americana para desenvolver a alteridade, comprometerem-se com estes “outros”. É a velha construção do colonialismo interno das elites criollas latino-americanas, a não-europeidade é o nosso “exterior interno” (Mignolo 2005). Assim é que povos indígenas do território brasileiro e sociedades africanas entram no conteúdo cronológico “A invenção do mundo clássico e o contraponto com outras sociedades”. Assim é que, na mesma série, estuda-se a passagem do MUNDO antigo para o MUNDO medieval. Assim é que junto com os vários objetos de conhecimento da Antiguidade Clássica propõe-se estudar “as diferentes formas de organização política na África: reinos, impérios, cidades-estados e sociedades linhageiras ou aldeias”[16] e em todas as Habilidades (rubrica que se usa para destrinchar os conteúdos) atribuídas a este item (EF06HI10 a EF06HI13) nenhuma referência se faça à África.

O documento, contudo, não deixa de referenciar a história dos outros territórios/povos que compõem a atual América Latina. No sexto ano evoca-se astecas, maias e incas. Como no documento anterior, no sétimo ano a referência à América Latina é maior: saberes dos povos pré-colombianos expressos na cultura material e imaterial; conflitos, dominação e conciliação entre conquistadores e ameríndios; as formas de organização e resistência das sociedades ameríndias. No 8º ano que, como vimos, trata do século XIX, há referências importantes quanto ao discurso civilizatório nas Américas, o silenciamento dos saberes indígenas e as formas de integração e destruição de comunidades e povos indígenas e a resistência destes povos diante da ofensiva civilizatória. No nono ano mantêm-se as referências às experiências ditatoriais na América Latina.

Esta versão da BNCC não mais prescrevia orientações e conteúdos para o Ensino Médio. Para este nível de ensino foi apresentado em abril e homologado em dezembro de 2018 um documento específico. Dentro de uma nova proposta de Reforma do Ensino Médio, apenas as habilidades dos componentes curriculares Língua Portuguesa e Matemática foram detalhadas, pois seriam conteúdos que deviam obrigatoriamente estar presentes nos três anos. Os conteúdos de História foram integrados na área do conhecimento “Ciências Humanas e Sociais Aplicadas” apenas com a descrição de objetivos bastante genéricos.

Nesta incursão exploratória para entender o espaço ocupado, o lugar onde foi inserida e a maneira como foi tratada a América Latina nas diferentes versões da BNCC podemos observar que o grande investimento da versão preliminar foi fazer cumprir nossa alforria curricular, na conhecida expressão de Araújo e Cardoso (2003), com a efetivação da lei sobre cultura afro-brasileira e indígena. Observa-se isto em toda a prescrição do Ensino Fundamental e nos “Mundos ameríndios, africanos e afro-brasileiros” do primeiro ano do Ensino Médio. Ao dedicar uma série do Ensino Médio aos “mundos americanos”, o currículo ilumina uma filiação e uma proposta de identificação, embora oscile entre a prescrição cronológica de conteúdos ligados à colonização e à macropolítica dos Estados Nacionais e novas abordagens socioculturais, especialmente em relação aos movimentos sociais organizados. Nesta fase do ensino, a situação se manteve, com variância de enfoque, na segunda versão, com a primeira unidade prescrevendo “Escravismo, Liberalismo, Autoritarismos e Democracia nas Américas” para o 1º ano.

Na segunda fase do Ensino Fundamental, que atende adolescentes de 11 a 14 anos, a situação foi bem outra. Aqui, na segunda e na terceira “versão”, atendendo às pressões, buscou-se evidenciar, cada vez mais, sucessivamente, o compromisso com a história cronológica linear que insere Brasil, América Latina e África como adendos comparativos à evolução histórica imaginada pela Europa do final do século XIX. Mesmo com prescrição de conteúdos atualizados em relação a debates políticos e historiográficos, nesta concepção há um processo em curso: a lógica que guia os conteúdos faz com que as “outras histórias” – da América, do Brasil, da África etc. - sejam ilustrações ou pequenos desvios de percurso. O excesso de prescrição, a tentativa de abordar “toda a história” para contentar a sede das cátedras tradicionais, acaba levando o professor da Educação Básica a um conflito de prioridades entre abordagens mais significativas e o cumprimento rápido e superficial do que antes era uma tradição, não expressa diretamente em documento oficial (história integrada do currículo editado), e agora ganha força de lei, lida e acolhida pela maioria dos estados da federação, transformada em currículo oficial. O espaço para a mudança nas referências identitárias é ínfimo, a velha narrativa-mestra eurocentrada sobressai e as demandas de identificação com os demais povos latino-americanos permanece como “um sonho progressista cantado em verso e prosa desde o século XIX” (Cerri 2016).

Considerações Finais

A luta contra a emergência do autoritarismo, da mentira e do ódio, sem pudor, na esfera pública deve ser o horizonte mais urgente por todos que acreditam na democracia, na honestidade, na solidariedade e na justiça social como valores fundamentais para guiar o agir humano no planeta. Contudo, a chave interpretativa do Unheimliche, mostra que esta luta terá que ser mais profunda, constante, perseverante, de longo prazo – e, também, interna às instituições - porque estes estranhos discursos e posicionamentos, apesar de submersos e menos visíveis em alguns momentos, acompanham a sociedade colonizada brasileira em longo prazo.

Este também é um desafio para todos que se dedicam ao pensar/agir sobre o ensino escolar de História que, da mesma maneira que a escolarização pública como um todo, vê-se envolvido em outros significativos embates. O mundo contemporâneo e, em especial, a sociedade brasileira vêm lidando, há um tempo razoável, com a perda de sentido ou melhor de eficácia simbólica da instituição escolar. Não apenas pela agudização do processo de midiatização da cultura, mas pelo baixo nível de cumprimento das promessas da modernidade das quais a escola era um dos principais veículos.

Neste sentido, o debate sobre diretrizes, parâmetros, bases, propostas, prescrições curriculares se faz de fundamental importância. A chancela estatal endossa leituras de mundo, autorrepresentações, aspirações sociais e projetos de futuro que repercutem nas escolas. Destarte, até mesmo pensando na prática docente cotidiana, as disputas pelas narrativas oficiais não se tratam de discussões vãs. A equação é difícil; formamos e representamos os/as professores/as da Educação Básica como intelectuais, capazes de lerem a realidade e fazerem escolhas, mas não podemos imaginar que, individualmente, cada docente tenha condições de arcar com toda uma gama de opções e defende-las sozinho, sem nenhum respaldo coletivo.

Com a aprovação da versão definitiva da BNCC oferecemos um currículo, conservador, limitador, que abandona àqueles docentes de História que desejam romper com concepções ultrapassadas de ensino-aprendizagem e de significação do tempo histórico. A estes reservamos uma difícil condição de resistência na micropolítica cotidiana. Um currículo, tomado de forma isolada, não garante que haja avanços nos processos educativos. Mas o aval público pode oferecer segurança, alguma diretriz em que alicerçar projetos mais ousados, assim como aconteceu com as leis referentes à inclusão de história africana, afro-brasileira e indígena que proporcionaram inúmeras iniciativas inovadoras no campo do ensino de História. Entre o professor-intelectual, capaz de ler sua realidade e de seus alunos e fazer algumas escolhas, e o abandono relativista que deixa o docente à mercê das mais diversas pressões sociais, encontra-se a necessidade de um intenso, honesto e referenciado debate sobre um conjunto de prescrições/sugestões mínimas que possam ser compartilhadas em um território tão grande e diversificado como o brasileiro.

Não podemos afirmar que a primeira versão da BNCC possibilitaria melhores compreensões do Brasil como país latino-americano. Mas a proposta construída deixava claro que a busca de identificação com os demais povos da América Latina é consequência direta da lei sobre cultura afro-brasileira e indígena porque a subalternização das experiências e saberes destes grupos sociais é uma decorrência do mesmo processo de colonização engendrado pela modernidade pelo qual as demais populações da América Latina também passaram. As demais versões, ao retornar à narrativa-mestra engendrada no século XIX, mantiveram o procedimento de inclusão de novos temas no currículo de forma periférica, optando por evitar qualquer forma de transformação estrutural do ensino de História oferecido aos jovens brasileiros há muito tempo.

Não encontramos nenhuma carta de repúdio, nenhum pedido para desfazer a comissão elaboradora, nenhuma manifestação escrita, nenhuma desqualificação dos saberes de seus pares por parte das associações de cátedras historiadoras quando a terceira versão da BNCC foi publicada e, posteriormente, homologada. Isto, talvez, se explique pelo contexto político altamente complexo - após um golpe orquestrado que destituíra a presidente eleita sem nenhuma prova criminal concreta - que direcionava e consumia as forças de resistência dos professores universitários. Contudo, hipoteticamente, pode-se considerar que a inclusão dos termos “Antiguidade Clássica” e “Idade Média” na prescrição para crianças e adolescentes de dez a onze anos já satisfazia a demanda pela qual tantos protestos foram realizados. Em tempos em que uma Base Nacional Comum da Formação de Professores da Educação Básica” (BNCFP) impõe uma verdadeira “reforma” dos cursos de licenciatura, atrelada à mesma lógica da BNCC, é a hora crucial para que a comunidade historiadora, ao pensar a resistência, reflita sobre a estrutura dos cursos de formação, engessada por compreensões históricas já superadas pelos próprios historiadores, e estabeleça um diálogo e uma compreensão maior sobre a sua função perante a escolarização e a situação geral da população brasileira dentro da colonialidade global.

O olhar que guiou este texto, analisando a presença da América Latina nas diferentes versões da BNCC, partiu do pressuposto de que a busca por identificação com os demais povos que compõem o subcontinente latino-americano é imperativa como um projeto de resistência e re-existência. Se, em médio prazo, dada à força da construção das identidades nacionais, não se consiga tornar a convivência e solidariedade latino-americana um ‘nós’ efetivo, que, com um ensino de História comprometido nesta direção, pelo menos crie-se a possibilidade de um ‘conosco’ no compartilhar de projetos em comum.

Como sempre fez questão de ressaltar Paulo Freire, “ensinar exige a convicção de que a mudança é possível” (1996). Portanto, um ensino escolar de História pensado como transmissão de informações frias, sem envolvimento, sem consciência de sua relação com um circuito de afetos, com as solidariedades sociais e com projetos de mundo, tende a manter o distanciamento dos estudantes e promover resultados inócuos, mesmo que os estudantes alcancem a aprovação em testes e provas que se proponham a medir a dimensão factual do saber histórico. Refletir, constantemente, sobre a função da História e as questões de aprendizagem é um esforço que cabe a toda a comunidade historiadora, aí incluídos os professores da Educação Básica que, ao recortar, organizar e pensar o sentido da aprendizagem, são também autores, produtores de História.

Por enquanto, com a legislação vigente, resta-nos esgarçar espaços, construir brechas na tentativa - tomando de empréstimo a expressão de Célia Xakriabá[17] – de amansar as prescrições curriculares colonizadas, tanto da formação inicial quanto da Educação Básica num movimento de resistência, subversão e insurgência propositiva coletiva com os demais povos da América Latina. “Subverter requer colocar corpo e mente em ação, e isto provoca deslocamento. Portanto, não há alternativa senão a de começar e fazer” (Xakriabá 2020).

Notas

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Notas [1] Evidentemente que aos processos históricos dificilmente se pode atribuir um marco zero, um ponto inicial, mas associamos a situação que descremos a uma visibilidade maior no campo educacional no período de aprovação do PNE (2014), especialmente nos enfrentamentos que culminaram com a exclusão da palavra “gênero” do texto oficial.

[2] Referimo-nos especialmente à retomada, de maneira explícita, dos discursos racistas, autoritários, patriarcais, defensores da violência. O racismo, a violência, o patriarcalismo e o autoritarismo são partes constitutivas da sociedade brasileira em seu processo histórico. No entanto, como defendeu Florestan Fernandes (1972), um discurso que encobria esta situação, produzia uma sociedade cindida entre a idealização pública – que preservava certo decoro negando qualquer forma de segregação – e o racismo exercido no foro privado. Em outro caminho, utilizando como metáfora a obra ‘O Processo’ de Kafka, Vladimir Safatle (2019), também aponta as contradições performativas entre a realidade das ações e as promessas de racionalidade enunciadas por normas intersubjetivamente partilhadas pelo humanismo moderno. Existem normas que são claramente anunciadas e outras que agem em silêncio precisando continuar implícitas para poder funcionar. A situação atual deixa claro que o tribunal é muito maior do que o espaço no qual a lei se enuncia (ou deveria ser enunciada). As leis, dantes implícitas, passam a ser assumidas, ainda que de maneira confusa, por grupos que sempre estiveram presentes, mas agora emergem das catacumbas e porões das ditaduras latino-americanas, sem necessitar da preservação do decoro.

[3] A ilusão a que se refere Laville é a de que o que é prescrito curricularmente seja trabalhado nas escolas e assimilado de acordo com as intenções da prescrição. Sem desconhecer os limites da prescrição curricular, as guerras de narrativas não podem ser interpretadas como se estes embates fossem vãos ou inócuos, como se a narrativa-mestra eurocêntrica, partilhada como discurso identitário, não fosse a sombra que irriga os discursos de ódio da colonialidade e não tivesse nenhuma relação com o ensino escolar da História ou, ainda, como se a disputa estivesse encerrada, ao fechar os olhos ao problema. O próprio Laville aponta que os embates em torno desta situação devem se acirrar (1999, 186). Discussões coletivas a respeito do currículo do ensino de História são realmente apenas ilusão ou são necessárias como ação primordial de uma sociedade que deseja refletir sobre si mesma? Ao mesmo tempo, elas não são o fruto – ou deveriam ser - de um acúmulo de saberes de um campo disciplinar sobre a aprendizagem escolar?

[4] Ao destacar o sentido que predominou, não desconsideramos outros interesses que também faziam parte da mobilização inicial pela Base Comum. Carmem Teresa Gabriel enfatiza esta disputa de sentido com organizações em torno de um interesse democrático que defendiam uma formação de base comum “como uma estratégia para garantir a equidade nos processos de ensino-aprendizagem em uma sociedade desigual, injusta e plural (...)” (2019, 8).

[5] Por isso, Biesta propõe que as discussões coletivas sobre a educação não podem ficar a cargo das forças do mercado. Para retomar a possibilidade de termos voz neste debate é preciso que as propostas se deem dentro do campo profissional e não do consumo. É com a retomada do profissionalismo, com a formação dos docentes como intelectuais capazes de assumir um papel na definição dos rumos educativos, incluindo “o quê” e “por quê” ensinar, que se pode reinstaurar um projeto democrático de Educação Pública.

[6] A estranha repetição de ‘toda a história’ no Ensino Fundamental e no Ensino Médio explica-se pelo caráter de terminalidade atribuído ao Ensino Fundamental (ou nomenclaturas equivalentes em épocas anteriores). Considerava-se que a grande maioria dos estudantes, até meados dos anos 1990, não faria o Ensino Médio e, portanto, teria o direito a uma visão de “toda a história” dentro das especificidades de seu nível de ensino. Vitória Rodrigues e Silva traz outra explicação enfatizando que esta repetição teria origem em momentos anteriores com base no princípio do ensino por círculos concêntricos e a necessidade de retomada dos conteúdos de maneira mais aprofundada a cada nível de ensino (Silva 2004).

[7] Contraditória e significativamente, esta concepção dá sustentação às cátedras quadripartites que prevalecem na organização dos cursos de formação inicial dos docentes de História e, também, à política do atual governo brasileiro (2020), que, numa retomada da Doutrina da Segurança Nacional, elege como inimigo interno qualquer manifestação/organização popular taxada como comunismo, e inimigos externos a China, o Islã e os demais países da América Latina, aliando-se ao discurso de uma possível civilização ocidental - liderada pelo legítimo herdeiro da europeidade cristã, os EUA -, a ser defendida contra os supostos ataques e ameaças de seus inimigos sórdidos que estariam sempre à espreita. O orgulho nacional, defendido por estes grupos reconhece, indiretamente, o seu lugar de subalternidade nesta configuração identitária.

[8] A produção da BNCC suscitou debates muito intensos e teve grande repercussão para os pesquisadores do ensino de História, o que pode ser verificada pela extensão da produção sobre o tema, na qual os documentos, pareceres e manifestos, estão publicizados, não se fazendo necessário voltar, neste artigo, à descrição de todo o contexto. Ver, por exemplo, Calil (2015); Mattos (2015); Moreno (2016a; 2016b; 2017; 2018; 2019a; 2019b; 2019c); Caimi (2016); Conceição (2016); Menezes Neto (2017); Pinto Jr, Bueno e Guimarães (2016); Silva e Meireles (2017); Brazão (2017); Abud (2017); Caimi e Oliveira (2017); Pereira e Rodrigues (2017); Souza (2018); Cabral (2018); Cruz (2018); Pereira e Rodrigues (2018); Germinari e Dias de Mello (2018); Silva (2018); Franco, Silva Jr. e Guimarães (2018); Oliveira e Freitas (2018); Cerri e Costa (2019); Mendes (2020); Almeida Neto (2020), Dias de Mello e Ferreira (2019), entre outros.

[9] Sabíamos que os cursos de licenciatura em História carregavam uma dicotomia de longa data que fazia as áreas que se dedicam a pensar mais especificamente a formação docente situarem-se em uma escala valorativa menor dentro do campo, isto nos era familiar. Ainda assim, a posição assumida explicitamente de menosprezo aos pares que pesquisam educação foi assustadora, assustadoramente familiar.

[10] Só por que o objetivo político de qualquer organização curricular não seja confesso ou, pior, não seja consciente, não significa que ele não exista. A naturalização dos conteúdos e recortes temporais foi algo realmente problemático nas discussões que se seguiram.

[11] Para Chervel (1990) é um processo comum no desenvolvimento das disciplinas escolares a sua descontextualização e distanciamento em relação aos objetivos educacionais. As disciplinas, na manutenção do seus status acadêmico, acabam evoluindo para um fim em si mesmas.

[12] O que fazemos aqui é uma apropriação livre. O trabalho do professor Safatle é muito mais complexo do que a leitura que oferecemos neste artigo, envolvendo uma abordagem profunda das teorias sociológicas clássicas sobre o Estado Moderno e, não menos profundas, compreensões filosóficas e psicanalíticas a partir de Lacan, Levinas, dentre outros.

[13] Na impossibilidade de referenciar tantos trabalhos, indicamos os clássicos: Dias 1997; Bittencout 2005; e, mais contemporaneamente, Conceição 2010; Conceição e Dias 2011.

[14] Apesar da limitação, este tipo de leitura ganha uma justificativa porque, provavelmente por indicação do processo coletivo da elaboração da BNCC, com um formato atrelado aos direitos de aprendizagem, nas três versões, os autores utilizaram as rubricas pedagógicas, relacionadas a habilidades e competências, para lançar conteúdos substantivos ou ampliar processos históricos. Sobre esta situação na primeira versão ver Moreno 2015.

[15] A fórmula que se encontrou para continuar abrangendo “toda a história” foi a de empurrar a “pré-história” e as “primeiras civilizações” para o 5º ano, na primeira fase do Ensino Fundamental.

[16] Provavelmente em todos os tempos, já que na concepção do século XIX trata-se de sociedades sem história.

[17] Xakriabá fala em “amansar o giz” nas escolas indígenas.



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