Secciones
Referencias
Resumen
Servicios
Descargas
HTML
ePub
PDF
Buscar
Fuente


Tensões e limites da formação de professores/as e o processo de democratização da escola brasileira
Tensiones y límites de la formación docente y el proceso de democratización de la escuela brasileña
Tensions and limits of teacher education and the democratization process of the Brazilian school
Revista nuestrAmérica, vol. 9, núm. 18, e5708442, 2021
Ediciones nuestrAmérica desde Abajo

Artículos libres

Esta obra podrá ser distribuida y utilizada libremente en medios físicos y/o digitales. La versión de distribución permitida es la publicada por Revista nuestrAmérica (post print). Color ROMEO azul. Su utilización para cualquier tipo de uso comercial queda estrictamente prohibida.

Recepción: 03 Diciembre 2019

Aprobación: 17 Noviembre 2021

Publicación: 17 Noviembre 2021

DOI: https://doi.org/10.5281/zenodo.5708442

Resumo: A inserção das classes populares em um curso de pedagogia foi o foco deste estudo que teve como objetivo entender como as demandas e expectativas desses sujeitos poderiam contribuir para repensar a formação de professores neste curso. Os sujeitos investigados foram estudantes do quinto período de curso de pedagogia de uma universidade privada no estado do Rio de Janeiro, no Brasil. Teve como referencial teórico-metodológico a Educação Popular e os Estudos Decoloniais, assumindo o diálogo como caminho por meio de observação participante e rodas de conversa. Os resultados da pesquisa indicam que as situações-limites da/na formação de professores/as são provocadas pela epistemologia a qual o projeto moderno de escola e a universidade brasileira se vinculam.

Palavras-chave: pedagogia, democratização, limites, Freire, Dussel.

Resumen: La inserción de clases populares en un curso de pedagogía fue el enfoque de este estudio que tuvo como objetivo comprender cómo las demandas y expectativas de estas materias podrían contribuir a repensar la formación de docentes. Se investigó a estudiantes de quinto año de un curso de pedagogía en una universidad privada en el Estado de Río de Janeiro, Brasil. El marco teórico-metodológico fue la educación popular y los estudios decoloniales, asumiendo el diálogo como una forma de observación participante y círculos de conversación. Los resultados de la investigación indican que las situaciones limitantes de la formación del profesorado son causadas por la epistemología a la que están vinculados el proyecto escolar moderno y la universidad brasileña.

Palabras clave: pedagogía, democratización, límites, Freire, Dussel.

Abstract: The insertion of popular classes in a pedagogy course was the focus of this study that aimed to understand how the demands and expectations of these subjects could contribute to rethink the formation of teachers in this course. The subjects investigated were students of the fifth period of pedagogy course of a private university in the state of Rio de Janeiro, Brazil. Its theoretical-methodological framework was Popular Education and Decolonial Studies, assuming dialogue as a way through participant observation and conversation circles. The research results indicate that the boundary situations of teacher education are caused by the epistemology to which the modern school project and the Brazilian university are linked.

Keywords: pedagogy, democratization, limits, Freire, Dussel.

Introdução

A Educação Superior no Brasil possui uma curta história quando comparada a países da Europa e também da América Latina. Como colônia portuguesa, o Brasil enfrentou forte resistência de Portugal em criar níveis superiores de educação, além do desejo da elite brasileira em permanecer educando seus filhos na Europa, o que contribuiu para que a universidade brasileira se tornasse uma criação do século XX (Cunha 2000, 152-204). Diante disso, compreendemos o esforço realizado nos últimos anos[1] para a democratização do ensino superior em um país que tem consolidado a inserção das classes populares na Educação Básica muito recentemente, e que apesar da criação de mecanismos de permanência, busca ainda solidificar esse movimento para além do acesso e da constância, mas atendendo à democratização do conhecimento, visto que a escola é identificada como guardiã dos bens culturais acumulados (Esteban e Tavares 2013, 293-307).

Sobre a democratização do ensino superior no Brasil, um importante estudo foi realizado por Gatti e Barreto (2009) que sinaliza a crescente inserção de sujeitos oriundos das classes populares na universidade, em especial nos cursos de licenciatura destacando sobretudo o curso de pedagogia que é assunto da discussão aqui proposta. As autoras ao confirmarem o perfil dos/as estudantes que buscam a carreira docente no Brasil nos últimos anos, apresentam uma preocupação com a qualidade da Educação Básica. Afinal, a cadeia se retroalimenta: estudantes com formação escolar deficitária serão os futuros professores/as.

Outro estudo que apresenta a inserção das classes populares no ensino superior pelo curso de pedagogia é o de Ferreira (2014), que em sua argumentação diz que a preferência por tal curso aparece vinculada a motivos como: ascensão social, sobretudo de mulheres das classes sociais menos favorecidas; redução da concorrência no vestibular; a oferta de bolsas de estudos nas instituições privadas; a ampliação das vagas nas universidades públicas e a possibilidade de concursos públicos, o que lhes dariam garantia de emprego no futuro.

Esses estudantes, sujeitos das classes populares, que chegam à universidade são jovens trabalhadores que dividem o tempo do estudo com o trabalho. Situação que muitas das vezes se apresenta como condição sine qua non para a continuidade dos estudos. Além disso, são sujeitos oriundos de uma escolarização descontínua, realizada com muitas interrupções, filhos de pais com pouca escolarização e que vivem cotidianamente outras dificuldades atribuídas aos sujeitos das classes populares, como por exemplo, a dificuldade de frequentarem as aulas, chegando atrasados ou precisando se retirar antes da conclusão delas, devido a oferta do transporte público que desconsidera as necessidades dos seus usuários.

Assim, tal inserção traz consigo preocupações legítimas como as sinalizadas nos estudos acima citados quando se olha para os futuros/as professores/as como sujeitos com uma escolarização básica deficitária e uma formação na universidade, aligeirada, em curso noturno, com pouco espaço para reflexões. No entanto, a tese[2] que dá sustentação a este texto, apesar de reconhecer esses problemas tomou um caminho diferente. Direcionando o foco para outras perguntas encontrou outras respostas. Partiu das demandas e expectativas trazidas por estudantes das classes populares para (re) pensar a formação de professores em um curso de pedagogia de uma universidade privada localizada no interior do estado do Rio de Janeiro.

Tendo como referencial teórico os estudos de Paulo Freire e Enrique Dussel, a pesquisa adotou o diálogo como caminho metodológico, constituindo-se no vaivém de reflexões geradas na “proximidade”, no “cara-a-cara” com o outro, pensando a formação de professores/as das classes populares desde a “negatividade ontológica” (Dussel 1996). Nesse encontro com os/as estudantes, possibilitado pelo acompanhamento do cotidiano na universidade por meio de observação participante, com registros em caderno de campo e de rodas de conversa foram levantadas “situações-limites” (Freire 2004) do/no curso de pedagogia, devido a epistemologia com a qual este se vincula. A relação centro-periferia referente ao sistema-mundo moderno/colonial formulada por Enrique Dussel (2006) em diálogo com as experiências dos estudantes possibilitou tornar visível traços de colonialidade presentes na própria formação de professores/as denunciando limites no projeto moderno de escola para as classes populares.

Uma escola para todo/as os iguais

A formação de professores/as no Brasil se constitui como um campo de investigação próprio e independente com intensa produção científica. Assim como o campo vem demonstrando grande compromisso de consolidação ao longo dos anos, seus desafios vão na mesma medida crescendo com os movimentos de democratização da educação e apresentando aquilo que pode ser denominado de dificuldades, impossibilidades ou “situações-limites”. Definição que depende da perspectiva abordada.

Para Freire (2004) as “situações-limites” são circunstâncias que inicialmente parecem paralisar os sujeitos, pois como são constituídas por contradições que envolvem as pessoas e a vida cotidiana, quando entendidas fora da complexidade acabam sendo definidas como fatalismo ou impotência. Sem perceber as contradições nas quais estão imersos, esses sujeitos não encontram possibilidades de romper com o que os torna submissos e frágeis. Assim, cerceados por “situações-limites”, sem entender as contradições, como responder de outro modo? Entretanto, são também as “situações-limites” produtoras de “inéditos-viáveis”, do novo, do não pensado ainda, da resposta muita das vezes encontrada, mas não percebida. O “inédito-viável” é a resposta que está sendo gestada, aguardando o momento de nascer.

As “situações-limites” selecionadas para a composição deste texto nasceram do encontro com a diferença. Conforme descrito por Dussel, o encontro apesar de ser um fato repetido cotidianamente, é sempre um mistério (Dussel 1996).

Um “encontro” é, exatamente, o cara-a-cara de duas pessoas como realização de um movimento ir até o outro na liberdade, no afeto, e isso mutuamente. Cada um vai até o outro sabendo que o outro vem até ele, no reconhecimento do outro como outro e no respeito de sua exterioridade digna. Mas se o encontro é desigual, no sentido de que um vai até o outro com a intenção de torná-lo um “ente-explorável”, já não pode haver “encontro” e é preciso encontrar a palavra certa para um acontecimento como esse (Dussel 1994, 131)[3].

O encontro é a primeira experiência humana definida pelo filósofo na categoria proximidade. É, segundo Dussel, uma situação ética originária. “É a palavra que expressa a essência do homem, sua plenitude primeira (arqueológica) e última (escatológica), experiência cuja memória mobiliza ao homem em suas mais profundas entranhas e seus projetos mais distantes, magnânimos” (1996, 33)[4]. É o ponto inicial da responsabilidade pelo outro. Trata-se de um encontro recíproco entre filho-mãe, homem-mulher, povo-cultura.

O encontro é a experiência que coloca o sujeito diante de uma pergunta. Diante dessa incidência que interrompe o fluxo e cobra uma resposta, o novo surge. O novo é aquilo que se apresenta como outra possibilidade. É novo porque ainda não foi colocado em prática naquela relação, não se trata portanto, da necessidade de criação de algo totalmente inexistente que traga uma resposta definitiva e salvadora.

Partindo dessa compreensão, o encontro emerge como uma ação necessária que denuncia a “situação-limite” e provoca o “inédito-viável” (Freire 2004). A “situação-limite” que provoca o “inédito-viável” é fruto do encontro cara a cara, de olhos que descobrem outros olhos.

Assumir como referencial teórico uma perspectiva comprometida com o oprimido é o que define o caminho e aponta novas possibilidades como destino. Pensar a formação de professores/as a partir do diálogo com a Pedagogia do Oprimido e com a Filosofia da Libertação provoca pensar o lugar das classes populares no interior da escola e da universidade brasileira, pois visibiliza a “negatividade ontológica”.

Dussel (1996), na elaboração de sua crítica à ontologia clássica torna aparente a negação do outro, que segundo o filósofo, é desde sempre distinto do que foi definido como modelo, o ser. A ontologia clássica, definida pelo autor como “ideologia das ideologias”, tem sido o marco teórico que organiza o pensamento ocidental moderno. A escola e a universidade que conhecemos são projetos da modernidade, portanto, fundamentam-se na negação de tudo o que se difere desse modelo.

Partindo do entendimento de que a modernidade tem como uma de suas faces constitutivas o processo de colonialidade, pensar o lugar da América Latina na organização do sistema mundo- moderno/colonial, ou seja, da relação centro-periferia proposta por Dussel (1996; 2000; 2006) é compreender o lugar que ocupam as classes populares neste processo de democratização da educação.

A relação centro-periferia mundial diz respeito ao sistema-mundo moderno/colonial. A partir dessa formulação proposta por Dussel, o sujeito da ontologia moderna, o ser, é o sujeito do centro mundial, o que torna o sujeito da periferia mundial em não-ser, o outro. O filósofo demonstra pela “Filosofia da História da Filosofia” o deslocamento realizado pela Europa para o centro do sistema mundo vinculado às relações coloniais na América Latina, fazendo da América condição da existência da Europa Moderna. Essa constituição consagra a produção histórica da Europa e mais tarde os Estados Unidos no centro do mundo e os demais países na periferia mundial. Formando uma “cultura imperial” e outras “culturas periféricas”. Estabelecida no período colonial sob as múltiplas violências instituídas entre o colonizador e o colonizado, a relação centro-periferia, demarca a relação ser- outro, que assim, como as relações de colonialidade do poder não se desfez com o fim do colonialismo, mas vem se atualizando e se desdobrando em relações de colonialidade do ser e do saber (Quijano 2005, 107-30), inclusive se reproduzindo internamente.

Dessa forma, tomar a relação centro-periferia preconizada por Dussel como metáfora para compreender a formação de professores/as, significa ponderar a possibilidade de se pensar a partir de outro paradigma, o paradigma da periferia. Nesta perspectiva, estar na periferia é estar no lugar do outro, daquele que não-é. Há apenas uma forma de ser e múltiplas formas de não- ser. O outro é a criança, é a mulher, é o indígena, é o negro, é o pobre, é o não europeu, é todo aquele que não cabe dentro da definição do ser da ontologia moderna.

Os sujeitos das classes populares quando chegam à universidade, espaço da “cultura imperial”, descobrem-se como o outro, aquele que não atende às expectativas desse espaço. A inserção de sujeitos das classes populares na universidade, principalmente, no curso de Pedagogia não é uma novidade, todavia, o resultado do investimento realizado em direção à democratização do ensino superior nos anos que antecederam esse estudo demonstrou não mais a chegada de indivíduos isolados, mas a chegada em grupo desestabilizando esse espaço o que permitiu que reflexões realizadas na formação de futuros/as professores/as denunciassem relações de colonialidade na própria formação. Afinal, o limite não está no sujeito, mas no projeto que nega a diferença. As “situações-limites” denunciadas a seguir abordam encontros com a diferença: a primeira se constituiu no encontro com a criança com autismo, a segunda no encontro com a negação dos saberes das classes populares na universidade.

Situações-limites da/na formação que denunciam a impossibilidade de ser o outro na escola e na universidade

A gente tem que se relacionar com as pessoas, vocês estão entendendo? Em qualquer graduação a gente tem que ir amadurecendo, a gente tem que mudar não só na vida profissional.

[...]se chega uma criança autista na minha turma e eu não sei lidar com isso, a faculdade não me formou para isso, posso ter doutorado, mas virar as costas?

[...] então, é isso que eu estou falando. O que a gente espera é que na formação humana, independente da formação profissional, o que a gente espera é evoluir.

[...] porque o discurso quando a gente chegou aqui era: eu gosto de criança! O que mudou pra você desde quando chegou aqui? Não em relação a conteúdo, a prática e teoria, mas ao seu modo de ver o mundo? Por que a gente não precisa ver a criança, a gente precisa reconhecer a gente na pessoa do outro, a gente precisa fazer uma boa ação. Porque, às vezes, a gente consegue associar teoria e prática porque trabalha, mas não tira a trava da criança, não sei.

A fala da estudante traz elementos que causam tensão no cotidiano e dificulta compreendê-los em sua complexidade. O encontro com o outro, neste caso, a criança com autismo a coloca diante de um problema: “eu não sei lidar com isso”. Ao afirmar não saber lidar com o não previsto na escola, denuncia um limite de sua formação: “a universidade não me formou para isso”, mas o encontro cara a cara com esse sujeito, a impede de seguir adiante sem se perguntar o porquê do seu estranhamento.

Ao encontrar-se com a criança com autismo, a estudante do curso de pedagogia não só a percebe, como também é por essa criança interpelada. Ainda que não tenha havido nenhuma troca de palavras entre elas, a criança impôs-lhe um questionamento. É o outro que a indaga e a chama para sua responsabilidade.

A presença da criança com autismo na escola brasileira é uma resposta a exclusão que segundo David Rodrigues (2006, 9-14) se alastrou no início deste século como uma “epidemia social” e, portanto, tem sido abordado como uma das advertências mais sérias ao desenvolvimento das sociedades. Desenvolvimento que impulsionou e responsabilizou os governantes a unificarem esforços em direção ao seu contrário: a inclusão. Assim, iniciam-se o combate à pobreza e à exclusão escolar, entre muitos outros. Como motivos desse forte movimento o autor, destaca três causas: “o aumento das reivindicações de condições de vida dignas e de qualidade”; “as culturas meritocráticas e competitivas que as diferentes sociedades desenvolveram” e “fatores culturais, que nos conduzem a pensar que a diferença é perigosa” (Rodrigues 2006, 10).

Tratando da inclusão, o autor, distingue duas dimensões que compõem o conceito para se pensar a implementação e a atuação. Tais dimensões talvez obedeçam a tempos diferentes: a “inclusão essencial” e a “inclusão eletiva” (Rodrigues 2006,11). A inclusão essencial diz respeito ao acesso e a participação sem discriminação a todos os serviços, enquanto a inclusão eletiva nos diz que para assegurar esses direitos não se pode segregar os sujeitos. “Essa dimensão assegura que, independentemente de qualquer condição, a pessoa tem o direito de se relacionar e interagir com os grupos sociais que bem entende em função dos seus interesses” (Rodrigues 2006,11), porém, a inclusão essencial é condição para que se possa pensar em inclusão eletiva.

Ao mesmo tempo que a presença do outro se impõe na sociedade, o que se deu com muita luta, a resistência do pensamento conservador também se movimenta de diferentes formas, inclusive incluindo o sujeito. Incluir o sujeito em um espaço do qual já fora expulso, impondo-lhe a mesmidade é violentá-lo mais uma vez. Skliar (2006, 15-34) nos fala sobre essa “obsessão pelo outro”. O autor, destaca que há um “mal entendido” na educação entre a diferença filosófica e a diferença política. A diferença filosófica marca a questão do outro e a diferença política designa a obsessão pelo outro. Uma obsessão em transformar o outro em um alguém inventado, portador de uma marca. O autor diz não ter receio em afirmar que a “[...]educação em geral, não se preocupa com as diferenças senão com aquilo que poderíamos denominar como certa obsessão pelos ‘diferentes’, pelos ‘estranhos’, ou talvez em outro sentido, pelos ‘anormais’ “(Skliar 2006, 23). Dessa forma, nos leva ao entendimento de que “a preocupação com as diferenças tem se transformado, assim, em uma obsessão pelos diferentes” (Skliar 2006, 24).

Conforme Skliar, a questão do outro que é um problema filosófico diz respeito à ética, pois inventamos o outro como o deficiente para nos afirmarmos como eficientes. “A linguagem da designação não é nem mais nem menos que uma das típicas estratégias coloniais para manter intactos os modos de ver e de representar os outros, e assim seguir sendo, nós mesmos, impunes nessa designação e imunes em relação à alteridade” (Skliar 2006, 24).

O outro é aqui compreendido como aquele que não é, aquele que não corresponde à definição do ser da ontologia clássica (Dussel 1996). Dessa forma, o outro é a criança com autismo na escola e é também o/a estudante das classes populares que chega ao ensino superior.

Os estudantes das classes populares ao trazerem consigo experiências e saberes distintos daqueles esperados pela universidade são entendidos e passam pela formação a se entenderem como sujeitos sem conhecimento, sujeitos de falta, como percebemos no relato a seguir:

A disciplina que mais me causou inquietação foi a disciplina de Literatura Infantil. O professor perguntava aos alunos quem lia para nós quando éramos crianças. Que livros eram lidos? Eu ficava quieta torcendo para que ele não me perguntasse, porque ninguém lia para mim. Eu ficava pensando: meus colegas ouviam histórias quando pequenos e eu não. Só depois, agora no fim do curso que me dei conta: eu ouvia história. A história que a minha mãe contava. A história da mãe d’água. Minha mãe contava que para ela aparecer tinha que ficar escuro, e eu ficava esperando anoitecer para ver a mãe d’água. Mas, eu não reconhecia isso como história. Eu ficava pensando e cheguei a ficar magoada com a minha mãe. Como ela não me contava histórias?

A ausência de experiências leitoras a partir do texto escrito leva a estudante acreditar não ter ouvido histórias na infância. No Brasil, o acesso à escrita em determinados segmentos sociais se dá quase prioritariamente pela escolarização e, a democratização do acesso e permanência na escola é uma conquista recente que ainda não pode prescindir da luta para sua manutenção. Vivemos uma democracia muito tensionada pelos velhos autoritarismos e populismos que adicionados às pressões relacionadas ao cumprimento das metas internacionais contribui para a constituição das muitas contradições vividas no espaço escolar. Entre elas, o acesso e a busca pela permanência das classes populares na escola garantido pelas políticas distributivas e as possibilidades efetivas do processo aprendizagem-ensino dificultado, muitas das vezes, pelas mesmas políticas que ao propor a democratização da educação, criam mecanismos de regulação que vão legitimando a presença de práticas mecanicistas na escola e formatando o trabalho docente.

Assim como a criança com autismo, o relato feito pela estudante do curso de pedagogia denuncia uma “situação-limite” na formação de professores: a relação entre a oralidade e a escrita. A fala da estudante associada à análise da disciplina por ela citada permite apresentar como evidência a subalternização da oralidade em relação à escrita, quando se percebe que a discussão acerca da relação entre a oralidade e a escrita realizada na formação de professores/as não parece ser o suficiente para a compreensão de que se trata de formas distintas de composição de uma mesma língua.

Essa dificuldade apresentada pela estudante em reconhecer suas experiências com as histórias orais como experiências válidas na universidade e na formação de professores/as mesmo convivendo com a discussão no curso acerca da relevância da oralidade, pode ser compreendida como um limite da formação que apesar de realizar a crítica se fundamenta em um marco teórico que está alinhado com a produção da negação. Neste caso a perspectiva eurocêntrica, que subalterniza a oralidade e os povos orais. A crítica sem a compreensão da negação da oralidade e consequentemente dos sujeitos orais reforça a colonialidade.

O historiador Michel de Certeau (2001) em pesquisa realizada nos anos de 1980 intitulada como “A invenção do cotidiano” que tratou de examinar como as pessoas individualizam os usos da cultura de massa, ao destacar as práticas de dizer, demonstra o valor mítico que a prática escriturística assumiu na modernidade, tomando a representação do progresso, dicotomizando-se com a oralidade e transformando-a no sinônimo de atraso. Na modernidade, “‘oral’ é aquilo que não contribui para o progresso, e, reciprocamente, ‘escriturístico’ aquilo que se aparta do mundo mágico das vozes e da tradição. Com tal separação se esboça uma fronteira (e uma frente) da cultura ocidental” (Certeau 2001, 224).

A ideia da escrita atrelada ao progresso e a oralidade ao atraso, produz uma hierarquização entre as diferentes formas de uma mesma língua e coloca a oralidade na condição de ser um estágio da língua, ou seja, passa-se da oralidade à escrita. Contrariando essa construção, Gnerre (2012) “afirma que escrever nunca foi e nunca vai ser a mesma coisa que falar” (Gnerre 2012, 8), o que rompe com a visão simplicista de que a escrita é o registro da fala. Todavia, compreender a diferença entre a oralidade e a escrita não as coloca em polos opostos, são práticas diferentes (Certeau 2001; Gnerre 2012).

Essa discussão sobre a hierarquização entre oralidade e escrita, está inscrita a partir da hierarquia entre os conhecimentos, entre as formas de vida. A escrita, a escolarização, aproxima o outro do modelo do centro, ainda que este não saia do lugar da exterioridade.

A exterioridade é o lugar do outro. O lugar onde o outro é. Estando além da totalidade, lugar do ser, a exterioridade anuncia a possibilidade de negar a negação, ou seja, contestar a ideologia que afirma o outro como não-ser. A exterioridade não está fora do sistema-mundo, ela também o constitui, mas como espaço da negação. Nessa relação a totalidade é o centro, a exterioridade, a periferia.

Essa relação, legitima a criação de assimetrias no exercício de poder, tornando quase naturais as relações de subalternidade, produzindo desigualdades justificadas pela natureza distinta, homem-mulher, branco-negro, adulto-criança. Ao deslocar o outro da exterioridade para a totalidade que o nega, reforça-se a opressão, pois neste espaço, ele sempre será o não-ser.

Considerações finais

O processo de democratização da educação no Brasil, considerando a democratização dos conhecimentos incide da possibilidade das classes populares serem também autoras desse processo. Democratizar o acesso à escola e à universidade passa também pela negociação dos modos de ser, de viver e de saber. A Educação Popular como movimento de educação do povo demarca a necessidade de uma educação libertadora que forme sujeitos livres e conscientes do mundo que habitam e constroem. Para isso, há de se considerar as demandas e as expectativas dos sujeitos interessados neste processo.

Partir das experiências das classes populares, compreendendo-as como experiências de classe é um movimento imprescindível para que o educando possa reconhecer-se e engajar-se na luta por uma escola justa. O processo de democratização da educação somente pelo acesso e permanência à escola, apesar de se mostrar insuficiente mostra-se uma conformação potente para desestabilizar o projeto de escola/universidade que nega os sujeitos das classes populares e suas experiências.

A presença das classes populares provoca o encontro com o outro. Uma colisão que desarmoniza as relações. É a “inclusão essencial”. A escola é para todos/as. Essa certeza acrescida da resistência desses sujeitos, neste espaço que os nega, é um possível caminho para a “inclusão eletiva”.

Mas nessa escola há de se recusar a negação. Negar a negação passa pela possibilidade de torná-la visível evidenciando que o modelo abstrato e universal de sujeito e de conhecimento - que esta escola promete produzir tornando-os, pela escolarização livres - é uma falácia. Por isso, faz-se necessário negar a primeira negação: a de que o outro deve se transformar no modelo de homens emancipados, o ser. A escola moderna só é capaz de emancipar alguns, individualmente, resultando no distanciamento de si e de seus iguais.

As experiências narradas revelam encontros com a negação da diferença. O encontro relatado pela estudante do curso de pedagogia com a criança com autismo não se deu pela palavra, mas se deu pela interpelação que a presença dessa criança causou na estudante. A criança, no silêncio denunciou a negação do seu direito de estar na escola, o seu direito de ser. Por outro lado, a estudante que não vê suas experiências leitoras valorizadas na escola, percebe a negação dos seus saberes produzindo a sensação de inadequação e a falsa compreensão de não ter nada, nenhum conhecimento para partilhar.

Assim, as duas estudantes, demonstram um movimento que foi denominado na tese por encontroconfrontoencontro[5]. Em diálogo com o pensamento de Enrique Dussel, foi possível compreender como o encontro com o outro negado, a criança com autismo, bem como com a situação que nega a experiência da estudante, que não se vê representada na universidade provocou o confronto à negação. O primeiro encontro provocou o confronto que ao negar o que se nega, gerou um novo encontro: o encontro cara a cara com o outro e com a sua experiência, dessa vez, sem incômodo, podendo ser aquele que se é.

Notas

Referências Certeau, Michel de. 2001. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes.

Cunha, Luiz Antônio. 2000. “Ensino Superior e universidade no Brasil”. No 500 anos de educação no Brasil, organizado por Eliane Marta Santos Teixeira Lopes; Luciano Mendes de Faria Filho; Cynthia Greive Veiga, 152-204.Belo Horizonte: Autêntica.

Dussel, Enrique. 1994. Historia de la Filosofia latinoamericana y filosofia de la liberación. Bogotá: Editorial Nueva América.

Dussel, Enrique. 1996. Filosofía de la liberación. Bogotá: Nueva América.

Dussel, Enrique. 2000. Ética da Libertação: na idade da globalização e da exclusão. Petrópolis: Vozes.

Dussel, Enrique. 2006. Filosofía de la cultura y la liberación. México: Universidad Autónoma de la Ciudad do México.

Esteban, Maria Teresa e Tavares, Maria Tereza Goudard. 2013. “Educação popular e Escola pública: antigas questões e novos horizontes”. No Educação Popular: lugar de construção social coletiva, organizado por Danilo Romeo Streck e Maria Teresa Esteban, 293-307. Petrópolis, Vozes.

Ferreira, Marcos Felipe. 2014. “O Curso de Pedagogia: perfil de ingresso, inserção profissional e promoção social”. Dissertação de mestrado. Universidade de Brasília. Acesso em 2 de dezembro de 2019. https://repositorio.unb.br/handle/10482/17125

Freire, Paulo. 2004. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

Gatti, Bernardete e Elba Siqueira de Sá Barreto. 2009. Professores do Brasil: impasses e desafios. Brasília: UNESCO.

Gnerre, Maurizio. 2012. Linguagem, Escrita e Poder. São Paulo: Martins Fontes.

Quijano, Aníbal. 2005. “Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina”. No A colonialidade do Saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas Latino-Americanas, organizado por Edgardo Lander, 107-30.Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. Acesso em 2 de dezembro de 2019. http://biblioteca.clacso.edu.ar/ar/libros/lander/pt/lander.html

Rodrigues, David. 2006. “Apresentação”. No Inclusão e Educação: doze olhares sobre a educação inclusiva, organizado por David Rodrigues, 9-14. São Paulo: Summus.

Skliar, Carlos. 2006. “A inclusão que é ‘nossa’ e a diferença que é do ‘outro’”. No Inclusão e Educação: doze olhares sobre a educação inclusiva, organizado por David Rodrigues, 15-34. São Paulo: Summus.

Notas [1] Refere-se ao processo de democratização iniciado ainda na década de 1990 no Brasil e que teve, apesar das muitas críticas que se possa fazer, grande destaque após os anos 2000.

[2] Eckhardt, Fabiana. 2017. «Quem vive sabe, mesmo sem saber que sabe: formação docente, relações de subalternidade e sonhos de libertação». Tese de Doutorado, Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil.

[3] Tradução livre.

[4] Tradução livre.

[5] A aglutinação dos termos intenciona representar a complementaridade entre eles.



Buscar:
Ir a la Página
IR
Visor de artículos científicos generados a partir de XML-JATS4R por