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Intersecções entre nacionalidade e raça: considerações sobre o tratamento de imigrantes no Brasil
Intersecciones entre nacionalidad y raza: consideraciones sobre el trato de inmigrantes en Brasil
Intersections between nationality and race: considerations on the treatment of immigrants in Brazil
Revista nuestrAmérica, vol. 9, núm. 17, e5650792, 2021
Ediciones nuestrAmérica desde Abajo

Dossier "Migraciones africanas y afrodescendientes en nuestra América: Tránsitos, rutas y destinos"

Esta obra podrá ser distribuida y utilizada libremente en medios físicos y/o digitales. La versión de distribución permitida es la publicada por Revista nuestrAmérica (post print). Color ROMEO azul. Su utilización para cualquier tipo de uso comercial quedaestrictamente prohibida. Licencia CC BY NC SA 4.0: Reconocimiento-No Comercial-Compartir igual-Internacional

Recepción: 07 Diciembre 2020

Aprobación: 06 Mayo 2021

Publicación: 11 Julio 2021

DOI: https://doi.org/10.5281/zenodo.5650792

Resumen: Dada la realidad de aquellos(as)que experimentan la movilidad internacional, nos preguntamos cómo las dimensiones de la raza y la nacionalidad están estructurando el tratamiento político-legal actual de los inmigrantes en Brasil, prestando atención a las especificidades de los nuevos flujos migratorios y representativos de la alteridad no occidental. Para eso, utilizamos referencias teóricas críticas sobre el Estado-Nación, el racismo, la colonialidad y la inmigración, lo que permite un análisis sobre el orden político y legal de las migraciones en el país. Esta es una investigación bibliográfica y documental, con atención a los puntos principales de la Ley de Migración de Brasil y que reflejan nuestro problema de estudio. Desde uma mirada hasta el sujeto migrante, entendemos cómo la separación racial de la población y la separación entre nacionales y extranjeros son constitutivas del modelo colonial de dominación e incluso hoy en día reflejan el tratamiento de los inmigrantes en Brasil.

Palabras clave: migraciones, racismo, nacionalidad, derechos, decolonialidad.

Resumo: Diante da realidade de quem vivencia a mobilidade internacional, questionamos de que formas as dimensões de raça e nacionalidade são estruturantes do atual tratamento político-jurídico a imigrantes no Brasil, atentando às especificidades dos novos fluxos migratórios e representativos da alteridade não ocidental. Para tanto, utilizamos referenciais teóricos críticos sobre o Estado-Nação, racismo, colonialidade, direitos humanos e imigração, permitindo uma análise sobre a ordem política e jurídica para as migrações no país. Trata-se de pesquisa bibliográfica e documental, com atenção aos principais pontos da Lei de Migração brasileira e que refletem nossa problemática de estudo. A partir de um olhar para o sujeito migrante e suas experiências, percebemos como a separação racial da população e a separação entre nacionais e estrangeiros são constitutivas do modelo colonial de dominação e até hoje refletem no tratamento de imigrantes no Brasil.

Palavras-chave: migrações, racismo, nacionalidade, direitos, decolonialidade.

Abstract: Based on the reality of people who have experienced international mobility, we question the ways in which the dimensions of race and nationality are structuring the current political-legal treatment of immigrants in Brazil. To this end, we use critical theoretical references about the nation-state, racism, coloniality and immigration, making it possible to analyze the political and legal order for migration in the country. This is a bibliographic and documentary research, with attention to the main points of the Brazilian Migration Law and that reflect our study problem. From a look at the migrant subject and his or her experiences, we see how the racial separation of the population and the separation between nationals and foreigners are constitutive of the colonial model of domination and even today reflect on the treatment of immigrants in Brazil.

Keywords: Migrations, Racism, Nationality, Rights, Decoloniality.

Introdução

Decidir migrar, em um mundo delimitado por fronteiras, é um ato de resistência. O ser estrangeiro no mundo do outro é ter coragem de encarar a própria subjetividade com olhares de estranhamento e dúvida. É questionar os muros do poder estatal de negar a presença, o estar no mundo só porque aquele determinado lugar não é o seu mundo. Migrar é ser diferente no jeito, na fala, na cor, na roupa e na comida. É viver como um diferente. E também é acolhida, novidade e utopia. Ninguém sai rumo ao desconhecido sem esperar nada pela frente. Deixar a casa-mãe é olhar para o futuro e os sonhos de uma vida melhor, para si e os seus que ficaram. Estudar migrações é, antes de quaisquer leis, teorias e discursos, perceber a vida e a experiência de pessoas que estão em múltiplos movimentos anunciando - como nos ensina Paulo Freire - um mundo sem fronteiras.

A pesquisa aqui apresentada nasce de um olhar para o sujeito migrante e suas experiências e que nos permite refletir sobre as bases que fundam nossa sociedade, em termos de nacionalidade, pertencimento, comunidade, subjetividade e identidade. Todas as reflexões teóricas e análises estão apoiadas no trabalho coletivo desenvolvido pelo Grupo de Pesquisa, Ensino e Extensão Direitos Humanos e Mobilidade Humana Internacional e Cátedra Sérgio Vieira de Mello (Migraidh/CSVM) e que desde 2013 atua ao lado das populações migrantes e refugiadas no Brasil na promoção e efetivação dos seus direitos, em especial, da luta pelo direito humano de imigrar. A atuação do grupo levou, posteriormente, ao início das práticas extensionistas e a criação do Programa de Extensão Assessoria Jurídica a Imigrantes e Refugiados que permitiu maior diálogo e percepção sobre os desafios e vulnerabilidades daqueles(as) que escolheram o Brasil como país de destino.

Assim, a partir das realidades de quem vive a migração no Brasil, podemos perceber que o ser estrangeiro - não nacional - vivencia experiências completamente distintas no país de acolhida dependendo de onde vem e de quem é, especialmente quando trata-se dos chamados novos fluxos migratórios, provenientes de países africanos e latinos. Apesar da suposta igualdade prevista na própria Declaração Universal dos Direitos Humanos e reproduzida na Constituição Federal e na Lei de Migração, o sujeito migrante tem sua experiência atravessada pela condição da não nacionalidade que, diante de uma ordem estatal, expõe os limites dessa universalidade e igualdade em direitos, especialmente tratando-se de corporalidades não ocidentais, negras ou latinas.

Nesse sentido, como questionamento que direciona o estudo, perguntamos de que forma nacionalidade e raça perpassam o tratamento político-jurídico do sujeito imigrante no Brasil contemporâneo? O objetivo geral da pesquisa é compreender a relação entre nacionalidade e raça e suas expressões no tratamento político-jurídico do sujeito imigrante no contexto brasileiro atual. No campo metodológico, adotamos uma abordagem dialética, aliada à pesquisa bibliográfica e documental.

Com relação ao marco teórico crítico, nosso trabalho está apoiado na tese desenvolvida pela Prof.ª Dr.ª Giuliana Redin, intitulada “Direito de Imigrar: Direitos Humanos e Espaço Público”, que dá sustentação à perspectiva crítica do Migraidh/CSVM no seu trabalho de pesquisa e extensão e que dialoga com demais autores, como Abdelmalek Sayad, Costas Douzinas, Hannah Arendt, dentre outros(as). A partir de Redin (2013) compreendemos que o direito humano de imigrar é um “direito de ação política dentro do espaço público da produção”, que constitui um terceiro espaço, impossível de ser delimitado por fronteiras, e que exige do Estado a redefinição dos seus papéis, de modo a respeitar o direito humano ao ingresso no território, bem como na cooperação por meio de políticas públicas (Redin 2015, 136). Ou seja, a separação entre o nacional e o não nacional instituída na construção do Estado-Nação moderno justifica e legitima a exclusão do sujeito migrante. A partir dessas compreensões, buscamos avançar teoricamente para compreender de que forma a dimensão racial atravessa a nacionalidade no Estado moderno colonial (e suas leis) constituindo as bases estruturantes do tratamento aos(às) imigrantes do Sul Global no contexto brasileiro contemporâneo. A partir das reflexões teóricas de Aníbal Quijano, Sílvio Almeida e Walter Mignolo pretendemos discutir como tal relação se constituiu historicamente e está expressa no atual tratamento jurídico destinado a imigrantes do Sul Global no Brasil.

Assim, na primeira parte do trabalho apresentamos algumas reflexões teóricas sobre como Estado-Nação e a concepção moderna de nacionalidade constituem as bases da exclusão do sujeito imigrante diante de uma determinada ordem nacional. Na segunda parte, refletimos sobre como essa mesma ordem (nacional) também foi estruturada na divisão racial da população e, por fim, em um terceiro momento, analisamos as expressões da relação entre nacionalidade e raça no tratamento político-jurídico da população migrante no Brasil ao longo da história e na contemporaneidade.

Fronteiras da nacionalidade: estrangeiridade e exclusão na ordem do Estado-Nação

O cenário das migrações internacionais mudou muito na última década, quando os novos fluxos migratórios para o Brasil trouxeram consigo outros olhares e desafios diante das raízes históricas e estruturais da exclusão dos(as) diferentes, sejam imigrantes, negros(as), indígenas ou mulheres, no seio do Estado-Nação. Além disso, aqueles(as) que vivenciam cotidianamente a realidade da mobilidade humana internacional nos permitem, com suas experiências, entender melhor como são produzidas e reproduzidas as barreiras que negam a imigrantes e refugiados(as) uma condição política plena quando passam a viver fora do Estado que lhes garante a nacionalidade e, consequentemente, a cidadania. Assim, pretendemos discutir nessa seção, apoiada teórica e metodologicamente nas concepções adotadas por Redin (2013) e Sayad (1998) como a consolidação do Estado Nacional no espaço-tempo da modernidade é constitutiva da negação do outro desde o critério da nacionalidade e, em um segundo momento, a partir de Quijano (2005) e Almeida (2018), pela intersecção de raça, que determinam o tratamento político-jurídico conferido à população imigrante e refugiada no contexto brasileiro atual.

A “exclusão político-jurídica do não nacional” foi apresentada por Redin (2013) ao demonstrar que a concepção de Estado-Nação a partir da modernidade, baseada política e juridicamente em uma separação e diferenciação do ser nacional. Essa, por consequência, é a discriminação nega ao imigrante toda possibilidade de voz e ação no espaço público, já que o direito do cidadão (direito básico a ter direitos) foi reservado com exclusividade ao ser nacional.

Segundo Sayad (1998, 266), o entendimento político da modernidade é essencialmente um entendimento nacional e por isso as migrações forçam a reflexão sobre a ideia de nação. Segundo o autor, a imigração é a presença dentro da ordem do Estado-Nação de indivíduos não nacionais, ou nacionais de outra ordem nacional. De forma simétrica, a emigração, é a ausência de uma determinada ordem nacional dos indivíduos que a ela pertencem. Assim, para as categorias do nosso entendimento político, que criam a distinção entre nacionais e não nacionais, a presença do imigrante traduz “uma espécie de limite à perfeição esperada da ordem nacional” (Sayad 1998, 267). Por isso, segundo Redin (2015, 13), a imigração é patológica na ordem do Estado pois, referindo Sayad (1998), “o imigrante coloca em risco a ordem do Estado, fazendo-o a revelar seu caráter arbitrário, e a verdade sobre suas regras e forma de funcionamento”, ou seja, “a imigração faz pensar aquilo que é impensável e inaceitável nessa ordem, pois compromete sua própria existência”.

Ainda que a noção de Estados e nações sejam antigas, Quijano (2005, 130) afirma que o Estado Nacional é uma experiência específica da modernidade e determina uma sociedade nacionalizada, ou seja, organizada política e juridicamente com uma estrutura também específica, qual seja: povo, território e governo. No que se refere ao povo, o autor explica que a sociedade nacionalizada buscava uma identidade comum entre seus membros, consolidando a criação da ideia de nacionalidade como um vínculo político de pertencimento. Esse pertencer, por sua vez, foi traduzido como cidadania e passou a considerar como cidadão, com os direitos daí decorrentes, somente os nacionais (Minchola 2018, 16). Assim, a correlação entre nacionalidade e cidadania se estabeleceu e formou as bases jurídicas do indivíduo diante do Estado Nacional.

Conforme explica Sayad (1998), a identidade do indivíduo moderno foi inscrita como identidade cívica, e por isso o Estado só compreende o sujeito a partir do critério da nacionalidade. Ao definir o nacional, se estabelece uma distinção por exclusão dos não nacionais, “entre quem pode ou não ser considerado como sujeito político” (Redin 2016, 13). Essa exclusão, que Redin (2018; 2013) chama de originária, pois está na gênese da constituição do Estado enquanto arquitetura político-jurídica da Nação, é determinante da negação (legitimada) do direito à igualdade formal entre nacionais e não nacionais. A desigualdade formal entre nacionais e estrangeiros diante da lei é a expressão máxima da falência da pretensão da universalidade dos direitos humanos, cujos limites estão, paradoxalmente, em que garante tais direitos, o Estado Nacional. Assim, a partir do mito do contratualismo, Redin (2013) explica que a possibilidade participação política do indivíduo foi compreendida a partir da concepção do cidadão, o sujeito de direitos e deveres perante o Estado. Ao estrangeiro, não nacional e desprovido da condição de cidadania, é negado o direito de ação política.

O espaço político é um lugar exclusivo para o nacional e por isso o não nacional é excluído desse espaço: na perspectiva do imigrante, pois chega em um Estado que não o reconhece como nacional, e assim é excluído de direito; na lógica daquele que deixa a Nação, ou seja, do emigrante, é excluído de fato pois é um nacional ausente, já que decidiu viver fora da ordem nacional que o reconhece como tal (Sayad 1998, 269). Esse, segundo Sayad (1998, 276), é o princípio que determina a exclusão (política) do imigrante da própria ordem política, pois, como estrangeiro, desde o ponto de vista da nacionalidade, a ele é relegado somente aquilo que for estrangeiro ao campo político. Ao constituir os códigos de inclusão dos nacionais e exclusão dos não nacionais, o Estado delimita seu campo político, definindo aqueles que (de direito) podem participar da política (Sayad 1998, 276).

Ocorre que a ordem nacional neutraliza o caráter político que é próprio da imigração/emigração ao ser fundada no seio do Estado e do poder soberano que, por meio da autoridade da lei, determina a exclusão de quem deve ser despido do direito de ter direitos. Assim, ao afirmar que a apolitização da imigração dissimula sua verdade, Sayad (1998) permite a compreensão sobre os mecanismos de objetivação e controle do indivíduo empregados pelo Estado ao regulamentar a migração, restringindo ou incentivando fluxos a partir da conveniência e interesse nacional. O que seria o “interesse nacional” como justificativa para negar ou não a entrada e permanência de imigrantes se não a nulificação completa do ser baseada numa ordem de poder que determina o direito do indivíduo à própria vida? Na relação do Estado, da exclusão política do político, o imigrante é, enfim, pertencimento. No entanto, o pertencimento do estrangeiro não significa participação, mas sim um “pertencer de apoderação, como um objeto de produção”. Assim, o imigrante é incluído (pela apropriação, controle e objetificação) para ser excluído (da política, do espaço público de ação, da participação ativa e efetiva) (Redin 2013, 30).

Os novos fluxos migratórios, que representam os movimentos de mobilidade humana econômica internacional desde os países do Sul Global, mostram a verdade sobre o fato nacional que produz o lugar da clandestinidade para esses imigrantes a partir da criação de categorias jurídicas que definem quem pode ser considerado como imigrante regular. Quem não se enquadra nos interesses do Estado, no caso da migração voluntária, ou não é considerado refugiado, no caso da migração forçada, fica destinado a um não-lugar na ordem jurídica, que é o lugar da exclusão na ordem sócio-política e da exploração na ordem econômica. Isso significa que os limites do Estado na proteção dos direitos humanos da população imigrante está na sua estrutura ao constituir e legitimar a violência naturalizada na arbitrariedade de definir o imigrante “ilegal” (Redin 2013; 2015; 2016).

Quando o Estado define os critérios, hipóteses e situações que permitem o ingresso de imigrantes, por simetria, cria as categorias dos grupos que não podem ser recebidos. Dizer quem pode entrar significa, por outro lado, selecionar e excluir quem não pode entrar. Ocorre que a falta de permissão na ordem jurídica para poder entrar não encontra correspondência na realidade concreta, como se verifica com a quantidade de fluxos de imigrantes indocumentados. Da mesma forma, ao elencar as motivações (trabalho, estudo, reunião familiar) que admitem ao sujeito a possibilidade da “vontade” de imigrar - na ideia de que a migração é, desde que com autorização estatal, voluntária - o Estado reduz toda a complexidade da subjetividade humana, de projetos pessoais de vida ou familiares, em linhas gerais, abstratas e objetivas. Assim, a impossibilidade em conformar fato e direito revela que a clandestinidade/ilegalidade não são exceções, mas compõe como parte da regra, produzidas dentro da dimensão essencialmente política das migrações.

Nesse sentido é que o direito humano de migrar é uma contradição à compreensão do Estado, pois significaria romper com a racionalidade que determina o próprio poder soberano estatal de decidir quem pode ou não possuir o vínculo político de pertencimento que dá direito a nacionalidade. Esse mesmo poder fundamenta uma violência institucionalizada que, por meio do mito do direito como autoridade, permite ao Estado decidir arbitrariamente quem ele autoriza ou não dentro das suas fronteiras territoriais (Redin 2013). Assim, todas as condições para ingresso e permanência de imigrantes são definidas por vontade e interesse do Estado, como se a complexidade do processo da mobilidade pudesse ser conformada em um critério de lei, que a norma pudesse controlar a vida.

Segundo explica Derrida (2003, 25), esse é o paradoxo da hospitalidade de direito, ou seja, a hospitalidade baseada em um “pacto” com o Estado, que pressupõe condições ou deveres, ou, nas palavras do autor, a interrogar “como te chamas?” àquele que chega. Na hospitalidade absoluta, rompe-se com a hospitalidade da lei e da justiça, pois não mais se exige “reciprocidade (a entrada em um pacto), nem mesmo seu nome” (Derrida 2003, 25). O direito de migrar, portanto, é impensável na racionalidade do Estado-Nação e do poder de controle sobre quem entra e quem sai do seu território (Redin 2013).

Assim, a tensão causada pelo imigrante diante da arquitetura político-jurídica do Estado se expressa em estranhamento, e por isso, a postura estatal diante do sujeito que chega, em busca de estabelecer sua vida, é sempre no âmbito securitário. Isso se dá porque a imigração revela o limite da perfeição estatal enquanto unidade cultural, linguística, étnica e a exclusão do estrangeiro é, segundo Douzinas (2009, 363), constitutiva da identidade nacional, assim como também é da própria subjetividade humana. Da mesma forma como a estrangeiridade (aquilo que não se conhece) que habita em todo ser humano e se revela pelo contato com o outro, muitas vezes causando medo, aversão ou ódio, o mesmo se passa com o Estado-Nação que, diante do não nacional, se expressa pela xenofobia e discriminação (Douzinas 2009, 362). Dentro da lógica da nacionalidade, explica Sayad (1998, 273), só se admite aquilo que se integra dentro de uma mesma identidade, homogeneidade, interioridade. Assim, a ameaça é tanto maior quanto provém do exterior, ou seja, da exterioridade, da alteridade, da alogeneidade, que as categorias da ordem do nacional, ou da ordem dos “mesmos” não podem integrar ou interpretar (Sayad 1998, 273).

Não por acaso, as legislações migratórias contém institutos aparentemente contraditórios que, na verdade, buscam pôr um fim na “patologia” que representa a imigração: a naturalização, quando o estrangeiro precisa abandonar parte das suas referências culturais (pelo requisito de tempo de residência, constituição de família, mudança de nome) para fazer parte e assim ser assimilado em uma nova comunidade nacional; e a deportação, quando o estrangeiro definitivamente não se enquadra no “interesse nacional” e por isso é banido (de fato) para fora do país (e daquela ordem nacional). Se a naturalização e a deportação “resolvem” a imigração, como o Estado admite a imigração em si, aquela que não se “resolve”? A resposta a essa pergunta está em Sayad (1998, 45): o caráter eminentemente provisório que define a imigração (de direito) em contraponto com o caráter cada vez mais definitivo que caracteriza a imigração (de fato). Se para o Estado (de direito) a imigração é provisória, para o sujeito, cada vez mais a imigração se estende ao longo de toda vida. Assim, a permanente provisoriedade define o tratamento ao imigrante: negado do espaço político, seus direitos fundamentais não são reconhecidos e as políticas públicas de proteção são inexistentes.

Portanto, retomando Redin (2013), o caráter estruturante da exclusão (política) do não nacional na ordem do Estado nos permite compreender o lugar reservado aos novos fluxos migratórios do Sul Global: da apropriação por meio das redes de produção econômica e da exploração do trabalho, por meio do subemprego, da precarização e, não raro, de condições análogas à escravidão.

A separação entre estrangeiros e nacionais, entre os “mesmos” e os “outros”, no seio da modernidade, é determinante para que uns, considerados como sujeitos políticos dentro da Nação, tenham mais direitos que outros. Negar a igualdade formal para estrangeiros invoca uma separação de origem política que, ao determinar a sua exclusão do espaço público, os coloca como objetos, cuja utilidade está para os interesses e conveniência do Estado. Por outro lado, a exclusão originária, ou seja, da estrangeiridade, legitima e evidencia outros mecanismos que produzem a exclusão, no campo da igualdade material, derivada das estruturas coloniais e raciais de dominação dos povos não ocidentais e que determinam as fronteiras para garantia dos direitos da população migrante do eixo Sul Global (Redin 2018). Ou seja, não há como falar de imigração no Brasil contemporâneo sem perceber as questões raciais que são estruturantes da nossa sociedade em termos políticos e sociais e que estão enraizados de forma epistêmica e simbólica no tratamento conferido a população migrante negra, africana, latina, indígena, não ocidental.

Colonização e a divisão racial das identidades na construção moderna da nação

Falar da imigração contemporânea para o Brasil significa falar da incômoda presença de determinados grupos sociais diante da ordem hegemônica (racista e xenófoba) e que se expressa pela intolerância a determinadas culturas, povos e nacionalidades. Principalmente diante do contexto político e econômico da última década, o país passou a ser considerado como um destino favorável dentre a população de alguns países, atraindo muitos imigrantes de países africanos(as), principalmente senegaleses(as) e ganeses(as) normalmente em busca de oportunidades de trabalho, e outros fluxos intensos como de haitianos(as) e bolivianos(as) e venezuelanos(as), dentro das dinâmicas e realidades próprias dessa imigração. Nesse contexto é possível perceber tratamentos completamente distintos dependendo de quem é o imigrante e de onde ele vem. A imigração do Norte Global, apesar de bastante representativa em termos numéricos, sequer é assunto de discussão no espaço público, na política ou pela mídia. Essa é uma imigração totalmente legitimada e, por isso, vista como um movimento natural, que não gera qualquer questionamento ou dúvida por parte da sociedade ou no campo da política. Por outro lado, a chegada de imigrantes de países africanos e latinos tornou latente a discussão sobre o tema nas agendas políticas, na mídia e também nas universidades, levantando controvérsias sobre a desejabilidade desses fluxos, controle e regulação da imigração e questões sobre criminalidade e segurança pública.

O debate sobre a imigração para o Brasil e sua interseccionalidade com a questão racial e também de classe (Redin e Bertoldo 2019) garante as condições teóricas para compreender como as estruturas da modernidade e as fronteiras nacionais (simbólicas, culturais e territoriais) ainda estão vivas e presentes para determinados grupos, a contrário das inúmeras narrativas pós-modernas sobre globalização, cidadania e nacionalidade. Movimentos completamente distintos de outros períodos da história do Brasil, os desafios enfrentados por essa imigração atual - a exploração no mundo do trabalho; o preconceito e a xenofobia; a difícil relação com o Estado e os órgãos de segurança; a burocracia e a negação de direitos - têm lugar nas históricas relações de dominação colonial, racista e capitalista da modernidade. Ou seja, os processos de exclusão da população migrante no país hoje e da possibilidade do direito à igualdade material (efetiva condição de igualdade no acesso a direitos) estão estruturados na concepção racializada e burguesa do Estado Nação, e legitimados pela exclusão no campo da igualdade formal, ou seja, da nacionalidade versus a estrangeiridade.

O racismo, na definição de Almeida (2018, 21), trata-se de uma forma sistemática de discriminação com fundamento na ideia de raça e, conforme Quijano (2005, 117), adquiriu seu sentido moderno somente a partir da América, como principal “arma ideológica da política imperialista europeia” (Arendt 2012, 233) para legitimar as relações de dominação impostas pela conquista. O padrão de poder instaurado pela constituição do capitalismo colonial-moderno e eurocentrado teve como eixo fundamental a classificação social da população a partir da criação da noção de raça, que legitimou uma separação, supostamente de ordem natural (biológica), entre os conquistadores e os conquistados, e que situava uns em condição de inferioridade com relação aos outros (Quijano 2005, 121).

Conforme Almeida (2018, 20-1), o contexto de expansão comercial e burguesa, ainda no século XVI, forjou as bases materiais para a construção de um saber filosófico que, tendo o homem como seu principal objeto cognoscente e cognoscível, tornou possível a comparação e, posteriormente a classificação de diferentes grupos humanos por suas características físicas e culturais. A partir daí surge então uma distinção, de caráter filosófico-antropológica, entre civilizado e selvagem e que, no século seguinte, com os ideais das revoluções liberais e o iluminismo ressignificou essa distinção como civilizado x primitivo. Isso porque, explica Quijano (2005, 121), a noção de que a modernidade e racionalidade eram experiências exclusivamente europeias fez com que se gerasse uma nova perspectiva temporal da história, situando os povos colonizados como atrasados, primitivos ou “anteriores” aos europeus. O movimento que se seguiu, de levar essa civilização para onde ela não existia “redundou em um processo de destruição e morte, de espoliação e aviltamento, feito em nome da razão e a que se denominou de colonialismo” (Almeida 2018, 21).

Essas concepções resultaram em uma racionalidade própria, o eurocentrismo, que ao impor como mundialmente hegemônica uma perspectiva dualista e binária do conhecimento, fez com que as relações intersubjetivas e culturais que se estabeleceram desde então entre a Europa e o resto do mundo fossem concebidas a partir da codificação de novas categorias: oriente-ocidente; primitivo-civilizado; mágico/mítico-científico; racional-irracional; tradicional-moderno. Assim, os dois elementos nucleares e míticos do eurocentrismo, o dualismo e o evolucionismo, permitiram à Europa a compreensão da história da civilização humana como uma trajetória que surge desde um estado natural e finaliza na Europa; bem como as diferenças entre Europa e não-Europa passam a ter sentido como distinções da natureza, pela concepção racial, e não como relações de poder. Ou seja, a associação entre a classificação racial universal e o etnocentrismo conduziu ao pensamento de que os europeus não só superiores, mas naturalmente superiores aos demais povos ao redor do mundo (Quijano 2005, 121- 3).

Esse processo, segundo Quijano (2005, 121), levou a Europa ao controle hegemônico das subjetividades, da cultura e do conhecimento, transformando-a no centro do sistema-mundo moderno por meio da apropriação dos conhecimentos das populações colonizadas que fossem úteis ao desenvolvimento do projeto capitalista e colonial de poder. Por outro lado, os colonizadores reprimiram o tanto quanto fosse possível “as formas de produção de conhecimento dos colonizados, seus padrões de produção de sentidos, seu universo simbólico, seus padrões de expressão e de objetivação da subjetividade”. Em terceiro lugar, forçaram os colonizados a reproduzirem tudo aquilo que era útil para a dominação europeia, desde as atividades materiais e tecnológicas até no campo subjetivo e religioso.

Nesse sentido é que Mignolo (2017, 2) explica que não há como pensar a modernidade sem a colonialidade. Por trás da retórica sobre a modernidade, que celebra as conquistas referentes à construção da civilização ocidental, está escondido o seu outro lado, qual seja, a globalização de um tipo específico de economia (o capitalismo) pelo mundo inteiro à custa da dispensabilidade das vidas humanas; e o domínio sobre a subjetividade e a identidade humana, sob a afirmação da inferioridade entre diferentes povos, culturas e saberes a partir da criação e definição da ideia de raça (Mignolo 2017, 4). O que se passou a chamar modernidade, muito além da racionalidade iluminista europeia, constituiu-se, nas palavras de Almeida (2018, 80) pelo tráfico, escravidão, ideais racistas, pelo colonialismo, bem como, afirma Dussel (1994, 49), pelo domínio dos corpos por machismo, pela imposição cultural, pelos tipos de trabalho impostos e pelas instituições criadas com a nova forma política. Voltando à compreensão sobre a alteridade, a colonização da vida cotidiana de indígenas e de negros escravizados com o processo de modernização/civilização europeu foi a primeira forma de subsumir e alienar “o outro” ao “mesmo”, como objeto de violência pura (Dussel 1994, 49).

A formação de relações sociais fundadas nessa idéia, produziu na América identidades sociais historicamente novas: índios, negros e mestiços, e redefiniu outras. Assim, termos com espanhol e português, e mais tarde europeu, que até então indicavam apenas procedência geográfica ou país de origem, desde então adquiriram também, em relação às novas identidades, uma conotação racial. E na medida em que as relações sociais que se estavam configurando eram relações de dominação, tais identidades foram associadas às hierarquias, lugares e papéis sociais correspondentes, com constitutivas delas, e, conseqüentemente, ao padrão de dominação que se impunha. Em outras palavras, raça e identidade racial foram estabelecidas como instrumentos de classificação social básica da população (Quijano 2005, 117).

Essa reorganização das identidades, apresentada por Quijano (2005), e das estruturas de organização do trabalho e da economia está diretamente relacionada à constituição dos Estados-Nação modernos que, em sua gênese, estão ligados a um “processo de colonização e de desintegração de algumas sociedades e algumas culturas por outras” (Quijano, 2014, 767). Além disso, a estrutura de poder que constitui um Estado-Nação depende da centralização de um poder político sobre um determinado território e uma população. Essa população, na ideia de nação, significa uma comunidade e por isso necessita que seus membros tenham algo em comum a ser compartilhado, que seja real e não somente imaginado. Nesse sentido Quijano (2005, 130) explica que a centralização estatal na Europa Ocidental paralela à dominação que iniciou na América representa um duplo movimento histórico: a colonização interna de diferentes povos e identidades que habitavam os mesmos territórios referentes dos futuros Estados-Nação europeus; e a colonização imperial ou externa, exercendo domínio sobre os povos que eram não só culturalmente diferentes dos colonizadores, mas também territorialmente estrangeiros. Por isso, os processos de nacionalização e a formação das estruturas de poder do Estado-Nação só foram possíveis com a conquista de um espaço de dominação dos diversos povos e identidades que o habitavam (Quijano 2005, 131).

Nesse mesmo sentido, Almeida (2018, 76) explica que a nacionalidade não se constituiu pelo acaso ou de forma espontânea, mas é um resultado de “práticas institucionalizadas de poder condicionadas por estruturas político-econômicas” que atuam decisivamente na construção dos laços de identidade que compõe a ideia de nação. Assim, o nacionalismo, ao criar as regras de pertencimento dos indivíduos, e lhes atribuir uma subjetividade e uma identidade, também cria as regras de exclusão. “Portanto, fez parte do projeto nacional a produção de um discurso sobre o outro, tornando racional e emocionalmente aceitável a conquista e a destruição daqueles com os quais não se compartilha uma identidade” (Almeida 2018, 79).

Especificamente sobre a formação dos Estados latino-americanos, a nação foi estabelecida exatamente por aqueles que herdaram os privilégios do poder colonial, cuja concepção eurocêntrica da realidade local levou à construção de um Estado Nacional segundo a experiência europeia, ou seja, por meio de uma homogeneização étnica e cultural da população dentro das suas fronteiras. Assim, a construção das sociedades imaginadas como nação na América Latina não ocorreu por meio da descolonização das relações entre os grupos populacionais, mas pela massiva eliminação de alguns deles, como indígenas, negros e mestiços. Da mesma forma, a redefinição do poder para garantir a constituição do Estado não se deu pela democratização das relações sociais e políticas, mas pela exclusão de parte da população. Salvo algumas exceções parciais, os Estados-Nação na América Latina são a expressão política da colonialidade, ou seja, da perpetuação da hegemonia do eurocentrismo na cultura latino-americana (Quijano 2005, 133; 2014, 767-9).

A articulação entre os aspectos políticos, econômicos e a constituição de novas identidades reorganizou a vida social para constituição dos Estados Nacionais da América Latina (Almeida 2018, 76). Segundo Mignolo (2017, 4), a nova ordem global estava assim interconectada pelo mesmo tipo de economia que, segundo Quijano (2005, 118) passou a imperar sobre as formas de controle e exploração do trabalho e da produção, apropriação e distribuição de produtos no mercado mundial, e que incluiu a escravidão, servidão e o trabalho assalariado. Nesse processo, o elemento da raça transformou-se em um critério para distribuir a população nos níveis, papeis e lugares na estrutura de poder nova sociedade, inclusive na nova estrutura global de controle do trabalho. Assim, as novas identidades produzidas a partir da ideia de raça passaram a estar diretamente associadas com a divisão do trabalho, impondo, a nível global, uma sistemática divisão racial do trabalho, presente e determinante das relações sociais das sociedades contemporâneas (Quijano 2005, 118).

Nesse mesmo sentido é que Almeida (2018, 68-78) afirma há uma relação estrutural e histórica entre o Estado, o racismo e a economia, ou seja, uma relação constitutiva e não meramente funcional ou lógica. O autor explica também que nas sociedades capitalistas, os conflitos raciais (e de gênero), embora não exclusivos delas, adotam uma forma especificamente capitalista, havendo um “nexo estrutural entre as relações de classe e a constituição social de grupos raciais e sexuais que não pode ser ignorado”. Isso porque o controle da população pelo Estado engloba a formação de subjetividades que sejam adaptadas ao capitalismo, o que depende de um planejamento do território pelo controle e vigilância. A ideia da nação, por sua vez, se constitui a partir de uma tecnologia de poder que estabelece hierarquias sociais pela reprodução da diferença baseada em raça e gênero. Dessa forma é que a concepção de nacionalidade e a dominação capitalista se apoiam em uma construção espaço-identitária, visualizada na classificação racial, sexual étnica e religiosa como estratégia de exercício de poder e controle sobre a população de um determinado território.

Uma das formas de exercício desse controle é a definição de critérios e regras para entrada e permanência no território a partir da concepção de uma nacionalidade (identidade e cultura) determinada pelo direito, e que legitima os processos de exclusão de determinados grupos sociais e a negação dos seus direitos fundamentais ou “humanos”. O processo histórico de criação dos estados nacionais latino-americanos, incluindo o Brasil, mostra que a pretensa busca por homogeneidade só se efetivou pela violência e exclusão da alteridade não-ocidental (Minchola 2018), ou seja, não branca, não proprietária e também não masculina, e que ainda hoje determinam uma xenofobia seletiva diante da estrangeiridade não europeia e que se expressa não somente na aversão ou ódio ao não nacional, mas na desigualdade formal e material de direitos.

Direitos humanos e o tratamento político-jurídico de imigrantes no Brasil

A partir da reflexão teórica sobre como a separação do nacional e do não nacional e entre brancos e negros é constitutiva da racionalidade moderna e da exclusão do “outro” no seio do estado nacional, por fim, passamos a analisar de que forma essas construções estão sendo expressas no tratamento político-jurídico conferido a imigrantes no país. As experiências de quem vive a migração têm mostrado que controle migratório, securitização, falta de políticas públicas e negação de direitos humanos são uma realidade cotidiana e revelam sobre a aversão e exclusão do outro a partir da xenofobia e racismo.

Ao longo da história do Brasil até a contemporaneidade, as migrações sempre foram incentivadas ou restringidas a partir de sua “utilidade” e conveniência para os mais distintos interesses de Estado e suas elites políticas e econômicas, revelando a arbitrariedade e seletividade sobre quem se deseja ou não dentro no território. Como veremos, essa seletividade está diretamente relacionada com os processos de dominação colonial na história da América Latina e, com suas especificidades, no Brasil, onde raça, classe, origem étnica e nacionalidade determinam até os dias atuais a exclusão de diversos grupos sociais.

Os estudos de Giralda Seyferth (2002) sobre a história da colonização demonstraram que o fluxo de migrantes europeus para o Brasil no século XIX foi parte de um projeto de povoamento que transformou o Brasil em um país de imigração, na tentativa de construção de uma identidade nacional pautada pelo princípio da superioridade branca e do trabalho agrícola em pequenas propriedades familiares. Conforme explica a autora, o Estado passou a definir os “bons” imigrantes, que eram os colonos europeus, considerados bons trabalhadores da terra e que traziam consigo a própria ideia de civilidade, antítese da cultura dos povos bárbaros (todo não europeu), considerados de raça inferior e que não serviam para formação do tipo nacional desejado. Esses foram, consequentemente, proibidos e barrados, como é o caso da perseguição que sofreram os imigrantes Coolies, “claramente influenciada pela presunção de inferioridade dos asiáticos, incluídos no mesmo tipo racial dos índios” (Seyferth 2002, 124), não sendo uma imigração considerada vantajosa ou conveniente pelas elites da época (Domenech 2015, 26).

Assim, completamente diferente do tráfico de negros(as) para e economia escravista do Brasil, a “imigração” desse período remetia necessariamente ao significado de “europeu”, pois fazia parte de uma política estruturada de colonização do país e formação de uma nacionalidade brasileira a partir da “raça” branca, considerada superior. Nas palavras da autora: “Em resumo, a vigência do regime escravista faz da África apenas um lugar de negros bárbaros e não de imigrantes potenciais” (Seyferth 2002, 119-20). A autora apresenta também um decreto da época que incluía uma restrição explicitamente racista ao dificultar a entrada de “indígenas da Ásia ou da África”. Esse período revelou assim aspectos importantes da formação do estado brasileiro, a partir da ideia da desejabilidade da raça branca europeia, considerada como a única civilizada e trabalhadora, e onde o controle ou incentivo de determinados fluxos migratórios teve um papel determinante aos objetivos do Estado.

A partir dos anos seguintes, a discussão e institucionalização da imigração tornaram-se mais intensas no país e nas agendas políticas do Estado, juntamente com o fortalecimento do princípio da nacionalidade. Nos anos 1990, intensificaram-se os esforços para formação de uma identidade nacional própria, o que refletiu diretamente no tratamento dado à imigração no país, e na preocupação com o “abrasileiramento” dos imigrantes europeus a partir dos ideais de assimilacionismo (Minchola 2018).

Nos primeiros anos do século XX, a pauta da imigração no Brasil ainda permanecia bastante associada ao contexto do período anterior, em razão das políticas de povoamento da Nação e o incentivo à vinda de imigrantes europeus. A partir dos anos de 1930, com a Era Vargas e o contexto internacional da grande guerra, houve intensa produção legislativa sobre a imigração no país, expressando claramente as ideais eugenistas do momento político. Nos anos subsequentes, as legislações que surgiram foram confirmando uma política de controle das migrações para o Brasil com base em interesse e segurança nacional, marcada pelo aumento das restrições para entrada de imigrantes no país; fixação de cotas para estrangeiros; preferência por trabalhadores nacionais para a continuidade do processo de colonização; possibilidade de expulsão de estrangeiros indesejáveis ou nocivos à ordem pública por motivos de segurança e defesa nacional; políticas de adaptação de brasileiros descendentes de estrangeiros; e a constante reprodução de elementos de eugenia e supremacia étnica (Claro 2015, 136-7). Essas características perpassam diversas normativas, leis e Constituições da época, conforme alguns exemplos:

Decreto nº 3010 de 20 de agosto de 1938.

Art. 1º Este regulamento dispõe sobre a entrada e permanência de estrangeiros no território nacional, sua distribuição e assimilação e o fomento do trabalho agrícola. Em sua aplicação ter-se-á em vista preservar a constituição étnica do Brasil, suas formas políticas e seus interesses econômicos e culturais (Brasil1938)

Decreto-Lei nº 7967, de 18 de setembro de 1945.

Art. 2º Atender-se-á, na admissão os imigrantes, à necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica, da população, as características mais convenientes da sua ascendência europeia, assim como a defesa do trabalhador nacional (Brasil 1945)

Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 18 de setembro de 1946.

Art. 143 O Governo Federal poderá expulsar do território nacional o estrangeiro nocivo à ordem pública, salvo se o seu cônjuge fôr brasileiro, e se tiver filho brasileiro (art. 129, nº s I e II) dependente da economia paterna.

Art. 162. A seleção, entrada, distribuição e fixação de imigrantes ficarão sujeitas, na forma da lei, às exigências do interesse nacional (Brasil 1946).

Já a segunda metade do século XX tem como marco a instituição da Ditadura Civil-Militar que, dentre as muitas alterações no campo político e jurídico, resultou também no Estatuto do Estrangeiro, Lei nº 6.815 de 1980, vigente até 2017. Ultrapassado o período de intensa colonização do país, o interesse das elites locais não estava mais no povoamento e ocupação do território, mas no desenvolvimento nacional, priorizando uma imigração útil ao complemento da mão de obra (Césaro e Gularte 2015, 57). Com o Estatuto do Estrangeiro, houve uma estruturação da política migratória brasileira que trouxe novos elementos para seleção dos fluxos migratórios, com regulamentação detalhada dos tipos de vistos de entrada e requisitos; sistematização das medidas compulsórias; e a limitação da igualdade de direitos entre nacionais e estrangeiros (Claro 2017, 142).

Essa legislação, cujos efeitos estão presentes até hoje na sociedade brasileira, reproduziu a lógica da discricionariedade do Estado, em que a nacionalidade constituiu como o critério entre o “sujeito” e o simples “objeto” para fins de interesse nacional (Redin 2015). Mesmo após a redemocratização do país, com os avanços da previsão e proteção de direitos humanos da Constituição Federal de 1988, a migração nunca deixou o lugar de significação que a constituiu ao longo da história na própria ordem do Estado: da utilidade, sujeição e controle de corpos. Essa perspectiva, segundo Minchola (2018) é um dos fatores que explica como foi possível a coexistência de duas ordens completamente distintas sob a égide dos direitos humanos: para cidadãos, a lógica da cidadania a partir dos princípios dos direitos fundamentais; para estrangeiros, não nacionais, a lógica da apropriação do ser pela livre discricionariedade do poder estatal.

Se as migrações do século XIX e XX eram vistas como positivas, pela correlação estabelecida entre “imigrante” e “europeu”, implicitamente criou-se uma fórmula de exclusão que passou a coexistir com as mesmas políticas de incentivo à imigração. Todos aqueles que não se enquadravam na definição de “imigrante” passaram a ser impedidos de entrar, o que resultou, com o tempo, na criação de diversos grupos considerados como imigrantes indesejáveis. Com o tempo, explica Domenech (2015, 26), o aumento das exigências burocráticas e a importação de institutos como da deportação e expulsão foram determinantes na produção do imigrante como sujeito “ilegal”. É justamente nesse sentido que a migração do século XIX e XX não pode ser comparada com os atuais fluxos de imigrantes, advindos do Sul Global, para o Brasil. Enquanto aquela migração foi subsidiada e fez parte de uma política de incentivo do Estado para ocupação do território, os desafios enfrentados hoje pelos imigrantes africanos ou latinos refletem a lógica da negação do sujeito, do controle pelo Estado e da produção da “ilegalidade” e clandestinidade. Por outro lado, o período das “grandes migrações” nos ajuda a compreender como essas barreiras foram sendo construídas com a consolidação de um Estado que é, estruturalmente, colonial, racista e xenófobo.

Os projetos nacionais brasileiros, desde a implantação da primeira república, explica Almeida (2018, 82), foram acompanhados da institucionalização do racismo como parte do imaginário social, sendo que as políticas de imigração não só representaram um reflexo, mas foram estruturantes na formação do nacionalismo racista brasileiro. Nas palavras do autor, o Brasil é um exemplo de como o racismo foi convertido em uma tecnologia de poder e de internalização das suas contradições históricas. Até hoje, a compreensão sobre a formação de uma identidade nacional a partir da imigração (ou seja, vinda de europeus) representa um atentado à história e a compreensão sobre a diáspora africana, ou seja, a violência do modo como a África se espalhou pelo mundo, inclusive no Brasil. Assim, as desigualdades geradas pelos 388 anos de escravidão, de tráfico e colonialismo ainda estão diluídas em uma ideia simplória sobre a composição cultural e étnica do país, e que ainda negam o racismo enquanto elemento estrutural de formação da nossa realidade histórica, social e política (Almeida 2018, 82-3).

Nesse sentido, o controle das migrações internacionais, expressão da violência do poder de dizer quem pode ou não estar no território (poder soberano), constitui um importante fator que demonstra como o Estado e, consequentemente, o princípio da nacionalidade, foram consolidados na história do Brasil a partir da racialização e da inferiorização de determinadas culturas, povos e etnias. Em um primeiro momento, as legislações do período das “grandes migrações”, com a substituição de mão de obra escrava e a tentativa de branqueamento da população para construção de uma identidade nacional, tinham um caráter declaradamente racista, com a proibição à entrada de africanos e asiáticos. Afinal, africanos entraram no país, com a “condição” de serem escravos e traficados, já que como imigrantes não eram bem vindos. Nos períodos subsequentes, as políticas eugenistas da Era Varga também refletiram na legislação sobre a imigração, intensificando os critérios de seletividade e controle para entrada, permanência, expulsão e naturalização de estrangeiros. Esse modelo continuou a ser reproduzido nas legislações posteriores e durante a ditadura, com a aprovação do Estatuto do Estrangeiro, onde a figura do imigrante foi sendo cada vez mais relacionada à ideia de uma constante ameaça e perigo ao Estado/governo e aos próprios nacionais, como um potencial risco à ordem pública, aos costumes e à segurança.

Muitas foram as mudanças em termos legislativos até o momento atual, sobretudo após a promulgação da Constituição Federal de 1988, bem como a aprovação da Nova Lei de Migração no ano de 2017 após intensas demandas por parte da sociedade civil para substituição do antigo Estatuto do Estrangeiro. Assim, a lei foi aprovada como uma tentativa de reconhecimento dos direitos humanos da população migrante e refugiada no país, e consequente superação das lógicas ligadas ao âmbito securitário.

Ocorre que, apesar de uma série de princípios[1] afirmando a universalidade dos direitos humanos, a não criminalização da migração e a promoção de entrada regular e regularização de fluxos, permaneceu negando o direito de imigrar e a própria igualdade formal, harmonizando com a ordem que gera a exclusão estrutural do imigrante (Redin e Bertoldo 2019). No texto “Novo marco legal das migrações no Brasil: entre a proteção, a discricionariedade e a exclusão”, o qual retoma a produção teórica de Redin (2015; 2016), discutimos que a nova lei de migração transita entre a proteção, a discricionariedade e a exclusão, pois, ao não fazer o enfrentamento necessário a essa ordem, permaneceu condicionando o imigrante ao poder discricionário do Estado e enfraqueceu a carga normativa dos princípios e direitos previstos (Redin e Bertoldo 2019). Esse contexto ficou demonstrado a partir dos vetos parciais que a lei sofreu, sobretudo com a exclusão da previsão de anistia documental, bem como com o regulamento e as normativas do poder executivo que criaram excessivos entraves burocráticos para regularização migratória, conforme objeto da Nota apresentada pelo Migraidh ao PL 2516/2015:

O documento deve ser compreendido como um direito, atendidas as condições jurídicas, e não uma concessão do Estado. Portanto, a documentação não pode ser colocada no plano do controle e da benevolência do Estado. [...]considerando que a lei se propõe a reconhecer os direitos de imigrantes e, mais especialmente, o direito humano de imigrar, deverá estar assegurado o direito subjetivo de documento. Portanto, o porte de visto precisa garantir o direito de ingresso no Brasil e não representar mera expectativa, o que retornaria ao paradigma de discricionariedade do Estado e não reconhecimento do estrangeiro como sujeito de direito (Redin e Minchola 2015).

Assim, a incompatibilidade existente entre o princípio da regularização documental e a realidade vivenciada pelos(as) imigrantes está estabelecida na política de controle de ingresso e permanência no território, por meio de um sistema de vistos e autorização de residência que continua restringindo o acesso documental à uma imigração para mão de obra “qualificada” e vinculada aos interesses políticos e econômicos do país (Redin e Bertoldo 2019). Quando a lei regulamenta[2], no campo da migração laboral, atividades profissionais específicas para concessão de vistos e residência, principalmente relacionadas à atividade empresarial do país, coloca todos(as) os(as) demais imigrantes em uma situação de impossibilidade de obter documentação e por isso, muito mais suscetíveis à condição de vulnerabilidade. A partir da concepção de Sayad (1998) de que o imigrante só justifica sua presença no território na condição de corpo-trabalho, afirmada pela permanente provisoriedade, a nova lei reproduziu essa lógica ao permitir a discricionariedade sobre o acesso documental, que conduziu a uma proteção seletiva, reservando a alguns sujeitos o lugar da clandestinidade e da exploração.

A outra face desse sistema é a previsão da acolhida humanitária que ganhou status legal, previsto como uma modalidade específica do visto temporário com a aprovação da nova lei. Nesse caso, apesar da tentativa em estender a proteção, típica do direito dos refugiados, para o âmbito das migrações, a norma manteve a compreensão dentro do âmbito da discricionariedade do Estado ao afirmar a mera “expectativa de direito” com relação ao visto. Assim, a lei deixou espaço para previsão de hipóteses taxativas no campo administrativo e legal e que refletem a realidade atual do visto por acolhida humanitária: restrito para nacionais do Haiti, Venezuela e outras situações de interesse nacional. Além disso, ao vincular o tratamento de determinados fluxos migratórios ao âmbito humanitário, o Estado determina a exclusão de todos os demais imigrantes que não são “aptos” a serem inseridos nessa ordem, e se desresponsabiliza por uma série de elementos estruturais que produzem as desigualdades no contexto internacional.

Da mesma forma, a possibilidade de ingresso no território por motivação de estudo foi prevista na Lei como mais uma hipótese de visto temporário ou autorização de residência, destinada ao “imigrante que pretenda vir ao País para frequentar curso regular ou realizar estágio ou intercâmbio de estudo ou de pesquisa” (Brasil 2017a). Nesse caso, a autorização de residência poderá ser concedida pelo prazo máximo de um ano, cuja renovação até a conclusão do curso depende de comprovação sobre o “aproveitamento escolar” do solicitante e de meios de subsistência (Brasil 2017b). Além disso, o maior contra senso dessa modalidade de visto/residência está na exigência do solicitante assinar um termo de compromisso afirmando que não está vinculado a nenhum projeto de ensino/pesquisa/extensão e não se enquadra como pesquisador ou cientista, mas somente como estudante regular em qualquer grau de formação (desde o ensino básico até o pós-doutorado)[3]. Na prática, o imigrante estudante fica diante de uma escolha impossível, conseguir documento ou exercer as atividades vinculadas à sua própria condição. Além disso, o prazo temporal de validade da autorização de residência também gera uma situação limite para o(a) imigrante: ao finalizar o curso precisa de imediato converter sua autorização de residência, ou seja, enquadrar-se em alguma das demais hipóteses legais, sob pena de ficar indocumentado no país.

O novo sistema de vistos e autorização de residência tem demonstrado, portanto, a mesma lógica de classificação e seletividade para o ingresso e permanência no país, forçando o sujeito a enquadrar-se em hipóteses taxativas, que não geram qualquer direito, apenas expectativa, condicionado a sua regularidade documental à discricionariedade estatal (Redin e Monaiar 2018). Diante das dificuldades e burocracias impostas pela lei e demais normativas, imigrantes com menor condição econômica, sem uma proposta de trabalho específica ou, por exemplo, sem vínculo empresarial ou de estudo no país, tem “potencialmente reduzida a possibilidade de imigrar com documentos” (Redin e Monaiar 2018, 757). Não por acaso, a imigração representativa dessa condição é aquela advinda do Sul Global, como os exemplos de fluxos de imigrantes haitianos, senegaleses e ganeses que são vistos como um problema ao Estado e necessariamente incômodos. Para esses, o direito de obter carteira de trabalho no país, em muitos casos, tem sido concretizado pela única via possível da solicitação de refúgio, que é o único direito ligado ao ingresso no território. Essa realidade, no entanto, tem estabelecido uma situação de provisoriedade e incerteza para o imigrante, pois poderá ter seu pedido rejeitado, gerando uma situação de irregularidade migratória e possível deportação.

Além disso, com relação à igualdade, por exemplo, a Constituição Federal (1988) determina que os direitos políticos são exclusivos para brasileiros natos ou naturalizados, estabelecendo uma distinção no campo da igualdade formal que impede que imigrantes residentes no país participem da escolha dos representantes políticos ou mesmo possam concorrer a cargos políticos. Da mesma forma, a Lei de Migração sofreu um veto da previsão do § 2o do Art. 4 que estendia aos imigrantes a possibilidade de exercício de cargos ou funções públicas, permanecendo a impossibilidade (Brasil 2017c). A previsão da igualdade formal, sugerida pelo Migraidh na Nota Técnica encaminhada durante a tramitação do Projeto de Lei 2516/2015, era fundamental como forma de enfrentamento à relação originariamente excludente do não nacional com o Estado e que justifica e legitima outras formas de negação no acesso a direitos no campo da igualdade material (Redin e Minchola 2015).

Da mesma forma com que defendemos, em sede de monografia (Bertoldo 2017), que o tratamento destinado às migrações no Brasil é sexista, aqui buscamos compreender como esse controle das migrações também articula elementos de seleção e exclusão com base na raça, e que determina tratamentos completamente distintos em razão do lugar de onde vem o(a) imigrante. No caso das mulheres imigrantes, ao desconsiderar todos os elementos estruturais de exclusão e negação dos direitos das mulheres (sobretudo latinas, africanas e asiáticas), o Estado potencializa, por meio de suas leis e normativas, a realidade de exploração que vivenciam as mulheres do Sul Global quando migram e encontram barreiras para o acesso à documentos, políticas públicas e direitos. Nesse mesmo sentido, as legislações têm reproduzido classificações e discriminações que afetam diretamente a realidade da população imigrante negra no país, como um reflexo da constituição originariamente racista do Estado-Nação e da divisão racial do trabalho nas sociedades capitalistas.

Esse é o contexto da discussão acerca das múltiplas vulnerabilidades geradas em razão da condição migratória, sobretudo pela precariedade na relação com o Estado, inexistência de políticas públicas e barreiras de acesso aos demais direitos e garantia de proteção contra a xenofobia, preconceito e demais relações de exploração. Nacionalidade e raça revelam-se como elementos estruturantes da exclusão social que impedem determinados grupos, culturas e saberes de ocuparem lugares no espaço público. À imigração do Sul Global, incluída na ordem do Estado pelas redes de produção econômica internacional, é reservado um único lugar nessa ordem: da clandestinidade, dos subempregos e da inexistência diante do político.

Além disso, no campo da igualdade formal, ao perceber o sujeito na sua abstração ignora-se as determinantes sociais de raça, classe e gênero que definem a impossibilidade de uma igualdade no campo material. Resultado da concepção tradicional de direitos humanos, inaugurada com a Declaração Universal que, nas palavras de Douzinas (2009, 13), sob o “disfarce da universidade e da abstração”, definiu como verdadeiro um sujeito de direito bem concreto: o homem, branco e proprietário. Por isso, a efetivação de direitos humanos e a igualdade no campo material demandam uma responsabilidade estatal e institucional, por meio de políticas específicas para superação das relações coloniais de exclusão.

Se a estrangeiridade é a alteridade máxima, o outro por excelência, como afirmou Douzinas (2009), a exclusão daqueles(as) que não possuem vínculo político que lhes garanta cidadania reflete uma forma de discriminação negativa que, segundo Castel (2008, 15), instrumentaliza a alteridade como um fator de exclusão. Nesse sentido, Thula Pires (2018), a partir de Fanon e da centralidade da categoria da raça, discute sobre a inefetividade e violação de direitos humanos no contexto brasileiro. Segundo a autora, as categorias do nosso pensamento jurídico foram pensadas “pela e para a zona do ser”. Assim, a realidade daqueles que vivem na zona do não ser, quando tem seus direitos negados ou inefetivos, não representa no âmbito da violação, pois esta também é pensada dentro da zona do ser. Ao contrário, a violação na verdade significa a “mais bem-acabada aplicação do direito (e dos direitos humanos), nos termos em que foi construído para atuar e para os sujeitos para os quais ele foi pensado para funcionar” (Pires 2018).

Por isso, a violação dos direitos humanos no caso das corporalidades migrantes negras não choca ou escandaliza, pois tais categorias foram constituídas para o sujeito ocidental branco. Novamente retomando Douzinas (2009) e relembrando Arendt (2012) a suposta universalidade dos direitos humanos expõe seu limite máximo quando encara o ser humano na sua plena concretude racial, de classe e gênero, e sem um Estado que lhe assegure nacionalidade/cidadania.

Conforme demonstrado ao longo dessa seção, o tratamento político-jurídico aos(às) imigrantes no Brasil esteve, historicamente, vinculado à divisão racial da população entre o nós e eles, eu e outro, ser e não ser, expressão da dominação colonial e do sistema mundo imposto desde então. O ser estrangeiro, representativo da alteridade, nos dias de hoje reflete essa mesma construção e impacta, desde o político-jurídico nas experiências subjetivas, por meio do impedimento ao direito de migrar, da negação de direitos humanos e na inexistência de políticas públicas.

Conclusão

Por mais comuns que sejam os deslocamentos humanos ao longo da história, falar em migrações, no universo da modernidade, significa falar de um encontro com o outro estrangeiro e, por isso, um encontro marcado pelo estranhamento. Todo(a) aquele(a) que migra, em um mundo delimitado por fronteiras, vivencia as consequências desse encontro primeiramente diante do Estado Nacional (aquele onde, paradoxalmente, se busca acolhida) que, investido no poder de soberania, determina a exclusão primeira do não nacional. Entendemos que o Estado-Nação moderno, cuja lógica estruturou-se em separar “nós” e “eles”, nacionais de “estrangeiros”, negou aos últimos o direito à igualdade formal, justificando e legitimando a negativa ao direito de imigrar. Essa exclusão foi reproduzida no tratamento jurídico conferido aos imigrantes, inclusive na Nova Lei de Migração, e que nega o direito mais básico, o direito a ter direitos, o direito de ação, exclusivo do nacional.

Tal forma de tratamento, além disso, deriva das relações de dominação racial, também decorrentes do modelo moderno-colonial de dominação para controle e exercício do poder sobre territórios, povos e saberes. Assim, a lógica da separação política entre o nacional e o não nacional que determina a exclusão originariamente constituída com o Estado-nação legitima, no campo jurídico-político, também uma seletividade interseccionada pela dimensão racial, de classe e gênero. Ao produzirem uma compreensão (ideológica) de inferioridade entre distintas culturas a partir da naturalização da diferenciação e classificação racial, esse modelo até hoje reflete nas efetivas possibilidades da população migrante do Sul global no que diz respeito ao acesso a direitos no campo social, econômico e político.

Conforme demonstramos ao longo do texto, a presença migrante e “estrangeira”, negra, africana, latina, representativas das alteridades não ocidentais, desoculta as relações raciais e xenófobas nas suas mais diversas formas de expressão, especialmente no tratamento político-jurídico, por meio da securitização dos fluxos migratórios, insuficiência de políticas públicas e constante negação de direitos humanos.

Referências

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Arendt, Hannah. 2012. Origens do Totalitarismo: Antissemitismo, imperialismo, totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras.

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