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Do Haitianismo à nova Lei de Migração: Direito, Raça e Política Migratória brasileira em perspectiva histórica
Del Haitianismo a la nueva Ley de Migración: Derecho, Raza y Política Migratoria brasileña en perspectiva histórica
From Haitianism to the new Migration Law: Right, Race and Brazilian Migration Policy in a historical perspective
Revista nuestrAmérica, vol. 9, núm. 17, e5650701, 2021
Ediciones nuestrAmérica desde Abajo

Dossier "Migraciones africanas y afrodescendientes en nuestra América: Tránsitos, rutas y destinos"

Esta obra podrá ser distribuida y utilizada libremente en medios físicos y/o digitales. La versión de distribución permitida es la publicada por Revista nuestrAmérica (post print). Color ROMEO azul. Su utilización para cualquier tipo de uso comercial quedaestrictamente prohibida. Licencia CC BY NC SA 4.0: Reconocimiento-No Comercial-Compartir igual-Internacional

Recepción: 07 Diciembre 2020

Aprobación: 06 Mayo 2021

Publicación: 11 Julio 2021

DOI: https://doi.org/10.5281/zenodo.5650701

Resumo: O objetivo deste artigo é discutir as origens, os desdobramentos e as permanências da prática de racialização dos corpos negros, por meio das políticas migratórias brasileiras, desde fins do século XIX até os dias atuais. Para tal, serão utilizadas as abordagens epistemológicas pós e decoloniais, com destaque para o pensamento afro-diaspórico. Esta investigação propõe a inclusão da “raça” como categoria analítica indispensável para o estudo das migrações no Brasil. A partir de uma abordagem inédita, será examinado como o Haitianismo deixou um legado que serviu de substrato para as legislações explicitamente racializadas sobre imigração. O primeiro tópico tematizará a nacionalidade e cidadania no Brasil a partir de sua independência, nos momentos iniciais de constituição do Estado imperial pós-colonial. O segundo tópico aborda as relações entre a raça e as normativas migratórias do século XX. Por fim, na última seção, será apreciada a atual Lei de Migração a partir das concepções de racismo estrutural e colonialidade do poder.

Palavras-chave: raça, migrações, Haitianismo, Brasil, colonialidade do poder.

Resumen: El objetivo de este artículo es discutir los orígenes, los ramos y las permanencias de la práctica de racialización de cuerpos negros, por medio de las políticas de migración brasileñas, desde fines del siglo XIX hasta los días actuales. Para esto, serán utilizadas los abordajes epistemológicos post y decoloniales, en especial el pensamiento o afro-diaspórico. Esta investigación propone la inclusión de la "raza" como categoría de análisis indispensable para el estudio de las migraciones en Brasil. A partir de un abordaje inédito, será examinado como el "haitianismo" dejó un legado que sirvió de sustrato para las legislaciones explícitamente racializadas sobre inmigración. El primer asunto traerá el tema de nacionalidad y ciudadanía en Brasil a partir de su independencia, en los momentos iniciales de su constitución del Estado imperial post colonial. El segundo asunto tópicos trata las relaciones entre raza y las normativas migratorias del siglo XX. Por último, está la sección en que será apreciada la actual "Lei de Migração" a partir de las concepciones de racismo estructural y colonialidad del poder.

Palabras clave: raza, migraciones, haitianismo, Brasil, colonialidad del poder.

Abstract: The aim of this article is to discuss the origins, expansion and permanences of the practice of racialization of black bodies, through brazilian migration policies, from the end of the 19th century to the present day. For this purpose, post and decolonial epistemological approaches, specially the afro-diasporic thinking, will be used. This research proposes the inclusion of "race" as an indispensable analytical category for the study of migrations in Brazil. From an unprecedented approach, it will be examined how Haitianism has left a legacy that served as a substrate for explicitly racialized legislation on immigration. The first topic will address the nationality and citizenship in Brazil starting from its independence, in the initial moments of constitution of the post-colonial Imperial State. The second topic addresses the relations between race and the migratory normatives of the 20th century. Finally, in the last section, the current Migration Law will be appreciated from the conceptions of structural racism and coloniality of power.

Keywords: race, migrations, Haitianism, Brazil, coloniality of power.

Introdução

A nova Lei de Migração brasileira, em vigor desde 2017, representa um inequívoco avanço em relação à legislação anterior deste país sobre o tema. Historicamente, o Brasil produzira um conjunto de políticas de imigração que, tanto no Império quanto na República, traduziam-se no incentivo (material, jurídico e burocrático) ao embranquecimento da nação operado, sobretudo, pelo estímulo à vinda de europeus, ao passo que eram criadas barreiras ou até proibições explícitas à entrada de migrantes racializados advindos do chamado Sul global. Contra eles, a polícia foi utilizada com frequência, fosse para obstar sua chegada, fosse para criminalizar sua presença ulterior na sociedade.

O marcador de ‘raça’, portanto, operou como critério de seleção e hierarquização em diversas normas jurídicas sobre a matéria, como poderá ser confirmado pela análise, a seguir, do patrimônio jurídico migratório produzido por décadas a fio. Por isso, o presente artigo parte da premissa de que é indispensável introduzir a “raça” como categoria analítica para o estudo das migrações no Brasil. Como veremos, a sua virtual ausência na atual Lei de Migração revela aspectos questionáveis que precisam ser endereçados. Dito isso, o objetivo deste artigo discutir as origens, os desdobramentos e as permanências das práticas de racialização e controle dos corpos negros a partir das políticas migratórias brasileiras, desde fins do século XIX até os dias atuais. Para tal, serão utilizadas as abordagens epistemológicas pós e decoloniais, com destaque para o pensamento afro-diaspórico.

Argumenta-se aqui que em se tratando de migrações, o marcador de ‘raça’ termina informando a construção de outros, como os de ‘nacionalidade’ e ‘cidadania’, uma vez que as políticas migratórias não se restringem ao acesso, mas, em boa medida, ao alcance que cada tipo (racial) de imigrante terá para desfrutar dos direitos de cidadania concedidos aos nacionais deste país. Em virtude destas conexões, o primeiro tópico levantará a discussão sobre nacionalidade e cidadania no Brasil a partir de sua independência, nos momentos iniciais de constituição do Estado imperial pós-colonial.

Mecanismos como a prática de suavizar ou silenciar o racismo estruturante da sociedade brasileira - mediante comparações com casos prima facie mais evidentes de segregação racial e de um ordenamento jurídico cego e supostamente neutro para questões de ‘raça’ - já eram comuns à época da construção inicial do Estado-nação no Brasil pós-independência. Este trabalho utiliza uma abordagem inédita, na medida em que parte da análise de fenômenos como o Haitianismo para demonstrar como lógicas que conectam estes três marcadores se constituíram naquele contexto, deixando um legado que serviu de substrato para as legislações explicitamente racializadas sobre imigração (e perfil demográfico almejado), e que serão discutidas na segunda seção, que aborda as normativas sobre o tema ao longo do século XX.

Por fim, na última seção, a atual Lei de Migração será apreciada em face deste histórico e das abordagens teóricas aqui utilizadas. Como deverá ficar demonstrado, apesar de seus avanços notáveis, a atual legislação segue retendo importantes aspectos da colonialidade do poder (Quijano 1999) que marcou a trajetória destas normas jurídicas no Brasil. Em face deste diagnóstico, serão sugeridas políticas concretas que contribuam para descolonizar as normas e práticas relacionadas com a imigração neste país. Como não se trata de um problema unicamente jurídico, será importante resgatar as análises da intelectualidade negra a respeito das relações raciais no Brasil, conjugando-as com recentes desdobramentos da teoria social latino-americana. A conclusão traz breves apontamentos que sugerem caminhos para seguir aprofundando o enfoque e as proposições desenvolvidas ao longo do artigo.

1. Raça e nacionalidade na construção da nação no Brasil: o caso do Haitianismo

Os debates sobre os marcadores de raça e nacionalidade durante o processo de construção do Estado no Brasil pós-colonial seguem apresentando posições de notado contraste. Por um lado, é visível a persistência das teses que defendem uma suposta ausência de raça na discursividade política brasileira (que inclui silêncios) à época da independência (Berbel e Marquese 2007). Nesta visão, apesar da permanência da escravidão, os embates em torno das definições de cidadania e nacionalidade ter-se-iam desenvolvido à revelia de qualquer menção às noções de raça ou cor, ao contrário do observado em ex-colônias de países como França ou Inglaterra. De outro lado, cresce o número de trabalhos que demonstram justamente o oposto, ou seja, que as definições de cidadania e nacionalidade no Brasil escravista não podem ser compreendidas caso mantenha-se este “daltonismo social” que ignora elementos centrais de nossa formação social (Gomes e Ferreira 2008, 154). Como será visto adiante, um daltonismo que aparecerá também nas discussões sobre política migratória do país tempos depois.

Esta segunda postura, que não está disposta a suavizar ou diluir o racismo estruturante deste processo de construção nacional, vem ganhando reforço analítico e empírico a partir do renovado interesse acerca dos impactos da Revolução Haitiana (1791-1804) sobre o mundo político oficial brasileiro na primeira metade do século XIX (Azevedo 2004; Soares e Gomes 2002; Morel 2017; Schwarcz e Sterling 2015). Retomando a trilha investigativa aberta pelo pioneiro trabalho de Luiz Mott (1988) sobre a Revolução dos Negros do Haiti e o Brasil, tais contribuições permitem ver como foram sendo construídas identidades e alteridades a partir da invocação discursiva do Haiti como um ‘Outro’ fundacional frente ao qual a nascente elite política brasileira forjou sua concepção de nacionalidade e cidadania. Um manual recente afirma, por exemplo:

Quanto aos dirigentes brasileiros, passaram a temer o Haiti como ao diabo. O movimento de 1804 repercutiu no país todo, e seria pretexto para várias medidas restritivas, entre elas um modelo centralizador de poder após a independência. O Brasil se inventou, assim, como um anti-Haiti: por oposição, éramos todos brancos, cristãos e civilizados (Schwarcz e Sterling 2015, 228-229 – grifo nosso).

De fato, à medida em que facilidades tecnológicas vão permitindo um acesso mais profundo aos arquivos históricos, esta postura crítica vai sendo reforçada. E, junto com ela, ganha força a percepção de que os marcadores de raça e nacionalidade caminharam juntos em um momento fundacional da História brasileira. Um elemento frequentemente invocado é a cunhagem do conceito de “Haitianismo” para designar a aversão das elites escravistas brasileiras ao processo de libertação nacional e racial ocorrido no Haiti. Produto das intensas disputas intra-elites que marcaram o Período Regencial (1831-1840) da monarquia brasileira, este conceito dominou as manchetes de jornal, artigos de opinião e debates parlamentares. Na verdade, tratava-se de um conjunto de conceitos (Haitianismo, Haitianar, Haitianada, Haitiano/Haitiana) que constituíram uma prática discursiva poderosamente disseminada entre as três grandes forças políticas da época. A despeito da variedade de usos, é possível perceber nas fontes primárias uma constante reafirmação do Haitiano como representando o anti-Brasileiro, antipatriota, ou traidor da causa do Brasil, como era costume se afirmar.

Neste ambiente discursivo, ser acusado de Haitianismo ou chamado de Haitiano era uma das piores ofensas políticas e pessoais que alguém poderia sofrer. Ainda que o insulto fosse, via de regra, proferido por homens brancos e influentes em direção a outros sujeitos nas mesmas condições, a alusão racial contida no próprio termo é evidente. Alguns o usavam para denotar radicalismo político, outros para indicar conluio com potências estrangeiras; e muitos outros apenas para desqualificar seu adversário de turno. Todos, no entanto, associavam a representação do bom brasileiro a partir da oposição com o mau brasileiro, ou seja, o haitiano. Vejamos três breves manifestações desta prática que associa marcadores raciais ao tipo de nacionalidade que se buscava construir mediante esta “invenção do outro” (Castro-Gómez 2005, 169).

O jornal Jurujuba dos Farroupilhas, ligado aos Liberais Exaltados, trazia uma manchete de primeira página em 1831, na qual se lia: “mais Haitianismo”. Após defender-se das acusações sobre este mesmo crime[1] (ser Haitiano), o redator devolve a imputação a fim de “apontar o dedo para os malvados traidores corcundas, e haitianos, que querem arruinar o nosso Brasil só para evitarem as Reformas da Constituição, e do trono aristocrático”.[2] Mais a frente, ele diz que “[d]eve o Povo Brasileiro ir dizendo claramente quais são as pessoas que ele julga suspeitas de se acharem metidos na traição do haitianismo”.[3] Segundo esta versão propagada pelos setores mais progressistas, haveria uma conspiração reacionária internacional contra a jovem nação: “Convém, disse mais a Santa Aliança, que cada um desses partidos tenha seu Haitianismo às ordens, convém que se pregue a divisão entre natos e adotivos para que uns matem os outros e os estrangeiros cresçam em força”.[4] Na mesma linha, o jornal O Filho da Terra, de linha política similar, atacava aos “poltrões moderados [que] têm um exército de Taberneiros, de moscas varejeiras para matarem o povo, insultarem a Brasileiros e proclamarem a guerra civil, o Haitianismo, e tudo quanto é péssimo”.[5]

No extremo oposto do espectro político, O Pão D’Assucar, veículo midiático dos setores mais aristocráticos da Corte - ligados aos grandes comerciantes portugueses - trazia suas próprias versões sobre a origem e usos políticos do Haitianismo. Nesta visão, esta prática discursiva seria um intento do Liberais Moderados para ganhar votos em épocas eleitorais, além de criar um clima propício à perseguição política dos adversários. Não obstante tal ceticismo quanto à veracidade dos boatos sobre instrumentalização política de massas populares negras, o editorial reproduz a prática que constrói uma versão da nacionalidade brasileira considerada legítima a partir da deslegitimação de atitudes consideradas antinacionais de seus adversários, os Haitianos.

Assim, se existem haitianos, eles são somente aqueles homens que afugentam do Brasil a esses mesmos Portugueses e adotivos, levando-lhes a perseguição e a morte. São haitianos esses que toleram os insultos e ameaças dos Ingleses e Franceses que açoitam Brasileiros, e que vindo ao Brasil nos levam o ouro, deixando em seu lugar meia dúzia de trapos, e podres fitas. São haitianos esses que odeiam os Portugueses, e pelo contrário preferem homens de outras Nações que longe de construir edifícios públicos, e promover nosso aumento e prosperidade, chegam a ponto de mandar vir de seus países a própria comida já cozida, e a mesma roupa lavada que vestem! São haitianos somente os que promovem a divisão do Brasil, que o salpicam de sangue fraticida, que não desejam o perdão de leves erros políticos, e pelo contrário querem que graves atentados gozem de indulgência. Haitianos são unicamente esses moderados que tem apregoado a licença em vez de liberdade, a discórdia em lugar de patriotismo, e um sistema efêmero em vez de uma Monarquia Representativa sólida e duradoura, que faça a felicidade dos povos. Estes são os verdadeiros haitianos, que indiretamente conduzem as coisas ao termo do Haitianismo.

Para não deixar dúvidas quanto ao viés racial inerente ao vínculo entre nacionalidade brasileira e algo oposto ao haitiano, o redator arremata sua argumentação conclamando o partido no poder, os Liberais Moderados, a uma ponderação sobre os limites raciais do dissenso político:

Moderação insensata! Voltai a vossa razão. Dizei-nos, moderados, pretendeis debelar o Haitianismo, e buscais dilacerar os da vossa cor? Homens inconsequentes e cruéis, cessai um dia de mortificar a desgraçada pátria, quase exangue por vossa causa (...) tremei por vós mesmos[6].

Não surpreende, portanto, que este veículo também concordasse com seus adversários quando se tratava de apoiar medidas de restrição à entrada de africanos, incluindo escravizados, além de sugerir medidas de inversão demográfica (racial), “provendo ao mesmo tempo em África uma colônia para receber aqueles que se forem libertando por alguma medida gradual”. Até lá, contar-se-ia com uma “polícia ativa e vigilante, que observe com cuidado todos os passos que os Africanos derem”, além de uma “força armada (...) que nos inspire confiança e aos escravos infunda terror”[7]. Este clima de temor bélico-racial foi captado por José Murilo de Carvalho (2014), que também percebe o vínculo entre Haitianismo e o nascimento de uma engenharia demográfica racializada: “Este grande influxo, aliado às turbulências regenciais, causou as primeiras preocupações com o equilíbrio racial da população e com o perigo de uma guerra de raças ou, como se dizia, com o haitianismo” (2014, 295).

Por fim, o centro do espectro político imperial não fugia à regra. Sofria acusações constantes, provenientes de ambos os extremos, de haver incitado a racialização do discurso patriótico para fins partidários, mediante a difusão do conceito de Haitianismo. Além de rebater tais imputações, os Liberais Moderados, dominantes no aparelho estatal durante o Período Regencial, traziam suas próprias versões sobre o Haitianismo. Uma delas se baseava em uma complexa operação argumentativa: negar o racismo da sociedade brasileira, ao mesmo tempo em que acusava seus adversários de haitianos, como se fosse possível des-racializar este conceito. Ao fazê-lo, adiantavam argumentos que seriam evocados por Gilberto Freyre [1936] um século depois, assim como por Berbel e Marquese (2007) nos dias atuais, como visto acima. O vínculo entre raça e nacionalidade permanece intacto, mesmo se tratando desta forma tipicamente brasileira de expressar seu racismo mediante a (tentativa de) sua negação, suavização comparativa ou silenciamento.

Evaristo da Veiga, “o mais respeitado liberal da época” (Carvalho 2014, 295), dedicou um artigo extenso para explicar esta engenhosa formulação, que daria origem a uma tradição de larga duração, a qual alega que a formação social brasileira – mesmo em plena vigência do regime escravista – não seria portadora de um racismo oficial como aquele observado alhures, seja no sul dos Estados Unidos ou no próprio Haiti. Alguns historiadores, como Thomas Flory (1977), levantam a hipótese de que essa tentativa de negar a discriminação racial envolvida no Haitianismo teria relação com a eclosão da Revolta dos Malês em fins de janeiro de 1835, na Bahia. O vínculo entre nacionalidade, cidadania e raça segue visível, mesmo quando camuflado, como pode ser visto nas palavras do redator do Aurora Fluminense, publicadas poucos meses após a revolta: os “nossos Cidadãos” são brancos, premissa que permanece inquestionável:

Tem-se procurado confundir = haitiano com homem de cor = haitianismo = com um acidente que nem a Constituição nem a Razão estabeleceram motivo de diferença. Sabemos bem quais são os fins daqueles que arranjam essa confusão estudada, e o afinco que se emprega em reunir todos os pardos num só grupo a parte, fazendo-lhes acreditar que sua causa, os seus interesses são alheios ao do resto da Sociedade. No entanto, não cremos que tão funesta cizânia possa grassar entre nós: os pardos, no número dos quais há pessoas de consumada instrução e gente de sizo, não ignoram que que eles não têm no Brasil as mesmas queixas que exasperaram os homens de cor em S. Domingos, nem mesmo as que na América do Norte deve trazer o isolamento e desprezo em que está posta essa parte da população. No Brasil, as coisas se passam muito diversamente: quer no tempo do Governo absoluto, quer sob o regime constitucional, nenhuma diferença legal foi estabelecida entre os brancos e a gente de cor livre. Alguns prejuízos da educação a tal respeito, que acham origem na existência da escravatura e nas castas a que a escravatura pertence, perdem todos os dias a sua força, e cedem o campo aos triunfos da Filosofia. Não há maior iniquidade do que confundir homem de cor com haitiano: dos homens de cor livres, muitos têm escravos, e são tão interessados como os nossos Cidadãos em que as ideias do feroz Haitianismo não triunfem (...) Amalgamar todas as prevenções, todos os interesses mesquinhos em um pensamento e interesse comum que é o do Brasil, o da nossa pátria, deve ser o afã dos amigos da prosperidade do país e da justiça. Quem a isto prefere ou injustos ressentimentos, ou cálculos de ambição privada, não é digno do nome de patriota. Pode ser útil em Governo livre que a Nação se divida em partidos, contanto que estes não lancem mão da violência e dos meios ilegítimos; mas nunca pode deixar de ser aí funesto que a população se ache dividida em castas rivais, uma inimiga da outra, e cujo rancor muito venha assim a ser eterno, porque os acidentes da natureza que os separam não mudam, nem se modificam. Nada de confundir haitianos com homens de cor[8].

Este expediente que transmite o racismo mediante a tentativa de negá-lo pode ser considerado uma forma embrionária das teses sobre democracia racial no Brasil. No século XIX, contudo, a ênfase não era posta na miscigenação, mas na ausência de dispositivos explicitamente raciais no ordenamento jurídico, oriundos de um tipo mais brando – supostamente menos racista – de colonização. Outra figura importante do Liberalismo Moderado, Joaquim Candido Soares Meirelles, também apela para o mesmo expediente em debate parlamentar na Assembleia Geral do Império. Para ele, “as colônias portuguesas (...) foram sempre regidas pelas mesmas leis com que os portugueses eram governados”, o que lhe permite concluir que “esta nação foi a mais humana, foi aquela que governou com mais doçura as suas colônias”. E este legado colonial alegadamente mais brando, por sua vez, faria com que “a palavra - haitiano ou haitianismo – signifi[que] uma ordem que existe, ou que existia, em um país que nunca teve relação com o que se passou ou se passa em nosso país”.[9] Vale lembrar que o próprio Gilberto Freyre lançaria mão de argumentos bastante similares ao salientar a “doçura maior do português com relação à gente de cor”, que faria do Brasil diferente do Haiti por não haver aqui “um ambiente tão favorável ao ódio do escravo contra o senhor, do preto contra o branco” (2004, 136 – grifo nosso).

Essa busca de silenciar o racismo por via da igualdade jurídica abstrata, ou seja, de despolitizar a ‘raça’, fracassa, no entanto, justamente pelo elo já constituído entre raça e nacionalidade ao longo de décadas. Apesar de Meirelles argumentar que na “constituição não se diz uma só palavra a respeito de cidadãos desta ou daquela cor”[10], ele mesmo sofreu na pele os efeitos da racialização da cidadania, ao ser acusado e perseguido por Haitianismo por ser um médico de prestígio (autoconsiderado) “mulato”[11], que galgou importante carreira política (Morel 2017). Como veremos na próxima seção, o próprio ordenamento jurídico brasileiro viria a basear-se explicitamente em critérios raciais para desenvolver suas posteriores normativas sobre imigração. Não se trata, portanto, de uma inversão de tendência, mas de sua explicitação lógica, uma vez que o vínculo entre nacionalidade e raça já podia ser observado ao longo de todo o século XIX diante da contraposição entre Brasil e Haiti e da identificação de haitiano como o anti-brasileiro, alguém que não mereceria desfrutar dos direitos de cidadania que os portadores da nacionalidade logravam usufruir.

Assim, mesmo diante da tentativa secular de negar o vínculo entre a definição de nacionalidade e a noção de raça no Brasil, fica patente a força de tal associação mediante a exclusão racialmente criteriosa sobre a acessibilidade a direitos neste país. Apesar da atual historiografia do século XXI que almeja des-racializar a escravidão, das teses sobre democracia racial do século XX ou da pioneira retórica do Liberalismo Moderado sobre haitianismo no século XIX, a desigualdade racial no acesso a direitos não é tão facilmente silenciável. Por vezes, até os proponentes de tais teses fornecem insumos para sua contestação, como acaba fazendo o próprio Meirelles ao discursar na tribuna parlamentar:

Para excluir-se sistematicamente os cidadãos homens de cor, que têm a seu favor o art.169, §14, é que se chama sobre eles desconfianças aviltantes, fingidos terrores de massacres aéreos, inventados, urdidos e propalados pela soberba, pela intriga, pela perversidade, pela ignorância presunçosa[12].

A discriminação é a regra. Portanto, pode-se considerar que o legado da formulação binária que os construtores do Estado e da nação deixaram para as gerações futuras permaneceu operante, sendo doravante ativado, por exemplo, em diferentes leis de migração. Por um lado, pela prática discursiva que mobilizava o medo de fazer do Brasil ‘um novo Haiti’ caso fossem concedidos direitos aos considerados não brancos ou que não se observassem medidas para diminuir sua proporção demográfica (Azevedo 2004).[13] Por outro, o dispositivo criado no Período Regencial mediante as operações do Haitianismo, que ao mesmo tempo exacerbava e tentava omitir a racialização da nacionalidade. Ambos, como veremos, ajudam a explicar o recorte racialmente excludente que historicamente as leis de migração apresentaram no Brasil, tanto em sua versão mais explícita, como em seus momentos mais sutis.

Não se pode esquecer, por fim, que no tocante à imigração o Haiti revolucionário concedeu cidadania e nacionalidade haitiana automática aos negros de todo o mundo que lá desejassem viver, atitude que não escapou àqueles no Brasil que manejavam a identidade nacional a partir da alteridade com haitianos e que desejavam ver um critério de admissão em seu próprio país onde fossem aceitos somente “homens de sua cor”:

Os conselhos, que o amor da nossa Pátria nos inspira tão afoitamente dá-los aos nossos concidadãos, se fundam em verdades de tal intuição que não escaparam aos pretos da ilha do Haiti, que pretendendo consolidar um sistema de homens de sua cor, determinaram que um dos artigo do seu Código Constitucional, que nenhum homem branco de qualquer Nação que fosse, que pisasse em seu território, poderia ser Proprietário, nem Cidadão; permitindo ao mesmo tempo que os Africanos ou os que procedessem de seu sangue, quer nascidos nas Colônias, quer em países estrangeiros, fossem reconhecidos [como] Haitianos, e depois de um ano de residência gozassem dos Direitos de Cidadão[14].

Deste modo, o que as práticas discursivas do haitianismo nos brindam é com um exemplo paradigmático da forma como a discursividade política oficial do Brasil foi forjando suas noções de cidadania e nacionalidade em meio à questão da racial, tanto em palavras como em silêncios; em atos e omissões. A próxima seção, mostrará como essa lógica que enreda os marcadores de raça, nação e cidadania se expressou nas leis de imigração em perspectiva histórica, do final do Império ao Estatuto do Estrangeiro da Ditadura Militar que, assim, mostram-se à serviço do racismo estrutural[15] e da colonialidade própria do Brasil. Como será visto, a classificação social baseada na ideia de raça (Quijano 1999) é o critério fundamental destes dispositivos legais.

2 - O Direito brasileiro e a racialização dos corpos negros migrantes

Os estudos sobre as correntes migratórias para o Brasil normalmente desconsideram o marcador raça como categoria analítica e, como consequência não tecem associações sobre como o Estado tem usado toda a maquinaria jurídica para embranquecimento da nação e, assim, promover o genocídio dos povos negros. Neste sentido, além da utilização de normas migratórias racistas para obstruir o ingresso de pessoas negras, as instituições nacionais encarregaram-se de invisibilizar a presença africana e afro-diaspórica no Brasil no século passado, além de promover um apagamento da relevância destes povos na construção da nação.

Após a abolição da escravidão o fluxo migratório de África para o Brasil não cessou, embora tenha padecido de importantes constrangimentos e limitações. O país havia sido um dos maiores receptores de africanos escravizados no período em que vigorou o tráfico transatlântico (do século XVI ao XIX).[16] O sistema escravocrata fundou uma sociedade marcada por relações hierárquicas de poder entre brancos e negros, onde perdura um vigoroso silenciamento da contribuição das africanidades para sua construção, e, no tocante às políticas migratórias se instituiu um sistema possante de embargo ao ingresso e à permanência de indivíduos racializados, após uma transposição populacional compulsória por séculos.

A máquina pública que transformou o racismo em elemento estruturante da sociedade brasileira (Almeida 2019) esteve operando desde a construção dos primeiros alicerces deste Estado independente, que deu continuidade às políticas da era colonial. Como visto na seção anterior, o medo das elites brancas imperiais face ao grande número de negros e as reais possibilidades de insurgências se potencializou com o exemplo da Revolução Haitiana, fato que se refletiu juridicamente já na Constituinte de 1823, que procurou regular e controlar os indivíduos racializados (Queiroz 2017). Assim, consoante observado no tópico anterior, desde o alvorecer do período imperial, a aversão aos corpos negros se refletiu, também, na nacionalidade, pois o haitianismo[17] foi responsável por promover uma ligação direta entre raça e origem nacional, numa dupla tentativa de criminalizar pessoas negras e afirmar a identidade nacional como branca.

Nesse sentido, uma reação que se seguia à deflagração de revoltas, como a dos Malês em 1835, ilustra bem esta tentativa de criminalizar e discriminar corpos negros mediante a sua afirmação como não-nacionais, o que mostra que raça é uma categoria tão potente que alcança a nacionalidade. O temor de novos levantes levou as elites a considerarem a presença de africanos libertos na cidade de Salvador como tema securitário. Naquele contexto, foram aprovadas várias normas que cercearam o direito de ir e vir, promoveram a prisão[18], a deportação para a África, e o impedimento à entrada de africanos no território nacional (Câmara dos deputados 1835).

Após a promulgação da Lei Áurea (1888), que aboliu juridicamente a escravidão, os corpos marcados racialmente passaram a ser submetidos ostensivamente a políticas estatais de controle, exclusão e criminalização. Enquanto buscava-se negar as influências da matriz africana para a constituição da sociedade brasileira, a entrada de imigrantes africanos era obstaculizada e bloqueada pelas autoridades, caracterizando, assim, o africano como persona non grata neste país e os negros que aqui residiam como uma fonte de problemas a ser erradicada ou combatida.

Foi nesse contexto e a partir deste histórico que o branqueamento da raça, que já fora utilizado como estratégia de genocídio do povo negro no Brasil (Nascimento 1978), desde o início das políticas de impulso à imigração europeia durante era imperial (Azevedo 1987), subsidiou a formulação de uma política migratória explicitamente racista também na República. Para tal, o governo brasileiro passou a engajar-se no agenciamento, mediante propagandas e promessas de terra, e no fomento à imigração de trabalhadores europeus para as zonas que pretensamente careciam de mão-de-obra (Moraes 2014). As elites forjaram um arquétipo de nação brasileira europeizada baseando-se em um imaginário racista, similar ao descrito por Frantz Fanon (1980, 7-20) como “síndrome do Norte-Africano”, no qual os negros seriam apáticos ao trabalho livre, de baixo nível mental, já que pertenceriam a uma “raça inferior”. Tal discursividade serviu, por oposição, para fabricar a imagem do imigrante ideal, que passa a ser o desejado: o branco europeu (Azevedo 1987).

Logo, o suprimento da demanda por mão-de-obra estava longe de ser o fim último de tais políticas de Estado, visto que se excluía a massa de negros recém-libertos e desempregados, não beneficiários de qualquer medida reparatória por parte do Estado (Frazão 2017). Começava-se a esboçar uma política migratória que se mostrou estar a serviço do “branqueamento” que, por sua vez, acarretaria uma suposta “melhoria qualitativa” da identidade nacional (Koifman 2012; Azevedo 1987). Ou seja, é necessário enfatizar que o objetivo da política migratória brasileira desenhada no fim do século XIX e que se estendeu pelo século XX, foi o de promover o “desaparecimento do negro” através da salvação do “sangue europeu” (Nascimento 1978, 71). Tendo em vista o histórico de contraposição do “brasileiro” com o “haitiano” (o anti-nacional por excelência) desde o momento fundacional de afirmação da nacionalidade brasileira, isto não deve ser encarado como uma surpresa.

Nesse contexto, a jovem República brasileira desejosa de forjar uma identidade nacional à semelhança da matriz europeia passa a se utilizar do Direito e dos aparatos institucionais, enquanto instrumentos da colonialidade do poder, para a implementar tal objetivo. Em junho de 1890, menos de um ano após a troca de regime e dois da abolição da escravatura, o presidente Marechal Deodoro da Fonseca promulga o Decreto No 528 com o seguinte teor:

O Generalíssimo Manoel Deodoro da Fonseca, Chefe do Governo Provisório da Republica dos Estados Unidos do Brasil, constituído pelo Exercito e Armada, em nome da Nação:

CAPITULO I

DA INTRODUCÇÃO DE IMMIGRANTES

Art. 1º E' inteiramente livre a entrada, nos portos da Republica, dos indivíduos válidos e aptos para o trabalho, que não se acharem sujeitos à acção criminal do seu país, exceptuados os indígenas da Asia, ou da África que somente mediante autorização do Congresso Nacional poderão ser admittidos de accordo com as condições que forem então estipuladas.

Art. 2º Os agentes diplomáticos e consulares dos Estados Unidos do Brasil obstarão pelos meios a seu alcance a vinda dos immigrantes daquelles continentes, communicando immediatamente ao Governo Federal pelo telegrapho quando não o puderem evitar.

Art. 3º A policia dos portos da Republica impedirá o desembarque de tais indivíduos, bem como dos mendigos e indigentes (Brasil 1890)[19].

Como se percebe, o Decreto 528 versa sob dois pontos fulcrais para a conformação das políticas migratórias republicanas: 1) a entrada deve ser irrestrita exceto para deficientes e idosos - expressos no Decreto como inválidos e não-aptos a trabalhar -, e para “indígenas” africanos e asiáticos (diferenciando-os dos colonizadores europeus neste continente); 2) o controle migratório ficava a encargo das forças policiais. Assim, em primeiro lugar, este Decreto de caráter eugenista associa a migração à condição física, etária e à nacionalidade de origem, que neste contexto pode ser entendida, novamente, como raça. Em segundo lugar, o instrumento normativo consagra a criminalização dos fluxos migratórios, e a arregimentação dos dispositivos policiais para garantir o impedimento de desembarque. Assim, a partir da Primeira República e cristalizado nesse Decreto, se refinam os instrumentos imperiais que embasavam a lógica do haitianismo, e se sedimentam as bases de uma política migratória de caráter hierarquizante e racial que vigorará por mais de um século, por meio da aprovação de normas que classificará os corpos entre os bem-vindos e os descartáveis, rejeitáveis, indesejados.

Abdias do Nascimento (1978) atesta que na década de 1920 a Câmara de Deputados debateu sobre várias leis proibitivas da entrada de indivíduos “de raças de cor preta”. Neste panorama, a título de ilustração, se inserem as investidas do governo brasileiro, fazendo uso de medidas executivas e legislativas, destinadas a proibir o ingresso de estadunidenses negros no Brasil na década de 1920, ao mesmo tempo em que se subsidiava a entrada de milhares de europeus em território nacional (Pereira 2010; Nascimento 1978). Segundo Abdias Nascimento, Afrânio Peixoto, em face da perigosa ameaça daquele potencial influxo de quinze milhões de negros vindo do norte, interrogou desesperado: “Teremos albumina bastante para refinar toda essa escória?...Deus nos acuda, se é brasileiro” (Nascimento 1978, 73).

Assim, a doutrina eugênica, que iniciara sua penetração nas políticas públicas do Estado durante o período da Primeira República (1889-1930) e se tornou ainda mais influente durante o Estado Novo, de 1937 a 1945 (Koifman 2012), moldava uma hierarquização racial e propunha caminhos para o embranquecimento que, consequentemente, se valeria de meios para a extinção das matrizes africanas e indígenas do Brasil. Os eugenistas defendiam que apenas mediante o embranquecimento populacional promovido pela vinda de imigrantes europeus e algum estímulo às uniões inter-raciais entre estes e as populações negras e indígenas, a nova República se tornaria, enfim, uma nação civilizada, um espelho da Europa, livre do que reputavam defeitos congênitos dos não-brancos (Moraes 2014; Azevedo 1987).

O marcador racial destas práticas é tão preponderante ao da nacionalidade que os negros dos Estados Unidos eram indesejáveis no Brasil, não sendo considerados como estadunidenses, aos quais a norma nacional não impunha restrições à entrada, já que se presumia que no hemisfério Norte só havia brancos. Neste caso, foi o Ministério de Relações Exteriores, chefiado por José Manoel de Azevedo Marques, que se incumbiu de aplicar a tese eugenista ao recusar sistematicamente os vistos para todos os imigrantes negros - independente de nacionalidade -, que se destinassem ao Brasil. Esta prática era, inclusive, aplicável para aqueles detentores de considerável poder aquisitivo e prestígio como o advogado e editor estadunidense negro Robert Abbot[20].

Os governos de Getúlio Vargas (1930-1945) recrudescem as vias discriminatórias do período da Primeira República. O Decreto nº 24.215, de 9 de maio de 1934 atesta que “[...] uma das causas do desemprêgo se encontra na entrada desordenada de estrangeiros, que nem sempre trazem o concurso útil de quaisquer capacidades, mas freqüentemente contribuem para o aumento da desordem econômica e da insegurança social” (Brasil 1934). Logo em seu preâmbulo, coloca-se a migração como um empecilho à ordem e ao bem-estar social dos nacionais. Mas tal discriminação do imigrante possui raça e cor. No mesmo ano, é aprovada a Constituição de 1934 que em seu artigo 121, §6º, preceitua:

A entrada de imigrantes no território nacional sofrerá as restrições necessárias à garantia da integração étnica e capacidade física e civil do imigrante, não podendo, porém, a corrente imigratória de cada país exceder, anualmente, o limite de dois por cento sobre o número total dos respectivos nacionais fixados no Brasil durante os últimos cinqüenta anos (Brasil 1934 – grifo nosso).

No seu artigo 138, a Carta Magna delegava à União, aos Estados e aos Municípios a incumbência de "estimular a educação eugênica" (grifo nosso).

Mais adiante, cerca de cinquenta anos após a abolição da escravatura, o presidente Getúlio Vargas promulga o Decreto-Lei nº 406, de 4 de Maio de 1938, já portanto durante o regime autoritário do Estado Novo:

Decreto-Lei nº 406, de 4 de Maio de 1938

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, usando da atribuição que lhe confere o artigo 180 da Constituição,

DECRETA:

Art. 2º O Governo Federal reserva-se o direito de LIMITAR OU SUSPENDER*, por motivos econômicos ou sociais, a entrada de indivíduos de DETERMINADAS RAÇAS OU ORIGENS*, ouvido o Conselho de Imigração e Colonização (destaque nosso).

Em seu projeto de construção da identidade nacional brasileira, alicerçada em uma visão eugênica, Vargas aprofundou uma política migratória restritiva cujo principal foco estava voltado a “melhorar” a composição étnica do povo brasileiro através do seu progressivo embranquecimento (Koifman 2012). Para tanto, o presidente procurou coibir a imigração impondo cotas por nacionalidade e criou critérios para avaliar o mérito dos migrantes através de aspectos “físicos e morais” (Koifman 2012). Como demonstra o Decreto-Lei 3.010, promulgado no dia 20 de agosto de 1938:

Art. 65. O funcionário encarregado de proceder ao selecionamento usará de critério rigoroso a fim de evitar prejuízo ao interesse nacional no que diz respeito à assimilação étnica e à segurança econômica, política e social (grifo nosso)

Parágrafo único. Essa apreciação fundar-se-á:

a) no exame das condições individuais, do valor eugênico, das qualidades físicas e morais.

b) no exame dos atributos coletivos apresentados pelas populações de origem, especialmente no estudo de seus hábitos, qualidades rurais, costumes econômicos, políticos, sociais e morais, propensão à vida agrícola e à ocupação secundária, temperamento morigerados capacidade de trabalho, índice de progresso, topografia e clima da região, e todos os demais dados suscetíveis de autorizar um juízo quanto à facilidade da adaptação à vida brasileira (grifo nosso).

Na década posterior, o Decreto-Lei nº 7.967, de 18 de Setembro de 1945 determina, pouco antes da renúncia de Vargas no mês seguinte, que:

Art. 1º Todo estrangeiro poderá entrar no Brasil desde que satisfaça as condições estabelecidas por esta lei.

Art. 2º Atender-se-á, na admissão dos imigrantes, à necessidade de preservar e DESENVOLVER*, na composição étnica da população, as características mais convenientes da sua ASCENDÊNCIA EUROPÉIA*, assim como a defesa do trabalhador nacional (BRASIL 1938 - destaque nosso).

O branqueamento normatizado ainda ganhou novos contornos nas décadas seguintes quando as autoridades, ainda imbuídas do propósito de miscigenar para exterminar os negros, passaram a promover investidas tendentes a favorecer a imigração de racistas brancos que foram expulsos das colônias africanas que se libertavam na época. Este foi o caso de belgas que chegaram da República Democrática do Congo, e portugueses vindos de Moçambique e Angola (Nascimento 1978).

Conforme visto, tais normativas são responsáveis pela racialização da migração. Além disso, estas normas afirmaram na esfera do Direito Público, a deportabilidade, a segregação, a criminalização dos fluxos migratórios e delinearam a abordagem securitarista do imigrante que seria validada com toda força, posteriormente, no Estatuto do Estrangeiro na década de 1980 (Carneiro 2018)[21]. Irmão das normas estabelecidas no regime autoritário anterior do Estado Novo, o Estatuto do Estrangeiro, instaurado em plena ditadura militar brasileira (1964-1985) pela Lei 6.815/1980 e regulamentado pelo Decreto 86.715/1981, utilizava inapropriadamente a denominação de ‘estrangeiro’ para se referir ao não nacional e o considerava como um potencial perigo à segurança nacional.

Além disso, o Estatuto do Estrangeiro que só foi revogado em 2017 previa no seu artigo 65, alínea c, a pena de expulsão para o imigrante que se "entregasse à mendicância ou vadiagem". Note-se que a vadiagem e a mendicância estavam tipificadas no artigo 295 do Código Criminal de 1830, no contexto do Haitianismo, e foram reintroduzidas como contravenções no Código Penal brasileiro de 1890 como reativa à abolição da escravatura e, portanto, era destinada aos recém-libertos (Roorda 2017). Ou seja, essa normativa nasceu para controlar a circulação e, obviamente, para punir os corpos racializados[22] que foram transformados em um problema de segurança pelas elites nacionais. A Lei de Contravenções Penais de 1941 (Decreto Lei 3.688 de 1941) reforçou o entendimento de periculosidade de vadios e mendigos e impôs a pena de prisão e a internação “em colônia agrícola ou em instituto de trabalho, de reeducação ou de ensino profissional”. Assim, a higienização dos espaços urbanos que penalizou quase unanimemente os negros dialogava fluidamente com a política de imigração eugenista e que manteve-se em vigor até este século[23].

Em 2017, em resposta aos clamores sociais pela superação da abordagem securitária do Estatuto, e após a realização de diálogos entre setores públicos, coletivos de imigrantes, sociedade civil e a academia foi aprovada, com 21 vetos, a Lei 13.445/17, alcunhada de Lei de Migração. Os debates no legislativo foram gestadas no decorrer do primeiro grande fenômeno migratório deste século que foi, coincidentemente, a migração haitiana para o Brasil. A nova norma foi inspirada nos Tratados internacionais e fundou um novo paradigma, o dos direitos humanos. Assim, a migração passa a ser concebida como direito humano, e o migrante é reconhecido como um sujeito de direitos. A política migratória brasileira deixa de ser regida pela ótica da criminalização dos fluxos migratórios - apesar de manter o protagonismo da Polícia Federal – em prol da garantia de acesso aos direitos contidos na Declaração Universal de Direitos Humanos. A Lei de Migração se deparou, contudo, com um imenso contingente de pessoas indocumentadas, sobretudo as provenientes dos países do Sul Global, fruto das praticamente invencíveis dificuldades de regularização migratória impostas pelas normas até então vigentes.

Deste modo, o arcabouço normativo em vigor, apesar dos avanços notáveis e da migração haitiana como um dos panos de fundo, foi incapaz de despir-se de todos os elementos da colonialidade do poder que vêm informando as políticas migratórias brasileiras historicamente, ainda que a classificação social com base na ideia de raça não seja atualmente tão explícita como fora outrora. Em outras palavras, o elo entre raça, nacionalidade e cidadania, que remonta ao período colonial e prossegue na construção do Estado independente - dentre outras manifestações, via haitianismo – permanecerá ativo até que ações afirmativas destinadas a descolonizar a norma e as práticas migratórias brasileiras sejam amplamente discutidas e implementadas. Na próxima seção, apontaremos algumas destes elos e permanências para, então, propor medidas concretas que possam contribuir para sua superação.

3. Raça, Lei de Migração e a colonialidade do poder

A trajetória da legislação migratória brasileira explicitada nos tópicos anteriores mostra como o Direito operou como instrumento assegurador da colonização e da perpetuação da colonialidade. Segundo Quijano (1999), “o racismo não é, pois a única manifestação da colonialidade do poder”, mas é “sem dúvida, a mais perceptível e onipresente” (1999, 142). As normas brasileiras corroboraram para a construção e a racialização das identidades e a subordinação da diferença, da alteridade não hegemônica, informando concepções dominantes de nacionalidade, cidadania e migração, e cimentaram a base do racismo que se constitui como elemento estrutural e estruturante da sociedade brasileira. Sobre a diferença Grada Kilomba assevera:

No racismo estão presentes, de modo simultâneo, três características: a primeira é a construção de/da diferença. A pessoa é vista como “diferente” devido à sua origem racial e/ou pertença religiosa. [...] Só se torna “diferente” porque se difere de um grupo que tem o poder de se definir como norma – a norma branca. Todas/os aqueles que não são brancas/os são construídas/os então como “diferentes”. A branquitude é construída como ponto de referência a partir do qual todas/os as/os “‘Outras/os” raciais “diferem”. Nesse sentido, não se é “diferente”, torna-se “diferente” por meio do processo de discriminação. [...] Esses termos, no entanto, são insatisfatórios porque não explicam que o problema central do racismo não é a existência de diversidade e pessoas diferentes, indica a desigualdade existente entre elas (2019, 75-76).

Mediante o controle do Direito e das instituições, a branquitude se encarregou de controlar espaços e demarcar lugares de privilégios como forma de subalternização das populações não-brancas, fossem elas nacionais ou imigrantes. O Direito, além de produzir o sujeito racializado, tem funcionado como uma refinada tecnologia de controle social (Almeida 2018) e migratório. Ou seja, o racismo é estruturado por uma legalidade que o produz e o reproduz.

Ao longo de dois séculos, conforme apontado, as normas brasileiras operaram as iniciativas de apartar a identidade nacional da influência africana, por meio do impedimento à entrada de negros no Brasil e de criminalização do “estrangeiro”, sobretudo o racializado. Fundou-se, assim, um sistema normativo excludente, proibitivo ou obstaculizador do ingresso dessas pessoas em território nacional, e que continua impondo grandes dificuldades para a regularização atualmente, mesmo após promulgada a nova Lei de Migração. Aliás, não é difícil entender a estas alturas que tanto a racialização, como criação de fronteiras estatais e entraves migratórios são produtos da Modernidade que fabricou todo um arsenal de instrumentos como passaporte e visto, e de institutos como expulsão e deportação, para segregar pessoas.

A nova Lei de Migração, ainda que seja um instrumento jurídico muito avançado em relação às normas antecessoras, comete um pecado grave: o de universalizar a figura do migrante, como se todos e todas fossem destinatárias do mesmo tratamento historicamente neste país. Os imigrantes negros, como demonstrado anteriormente, têm sido tratados, ao longo de séculos de forma violenta, opressora e excludente. Deste modo, o Brasil tem uma dívida histórica com todos os povos da diáspora africana: primeiro pela migração forçada do regime escravista e depois pelos entraves à imigração após o fim do infame comércio de pessoas.

Por isso, seria imperativo impor um sistema de ações afirmativas que facilitasse o ingresso e a permanência destes coletivos marcados racialmente, nesta nação. Tal se justifica porque, evidentemente, os imigrantes não-brancos nunca foram e nem são sujeitos a igual tratamento no Brasil, seja em termos legais, seja nas relações sociais, econômicas ou intersubjetivas. Além das políticas de embranquecimento populacional do século passado, um exemplo atual disso é que os portugueses são agraciados constitucionalmente (vide art. 12 da Constituição Federal) com os privilégios do Estatuto da Igualdade[24] que lhes atribui os direitos inerentes aos do cidadão brasileiro. Os antigos colonizadores continuam sendo titulares de benefícios exclusivos, e que são garantidos pela Lei Maior, enquanto os povos do Sul Global, que foram colonizados, seguem sendo vulneráveis a toda a sorte de preconceito e segregação. Este é mais um dos elementos que comprovam a relação entre a colonialidade do ser e do poder (Castro-Gómez 2005), e atestam que o Direito continua garantindo a hierarquização[25].

Apesar de ser fundada em uma nova gramática alicerçada na proteção da pessoa humana, na Lei 13.445 a palavra 'racismo' aparece apenas uma vez, e o vocábulo 'raça' não foi sequer citado na norma. No Decreto 9.199/2017 que regulamenta a Lei de Migração nenhuma das duas palavras foi mencionada. Assim como ocorrido com o haitianismo, a racialização explícita dá lugar à abstração legal que silencia, porém sustenta, a mesma prática. A situação se agrava porque o Brasil foi o país que, ao lado dos Estados Unidos, mais recebeu seres humanos escravizados provenientes da África, e foi uma das últimas nações do mundo a proibir a escravidão. Vale lembrar, a respeito, que nisto também o Brasil foi um “anti-Haiti” (Schwarcz e Sterling 2015, 229), dado que a ilha revolucionária fora pioneira na derrocada do escravismo racializado.[26]

É importante reconhecer, também, que a Lei de Migração está situada em um contexto de branquitude dos formuladores (e dos operadores) do Direito que domina o tecido social e as estruturas de poder no Brasil. Neste sentido, a derrubada das vigas que sustentam este sistema perverso e consistente é, também uma obrigação dos sujeitos brancos. Consoante assevera Grada Kilomba o “racismo não é um problema pessoal, mas um problema branco estrutural e institucional que pessoas negras experienciam” (2019, 204).

Assim sendo, os legisladores que produziram a Lei 13.445/2017 e o Decreto 9199/2017 desconsideraram o fato de que os/as imigrantes são diferentes e partem de lugares diferentes, e que vivenciaram e vivenciam experiências distintas de opressão no Brasil. De fato, conforme apontado por Silva, Silveira e Muller esses “são os coletivos que mais sofrem os processos de exclusão social e violação de direitos humanos” (2017, 288) Não existe uma figura abstrata de ser humano, posto que historicamente uns foram sempre considerados humanos e outros foram desumanizados, despejados na zona do não ser (Fanon 2008, 26). Universalizar o ser migrante, despolitizar a categoria raça, significa invisibilizar e perpetuar as estruturas desumanizantes do poder colonial. Djamila Ribeiro (2017) alerta para o fato de que “é necessário romper com essa tentação da universalidade que exclui”, pois o passado prova que “a invisibilidade mata” e que “quando pessoas negras estão reinvindicando o direito a ter voz, elas estão reivindicando o direito à própria vida”. Por isso, a nova Lei de Migração, por não prever políticas de ações afirmativas para corrigir os erros cometidos contra imigrantes negros atua como mais um elemento perpetuador das violências raciais estruturais que imperam no Brasil. O olhar universalizador desvia o reconhecimento das diferenças marcantes que existem nesta sociedade que fabrica desigualdades e impede que as pessoas oprimidas não sejam vistas. Como resultado, elas não são beneficiárias de políticas públicas que corrijam as distorções de acesso a direitos fundamentais.

Os poucos dispositivos jurídicos existentes que, em tese, beneficiariam os nacionais dos países africanos de língua portuguesa (PALOP) na prática não funcionam. Um exemplo é o direito à naturalização que tem sido obstaculizado de inúmeras formas e que, na prática, se constitui letra morta. As exigências para a regularização da residência, do mesmo modo, têm obstruído o direito humano a migrar. Ações de facilitação de permanência como a liberação da Taxa de Processamento para os originários do PALOP são importantes, mas ainda são insuficientes para o gozo de direitos. Seria necessária a total liberação do pagamento de taxas para residência e reunião familiar, para contemplar as especificidades da maioria dos contingentes africanos que migram para o Brasil. [27]

Outro problema que vale ressaltar é o da naturalização, que encontra previsão no art. 64 da Lei de Migração. Os óbices ao usufruto do direito à naturalização para os africanos não-lusófonos, conforme estabelecido pela Lei de Migração, se mostram flagrantes devido às dificuldades que a própria norma impõe para demonstrar a proficiência em língua portuguesa. Os nacionais PALOP não enfrentam a barreira da língua, mas encontram outras dificuldades para efetivarem a naturalização extraordinária, além da demora injustificada de finalizarem o processo.

Diante disso, como forma de reconhecer e enfrentar a colonialidade do poder nesta matéria, aqui se propõe a concessão da naturalização brasileira a partir de um ano de residência para todos nacionais dos países vitimados pelo tráfico transatlântico como forma de radicalização do direito de ir e vir, e como um passo efetivo para aplicação de uma política genuína de ação afirmativa. O elo entre raça e direitos de cidadania desfrutado apenas por aqueles investidos de nacionalidade precisa ser desfeito proativamente. Neste sentido, como um dos resultados desta pesquisa, recomenda-se aqui, também, que o Brasil se comprometa a celebrar um acordo de livre circulação de pessoas com a União Africana e o Haiti.

Além disso, é necessário afirmar que a Lei 13.445/2017 não se adequa fielmente às orientações da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) contidas nas Resoluções 68/237/2013 e 69/237/2013, que instituíram a Década Internacional da Afrodescendência (2015 a 2024) e aprovaram um Plano de Ações que obriga os Estados a promoverem uma agenda concreta para eliminação do racismo, da discriminação racial, xenofobia e das intolerâncias correlatas[28]. A Década dá continuidade à implementação da Declaração e do Plano de Ação de Durban de 2001, que reconhece que as pessoas de ascendência africana que foram vítimas da escravidão, do tráfico atlântico e do colonialismo continuam a padecer das consequências advindas desses processos. O “Programa de Atividades” prevê a realização de uma série de medidas que devem ser articuladas em âmbitos nacional, regional, internacional e pela própria ONU em torno dos três pilares: Reconhecimento, Justiça e Desenvolvimento.

A Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU) na sua 68a sessão, por exemplo, sinalizou a preocupação sobre o racismo relacionado às migrações contemporâneas e os sofrimentos que acometem os afrodescendentes migrantes no mercado laboral dos países-anfitriões. As Resoluções 68/143, 68/141 e 68/180da AGNU demandam aos Estados que empreendam um sistema de proteção e assistência aos refugiados africanos[29]. Em outubro de 2010, a AGNU debateu sobre a promoção de medidas para encorajar a salvaguarda dos direitos humanos dos migrantes face à discriminação racial desses coletivos que são, comprovadamente, mais vulneráveis à xenofobia, preconceitos e violações, sobretudo as crianças.[30] Assim, a falta de políticas específicas que interseccionem a raça e as migrações, e a desatenção da lei de Migração com a proteção especial de negros/as imigrantes faz do Brasil um Estado inadimplente das normas internacionais.

É preciso ter em conta que o racismo estrutural ganha força diante do mito da democracia racial que fantasiou a existência de uma sociedade plural, tolerante, rica de tradições, sem preconceitos. Como visto na seção 1, esta imagem idílica antecede as formulações de Gilberto Freyre em pelo menos um século, remontando às discussões sobre o haitianismo, conforme as formulações do liberalismo de Evaristo da Veiga e Candido Soares Meirelles. No plano internacional a formulação freireana forjou uma imagem de pátria de migrações, de país da mestiçagem, fruto do sucesso da colonização portuguesa que criara um ser nacional alegre, acolhedor, livre de racismo e xenofobia. Cumpre notar que tal mito depende da tese do “luso-tropicalismo” e seu “colonizador benevolente” (Pinto 2009), que hoje são objeto de contestação, mas também de persistência, conforme Joana Gorjão Henriques (2017) constata em sua obra Racismo em Português[31]. De todo modo, a evocação de traços herdados da era colonial para explicar relações de poder após seu fim é justamente como Aníbal Quijano (1999) conceitua a noção de colonialidade.

Tal narrativa é tão potente que, mesmo passado quase dois séculos de sua concepção, ela continua se configurando como o retrato do Brasil no mundo. Como visto, até hoje existem intelectuais representantes da branquitude que insistem em postular a tese de ausência de raça no debate político do processo de independência brasileira, mesmo na plena vigência do regime escravista (Berbel e Marquese 2007). Inclusive, esse perfil imaginativo é um dos motivos alegados por muitos afro-diaspóricos quando interpelados sobre as razões de sua escolha por migrarem para este país. Entretanto, ao chegarem aqui, imigrantes se defrontam com a ausência de políticas públicas de acolhimento e de integração, e com uma realidade nacional que aponta para o genocídio da população negra, e para inúmeras situações de racismo cotidiano que se manifestam tanto nas relações intersubjetivas, como nas institucionais sociais e econômicas. Um representante de uma associação de imigrantes haitianos, por exemplo, afirma que “alguns brasileiros tratam os haitianos como escravos”[32].

No Brasil, esta discrepância entre o mito difundido e a realidade encontrada nas relações raciais é uma expressão de uma colonialidade própria a esta formação social, que se revela com nitidez na experiência dos imigrantes racializados. Nesta ambiência de negação de si próprio, haja vista que a África faz parte da cultura e da História do Brasil, a normatividade branca segue reproduzida nas discursividades sobre migrações, uma vez que continuam reforçando os desejos de atrair uma tipologia “ideal” de migrante que termina sendo o cidadão branco de países do Norte global. Em contraste, a grande imprensa difunde, sem rodeios, repetidas narrativas de alerta sobre os riscos de uma “invasão haitiana” decorrente de um fluxo migratório racialmente indesejado.[33] Assim, também na seara da mobilidade humana, o racismo assume a conotação de preconceito de “marca”[34] (Nogueira 2007), já que os traços fenotípicos formam o pilar que estrutura as relações raciais, mediando as discriminações experimentadas por negras e negros. E, por isso, é fundamental incorporar o elemento 'raça' como categoria analítica das migrações no Brasil, o que a Lei de Migração, infelizmente, faz com excessiva timidez.

O mito do binômio “casa grande & senzala” serve, sobretudo, para reforçar lugares de privilégios da branquitude diante da negação da existência do racismo na pátria da "morenice". Mais que isso, assim como no haitianismo do século XIX, o silenciamento do racismo aparece não apenas na ideia de mestiçagem, mas também nas repetidas afirmações de que a legislação brasileira, mesmo durante a vigência da escravidão, não continha nenhum dispositivo que explicitamente fizesse distinções raciais. Um direito abstrato, portanto, que se cala frente a realidade objetiva na qual o cativeiro era destinado exclusivamente àqueles classificados como não-brancos, contribuía para moldar o mecanismo tipicamente brasileiro de discriminação jurídica racial, que opera mediante a postulação de um sujeito universal inexistente nas relações empíricas e cotidianas de poder, até hoje.

Tal silenciamento reforça hierarquias e impede a formulação de políticas públicas assertivas contra as desigualdades sociais. Assim, a condição de imigrantes negros no Brasil ganha conotação de hiper-vulnerabilização quando se soma a raça a outros marcadores de subalternidade nomeadamente, classe, gênero, sexualidade, nacionalidade e idioma. Neste contexto de subordinações múltiplas e interseccionais, a falta de políticas públicas de acolhimento e integração vulnerabiliza os sujeitos diaspóricos. Importante observar, por fim, que imigrantes negros e negras são vulnerabilizados pela ação e pela inação do Estado. Ou seja, não são pessoas vulneráveis; são pessoas vulnerabilizadas devido a inexistência de políticas públicas adequadas, o que é diferente. Ao contrário do que habitualmente se pensa, migrar é ato de resistência e de sobrevivência. A migração é atitude de força, de fé, de esperança, de coragem, de opção pela vida.

Considerações finais

A trajetória das políticas migratórias brasileiras mostra como o Direito e as Instituições brasileiras estiveram a serviço da racialização do sujeito e do genocídio do povo negro. Expressa, assim, forte colonialidade do poder. Nota-se que a aplicação de normas hierarquizadoras ocasionou mais de século de violências e negação de direitos travestidas de impedimento à entrada, da criminalização e da imposição de barreiras para fixação de pessoas negras neste país. Isto tudo após três séculos de diáspora forçada destas mesmas populações pelo tráfico de africanos escravizados. Resta, neste quadro, a certeza da importância e necessidade de se incluir a raça como categoria analítica para estudar a migração norte-sul e sul-sul e, sobretudo, para a construção de políticas efetivas de integração e acolhimento. O recorte de raça, quando somados a outros fatores de subordinação, como gênero, sexualidade, nacionalidade e idioma, potencializam interseccionalmente as condições de opressão contra certos grupos.

Por outro lado, o Direito, pode ser, e é, em muitos casos, um instrumento de emancipação. Prova disso é a promulgação de normas vocacionadas à reparação e ao enfrentamento do racismo estrutural existente na sociedade brasileira e as políticas de ações afirmativas, como é o caso do sistema de cotas. Entretanto, é necessário avançar, o que significa estender a política de ações afirmativas para promover a inclusão de todos os povos negros que residem no Brasil que são nacionais de Estados acometidos pelo tráfico transatlântico. Para tal, é necessário, primeiramente, a construção de políticas públicas nacionais, estaduais e municipais como previsto na nova Lei de Migração. E, em segundo lugar, é imperativo que tais políticas abarquem as especificidades dos coletivos de imigrantes.

É certo que a Lei de Migração orienta uma nova mentalidade que produz uma mudança paradigmática, mas a universalização totalizante da categoria do imigrante naturaliza, ou mesmo silencia e despolitiza, certos papéis sociais. O protagonismo exercido pelas forças policiais também é uma constante na legislação migratória e ainda não foi completamente superado: sabe-se que a abordagem securitária do imigrante segue critérios raciais, construindo discursivamente aqueles que serão alvos da atuação policial, como o caso da “invasão” haitiana nas manchetes da grande imprensa confirma. Confrontar os privilégios e as condições hierarquizantes, é passo fundamental para romper com as estruturas e, especialmente, para abrir caminhos de emancipação.

Para tanto, é necessária uma constante atenção aos legados históricos das relações de poder constitutivas da sociedade brasileira, de modo a fazer das normas sobre migração um mecanismo de enfrentamento do racismo estrutural, tanto em seus atos como nas omissões. Sem isto, é difícil que o marcador de ‘raça’ deixe de informar os de nacionalidade e cidadania, como tem sido a norma desde o alvorecer do Estado brasileiro pós-colonial. A colonialidade do saber historiográfico que insiste na ausência de raça no debate político do Brasil imperial participa da mesma genealogia em que se insere o virtual silêncio da Lei de Migração atual sobre ‘raça’. A discussão feita neste artigo e as propostas aqui elencadas apontam, portanto, para avenidas que devem continuar sendo percorridas em direção à descolonização das instituições jurídicas, políticas, das formas de produção de conhecimento e dos modos de ser.

Referências

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Notas

Notas [1] Apesar de não constar no Código Criminal de 1830, era comum se referir ao “crime” do Haitianismo, como faz o Aurora Fluminense nas edições de 01/04/1835, 2 e 06/04/1835, 3. Por sua vez, o Nova Luz Brasileira, influente veículo dos Liberais Exaltados alerta que “há pena de morte para o Haitianismo” em artigo de 17/08/1831, 5. Também há relatos de castigos físicos sumários envolvidos com esta prática. O pasquim O Bacorinho, por exemplo, informava sobre cenas do tipo: “este ladrão está assim engraxado de preto porque é um refinado haitiano e deve tomar 800 açoites de uma só assentada”; ou “muitas outras inculpações foram feitas ao Bacorinho e, em conformidade com o Código, foi ali mesmo na praia condenado a levar 1.200 vergalhadas por haitiano” (O Bacorinho, nº 2, 02/02/1836, 1-2). Segundo o relato de um magistrado, “em Valença, houve preto que levou mais de mil açoites por simples presunção de Haitianismo” (Jurujuba dos Farroupilhas, nº 15, 16/11/1831, 3-4 – itálicos no original). A grafia dos documentos foi atualizada pelas autoras para o uso atual. Os originais em fac-símile podem ser consultados mediante acesso à Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Brasil.

[2] Jurujuba dos Farroupilhas, nº5, 23/09/1831, 2. O termo “corcundas” era utilizado, na época, para designar pejorativamente aos defensores do absolutismo e da restauração do regime de D. Pedro I, até sua morte, em 1834.

[3] Jurujuba dos Farroupilhas, nº5, 23/09/1831 3. Itálicos no original.

[4] Jurujuba dos Farroupilhas, nº10, 07/10/1831, 2.

[5] O Filho da Terra, nº 3, 21/10/1831, 6.

[6] Pão d’Assúcar, nº 27, 07/04/1835, 2-3.

[7] Idem, 3.

[8] Aurora Fluminense, nº 1036, 06/04/1835, 2-3 (itálicos no original, negritos adicionados).

[9] Anais do Parlamento Brasileiro, sessão de 27/06/1848, 280 – grifo nosso.

[10] Ibid.

[11] Anais do Parlamento Brasileiro, sessão de 23/06/1848, 265.

[12] Anais do Parlamento Brasileiro, sessão de 23/06/1848, 265.

[13] Durante a crise política que levou à independência, D. Pedro I acusou as Cortes de Lisboa de tentar reproduzir no Brasil as “cenas terríveis do Haiti” (BRASIL 1822, s/p.). José Bonifácio, em sua famosa representação à Assembleia Constituinte sobre a escravatura, alertou sobre o risco de termos “uma revolução como a de São Domingos” (Andrada e Silva 2011 [1825], 181). O jornal pernambucano O Cruzeiro foi pioneiro na prática de alertar que políticas tendentes a promover a “igualdade” sócio-racial iriam fazer do “Brasil um novo Haiti” (O Cruzeiro, nº 40, 25/06/1829, 4). Na segunda metade do século XIX, o promotor, juiz, deputado e crítico literário Silvio Romero afirmava que o “negro é um ponto vencido na escala etnográfica” e que não se deveria cogitar abolir a escravidão, pois o “Brasil não é, não deve ser, o Haiti” (Romero apud Azevedo 2004, 60). Por fim, há exemplos desta prática até mesmo após a proclamação da república, quando em 1893 um editorial na imprensa paraense lamentava o fim da monarquia ao criticar a “satânica tentativa de transformar o grande Império do Brasil em uma segunda república do Haiti” (Gazeta Paraense, nº 422, 04/10/1893, 1).

[14] Gazeta Comercial, republicado no Pão D’Assúcar, nº 27, 07/04/1835, 3.

[15] O racismo se expressa como desigualdade política, econômica e jurídica. O racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo “normal” com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional (Almeida 2019, 38-9).

[16] As estimativas do Banco de Dados sobre Tráfico Transatlântico de Escravizados apontam o Brasil como o maior receptor/comprador de seres humanos provenientes da África, com um total de 5.848.266 pessoas. Ver tabelas, metodologia e projeções em (acesso em abril de 2020): https://www.slavevoyages.org/assessment/estimates

[17] Sobre o Haitianismo, em geral, consultar Soares e Gomes (2002) e Morel (2017).

[18] Vide o caso de Luíz Xavier de Jesus. Cidadão-brasileiro naturalizado - negro, africano e forro - foi impedido de retornar da Costa da África, onde estava a negócios, ao Brasil após ser enquadrado como suspeito de ter participado da Revolta dos Malês (1835). Ainda que fosse cidadão-brasileiro e tivesse apelado através deste argumento a favor de seu retorno “Luiz Xavier de Jesus era um exilado em sua própria terra” (Brito 2009, 27).

[19] Para a íntegra do Decreto, ver (acesso em abril de 2020):

https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-528-28-junho-1890-506935-publicacaooriginal-1-pe.html

[20] Robert Abbot, negro, rico e dono de um dos maiores jornais da imprensa negra dos EUA na época, defendia um projeto de imigração dos negros americanos para o Brasil. Abbot teve seu visto de turista para o Brasil negado em 1923 (Pereira 2010).

[21] Em 1926, o governo insere na Constituição a restrição de imigrantes desordeiros através da Emenda Constitucional de 3 de Setembro, alterando o art.72 ao estabelecer o seguinte parágrafo (Moraes 2014): "Art. 72 A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no paiz a inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade, á segurança individual e á propriedade, nos termos seguintes: [...] § 33. É permitido ao Poder Executivo expulsar do territorio nacional os suditos estrangeiros perigosos á ordem publica ou nocivos aos interesses da Republica” (Brasil 1926).

[22] Ainda que os brancos também constituam uma raça, utiliza-se o termo racializado aqui para enfatizar a hierarquização de pessoas negras.

[23] Estes dispositivos que criminalizam a mendicância e vadiagem foram revogados pela Lei de nº 11.983, de 2009.

[24] Concessão de igualdade de Direitos e Obrigações Civis e Gozo de Direitos Políticos.

[25] Esta prática é antiga. O Código Criminal de 1830 tipificava crimes e estipulava penas diferenciadas caso fossem cometidos por cidadãos ou por ‘escravos’, isto é, por negros. Assim é que se distingue o crime de Insurreição, previsto no Artigo nº 113 (“Julgar-se-á cometido este crime a reunião de 20 ou mais escravos para haverem a liberdade por meio da força”), cuja pena é de morte, dos crimes de Rebelião e Conspiração, cuja redação se encontra nos Artigos nº 107, 108, 109 e 110, onde não se menciona escravos e não há pena de morte, além de várias possibilidades de prescrição e perdão, fora o fato de requerem literalmente mil vezes mais pessoas envolvidas: são necessárias 20 mil pessoas para ser configurada uma Rebelião (de brancos) com objetivo de derrubar o governo, mas apenas 20 escravizados pedindo por sua liberdade era considerada Insurreição. Cf. BRASIL, Código Criminal do Império do Brasil – nova edição. Recife: Tipografia Universal 1858.

[26] Em 1793, dois anos após o início da Revolução Haitiana, o representante francês é obrigado a proclamar o fim da escravidão na ilha, sendo no ano seguinte seguido pela Convenção Nacional da França. Já sob o governo de Toussant L’Ouverture, em 1801, a liberdade foi reafirmada frente às tentativas de restabelecer o escravismo pela metrópole e outra vez mais, em 1804, sob liderança de Jean Jacques Dessalines, com a declaração de independência total do Haiti. Ver, a respeito James (1989) e Dubois (2004).

[27] Os africanos do CPLP são liberados do pagamento da Taxa de Processamento e Avaliação de Pedidos de Autorização de Residência, mas obrigados a pagarem outras como a de emissão de Carteira de Registro Nacional Migratório cujo Valor atual em outubro de 2019 é R$ 204,77 (Fernandes 2019).

[28] “Estados devem adotar e implementar políticas e programas que providenciem efetiva proteção, além de revisar e revogar todas as políticas e leis que poderiam discriminar pessoas de descendência africana que enfrentam múltiplas, agravadas ou interseccionadas formas de discriminação baseadas em outros níveis, como sexo, língua, religião, política ou opiniões diversas, origem social, nascimento, deficiência ou qualquer outro status”. (A/RES/68/237, 2, tradução nossa)

[29] UN General Assembly, Assistance to refugees, returnees and displaced persons in Africa (A/RES/68/143) 2013; UN General Assembly, Office of the United Nations High Commissioner for Refugees (A/RES/68/141) 2013; UN General Assembly, Protection of and assistance to internally displaced persons (A/RES/68/180) 2013.

[30] O então Secretário-geral solicitou aos Estados que incorporassem as legislações pertinentes nos seus corpos jurídicos e administrativos internos e adotassem planos nacionais com vistas a reforçarem a proteção dos migrantes e a concluírem acordos nos planos nacional, regional e internacional relacionados à discriminação racial e xenofobia (UN 2010).

[31]Até para expoentes de teorias críticas contemporâneas, como Boaventura de Sousa Santos, Portugal seria uma espécie de Norte não-imperial: “o colonialismo português, sendo conduzido por um país semiperiférico, foi ele próprio semiperiférico, ou subalterno; em razão de suas características e duração histórica, a relação colonial protagonizada por Portugal impregnou de modo muito particular e intenso as configurações de poder social, político e cultural não só nas colônias como no seio da própria sociedade portuguesa. A especificidade do colonialismo português assenta basicamente em razões de economia política — a sua condição semiperiférica5 —, o que não significa que esta tenha se manifestado apenas no plano econômico. Ao contrário, manifestou-se igualmente nos planos social, político, jurídico, cultural, no plano das práticas cotidianas de convivência e sobrevivência, de opressão e resistência, de proximidade e distância, no plano dos discursos e narrativas, do senso comum e dos outros saberes, das emoções e afetos, dos sentimentos e ideologias” (Santos 2003, 25).

[32] A declaração é de Fedo Bacourt, da União Social dos Imigrantes Haitianos – USIH, com sede em São Paulo. Para a entrevista completa, ver (acesso em abril de 2020): http://sindicomerciariosviamao.com.br/sec/alguns-brasileiros-tratam-os-haitianos-como-escravos-denuncia-associacao-de-imigrantes/

[33] Ver reportagens do jornal O GLOBO de 01/01/2012 e 07/01/2012, que trazem a palavra “invasão” em suas manchetes, respectivamente em (acesso em abril de 2020): https://oglobo.globo.com/brasil/acre-sofre-com-invasao-de-imigrantes-do-haiti-3549381; https://oglobo.globo.com/brasil/acre-sofre-com-invasao-de-imigrantes-do-haiti-3549381

[34] Em oposição ao preconceito de origem que vigora nos Estados Unidos.



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