Rev. nuestrAmérica, 2023, n. 22, publicação contínua, e8125889

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Licença: CC BY NC SA 4.0

Recebido: 27 de junho de 2023

Aceito: 27 de outubro de 2023

Publicado: 7 de novembro de 2023


O espaço, o lugar e o território da Baixada Fluminense nas Epistemologias do Sul

El espacio, lugar y territorio de la Baixada Fluminense en las Epistemologías del Sur

The space, place and territory of the Baixada Fluminense in the Epistemologies of the South

 

Diogo Piassá das Mercês

Mestrando em Educação

Programa de Pós-graduação em Educação/Faculdade de Educação/ Universidade Federal do Río de Janeiro

Río de Janeiro, Brasil

diogolione@gmail.com

https://orcid.org/0000-0003-1078-9431

 


Resumo: O presente artigo tem por objetivo apresentar alguns aspectos da Grande Iguaçu, região localizada na Baixada Fluminense, região metropolitana do estado do Rio de Janeiro, a luz das chamadas “Epistemologias do Sul”, conceito criado pelo pesquisador Boaventura de Sousa Santos. Para tal fim, utilizando-se do livro homônimo, em especial o capítulo escrito pelo geografo Milton Santos, os conceitos de espaço, lugar e território serão evocados para balizar o entendimento do quem vem a ser esta região marcada por egressos do cativeiro, como também apresentar o periódico Correio da Lavoura, um jornal capitaneado por mão pretas, fundado pelo intelectual afroiguaçuano Silvino de Azeredo em 22 de março de 1917. O “Sul” deste artigo se fará presente ao propor um debate do que vem a ser esta região marcada por muito tempo como um lugar dominado somente pela violência, abandono e miséria. Espera-se, a partir da Pesquisa Bibliográfica enquanto metodologia de pesquisa, apresentar uma das possíveis formas de compreender as ricas Histórias de Nova Iguaçu.

Palavras-chave: Epistemologias do Sul, Baixada Fluminense, imprensa.

 

Resumen: Este artículo pretende presentar algunos aspectos de Grande Iguaçu, región localizada en la Baixada Fluminense, región metropolitana del Estado de Río de Janeiro, a la luz de las llamadas «Epistemologías del Sur», concepto creado por el investigador Boaventura de Sousa Santos. Para ello, utilizando el libro del mismo nombre, especialmente el capítulo escrito por el geógrafo Milton Santos, se evocarán los conceptos de espacio, lugar y territorio para marcar la comprensión de «quién es» esta región marcada por el antiguo cautiverio, además de presentar el periódico Correio da Lavoura, un periódico dirigido por hombres negros, fundado por el intelectual afroiguazuense Silvino de Azeredo el 22 de marzo de 1917. El «Sur» de este artículo estará presente al proponer un debate de lo que ha sido esta región, marcada durante mucho tiempo como un lugar dominado solo por la violencia, el abandono y la miseria. Se espera, a partir de la pesquisa bibliográfica como metodología de investigación, presentar una de las posibles formas de comprensión de la rica historia de Nova Iguaçu.

Palabras clave: Epistemologías del Sur, Baixada Fluminense, prensa negra.

 

Abstract: This article aims to present some aspects of Grande Iguaçu, a region located in Baixada Fluminense, metropolitan region of the state of Rio de Janeiro, in the light of the so-called "Epistemologies of the South", a concept created by researcher Boaventura de Sousa Santos. To this end, using the book of the same name, especially the chapter written by the geographer Milton Santos, the concepts of space, place, and territory will be evoked to mark the understanding of who this region marked by former captivity is, as well as to present the periodical Correio da Lavoura, a newspaper run by black men, founded by the afro-iguazuans intellectual Silvino de Azeredo on March 22, 1917. The "South" of this article will be present when proposing a debate on what this region, marked for a long time as a place dominated only by violence, abandonment, and misery, has been. It is expected, based on the bibliographical research as a research methodology, to present one of the possible ways of understanding the rich history of Nova Iguaçu.

Keywords: Epistemologies of the South, Baixada Fluminense, black press.


 

 

Introdução

A proposta deste trabalho é tecer algumas aproximações entre as chamadas “Epistemologias do Sul”, conceito cunhado pelo pesquisador português Boaventura de Sousa Santos com os conceitos de espaço, lugar e território, saberes do campo da Geografia, a partir do artigo de Cunha (2008), o texto produzido pelo geógrafo brasileiro Milton Santos que integra o livro de mesmo nome organizado pelo pesquisador anteriormente citado e seus atravessamentos na compreensão do que vem ser a Grande Iguaçu, território circunscrito localizado na atual Baixada Fluminense, região metropolitana do estado do Rio de Janeiro, enquanto espaço, lugar e território de disputas na década de 1910 e 1940, a saber, período áureo da citricultura na região.

A pesquisa aqui apresentada está em curso e faz parte da dissertação de mestrado em Educação. Isto indicia que nada apresentado está sólido e/ou consolidade, sendo reescrito e ressignificado a cada nova fonte, indício ou evidencia localizada. Espera-se, com esta leitura, apresentar um aspecto em especial das ricas histórias da cidade de Nova Iguaçu e, de igual modo, compartilhar o que já foi construido até esta etapa da pesquisa.

 

Metodologia

A Pesquisa Bibliográfica é o “sul” do artigo aqui apresentado. Como no convida o pensador português, a Baixada Fluminense, mais específicamente a cidade de Nova Iguaçu é o lugar, espaço e território de embates escolhido pelo escritor destas poucas palavras. Desta feita, articular o livro homônimo com as produções dos pesquisadores e pesquisadoras da Baixada são um dos caminhos possíveis para, primeiro, edificar a “Epistemologia do Sul” do escritor deste texto e, depois, edificar um dos possíveis entendimentos do que vem a ser as ricas histórias da cidade de Nova Iguaçu.

 


Figura 1 Mapa da Grande Iguaçu

 


 

Discussão

Ao iniciar esta conversa contigo, caro leitor, alguns conceitos precisam ser convocados para delimitar e pavimentar os caminhos que serão trilhados nessas poucas palavras. E no campo dos questionamentos, o primeiro que surge e, ao ver do escritor deste texto, o mais importante seria: o que são as chamadas “epistemologias do sul”? Para responder esta questão, nada melhor que convidar a participação dos autores Santos e Meneses (2010) para elucidar a questão. Segundo estes

Trata-se do conjunto de intervenções epistemológicas que denunciam a supressão dos saberes levada a cabo, ao longo dos últimos séculos, pela norma epistemológica dominante, valorizam os saberes que resistiram com êxito e as reflexões que estes têm produzido e investigam as condições de um diálogo horizontal entre conhecimentos. A esse diálogo entre saberes chamamos ecologia de saberes. (Santos e Meneses 2010, 7)

A partir desta contribuição dos autores e, dialogando com suas reflexões, pode-se perceber que, apesar da multiplicidade da vida humana, as vivências, experiências, as formas de ver/perceber/entender as sociedades, as produções de conhecimento, segundo os autores, foram colonizadas e, a grosso modo, formatadas para reconhecer um único método e modelo de se produzir ciência, ou seja, só seriam considerados como conhecimentos “válidos” aqueles produzidos a partir da dinâmicas centradas nas “epistemologias do norte”.

A “colonização” destes saberes estaria nos diferentes estratos da vida em sociedade e “invalidariam” ou colocariam outras tantas práticas difusas em lugares de subalternidade. Para exemplificar o pensamento aqui proposto, podemos trazer como a medicina dos povos tradicionais e/ou originários é colocada em um lugar quase alegórico quando comparado aos saberes médicos institucionalizados. A medicina milenar chinesa, a utilização de plantas e ervas, com eficácia inclusive comprovada pela dita “ciência moderna” recebe a adjetivação de “medicina alternativa”, quando é colocada em patamar de igualdade com outras práticas médicas.

Essa soberania epistêmica engendrou aquilo a que o autor chama de epistemicídio. Este seria manifestado na supressão destruidora de alguns modelos de saberes locais, na desvalorização e hierarquização de tantos outros, o que levou ao desperdício – em nome dos desígnios colonialistas – da rica variedade de perspectivas presentes na diversidade cultural e nas multiformes cosmovisões por elas produzidas. (Gomes 2012, 7)

O convite feito pelos autores é um olhar mais atento a estas tantas outras formas de produzir conhecimento, de produzir ciência que não só as chamadas “formais” e, sempre que possível, aproximar nossas práticas destas outras possibilidades de construir saberes e práticas, se apartando um pouco deste “norte” que limita e cerceia e se achegando mais as estas outras possibilidades mais ao sul. E assim sendo, como o geógrafo Milton Santos intercruza suas produções com o pensamento de Boaventura de Sousa Santos?

Milton Santos[1] - professor, geógrafo, escritor, cientista, jornalista e advogado – é um dos intelectuais brasileiros responsáveis pela renovação da Geografia no Brasil. Em seus estudos pode-se identificar novos entendimentos sobre questões fundamentais como, por exemplo, urbanização, globalização, capitalismo e, ao que cabe neste trabalho, outros entendimentos sobre os conceitos de espaço, lugar e território. Em sua contribuição ao livro do pesquisador Boaventura, que tem por título “O lugar e o cotidiano” o autor passeia por inúmeras referências, dialogando também com os pensamentos de Foucault e De Certeau, para presentear os leitores com as noções local e global e como estas são apropriadas e ressignificadas pelos sujeitos e seus atravessamentos e intencionalidades.

Logo no primeiro período construído pelo geógrafo, um conceito muito caro para o pesquisador é evidenciado, a quebra da dicotomia centro e periferia. Para este, a dualidade entre os que estariam no centro, em lugar de evidência, e os que estariam orbitando ao redor, não teria mais sentido, podem o centro ser em qualquer lugar e as franjas – os ditos locais periféricos – não estariam mais distantes, mas sim numa relação simbiótica com outros “centros”. O pensador afirma

Nas atuais condições de globalização, a metáfora proposta por Pascal parece ter ganho realidade: o universo visco como uma esfera infinita, cujo centro está em toda parte... O mesmo se poderia dizer daquela frase de Tolstoi, tantas vezes repetida, segundo a qual, para ser universal, basta falar de sua aldeia. (Santos 2010, 495)

A partir desse fragmento, pode inferir que as dinâmicas da vida não permitem mais sua fragmentação ou particionamento em “os de dentro e os de fora” ou até mesmo “os de perto e os de longe”. É possível indiciar que, dada a fluidez das relações humanas, estes centros poderiam – e podem, sempre de acordo com os atravessamentos e intencionalidades – transmutassem em franjas, em periferias e estas, dentro de suas singularidades, conterem centros emergentes. Os falsos pares antagônicos, desta forma, acabam por ruir ao se propor que, trazendo Michel Foucault para a nossa conversa, estes sujeitos, ao ressignificaram os lugares aos quais estão inseridos, sujeitam e são assujeitadas, qualquer centro é periferia e qualquer periferia é centro. E o que tornaria estes cotidianos tão singulares, tão mais “ao sul”?

Os sujeitos seriam estes que ressignificariam os locais aos quais permeia, transformando-os em espaços, lugares e territórios. A pesquisadora Maria Isabel da Cunha, produziu um importante trabalho que vem ao encontro do que aqui é proposto ao se estudar “os conceitos de espaço, lugar e território nos processos analíticos da formação dos docentes universitários” (Cunha 2008, 182). Estabelecendo uma conversa profícua com a geografia, a pesquisadora, em seu artigo, nos demonstra como estes conceitos tão caros são fundamentais para escrutinar as ações dos sujeitos nos diferentes lugares que ocupam. Nas palavras da autora

A dimensão humana é que pode transformar o espaço em lugar. O lugar se constitui quando atribuímos sentido aos espaços, ou seja, reconhecemos a sua legitimidade para localizar ações, expectativas, esperanças e possibilidades. Quando se diz “esse é o lugar de...”, extrapolamos a condição de espaço e atribuímos um sentido cultural, subjetivo e muito próprio ao exercício de tal localização. (Cunha 2008, 184)

São os sujeitos, ao transitarem pelos espaços e ressignificá-los, que os transformam em um lugar. E estes agora podem – e são – em qualquer lugar. Quem nunca sentiu a sensação de retornar a sua casa ao ver a placa “limite entre o estado ‘X’ e o Rio de Janeiro” mesmo estando há muitos quilômetros de casa? Ainda sim, o conforto que nos causa é porque ressignificamos o sentido de casa, de pertencimento, de um lugar para chamar de seu. Desta feita, colocando novamente o geógrafo no jogo, qualquer lugar é centro a partir do olhar de seus sujeitos. Assim, “o espaço se dá ao conjunto dos homens que nele se exercem como um conjunto de virtualidades de valor desigual, cujo uso tem de ser disputado a cada instante, em função da força de cada qual” (Santos 2010, 498).

São nestas relações desiguais de poder-saber que os sujeitos produzem e transmutam os espaços em lugares, ou seja, “o lugar representa a ocupação do espaço pelas pessoas que lhe atribuem significado e legitimam sua condição” (Cunha 2008, 184).

O lugar, então, é o espaço preenchido, não desordenadamente, mas a partir dos significados de quem os ocupa. (...) Os lugares são preenchidos por subjetividades. É nesse sentido que os espaços vão se constituindo lentamente como lugares “passando a ser dotados de valores e inserindo-se na geografia social de um grupo, que passa a percebê-los como sua base, sua expressão. (Lopes 2007, 77, apud Cunha 2008, 185)

E a relação entre estas outras epistemologias e os lugares que elas ocupam produzem territórios. A ocupação destes nem sempre se dá de maneira pacífica, ou seja, quase sempre é necessário se afirmar enquanto produtoras de saberes quando, muitas das vezes são subalternizadas e/ou colocadas em lugar de inferioridade antes as outas ciências “historicamente instituídas”. A ocupação destes territórios carrega em seu bojo intencionalidades de seus sujeitos que se fazem valer a partir de múltiplas formas de “emergência” ou seja, fazendo emergir suas práticas e as tensões que permeiam seus espaços de luta e embate.

O território tem uma ocupação, e essa revela intencionalidades: a favor de que e contra que se posiciona. Nessa perspectiva, não há territórios neutros. A ocupação de um território se dá no confronto entre forças. Ao ocuparmos os lugares, estamos fazendo escolhas que preencherão os espaços e os transformarão em territórios. A escolha de uma dimensão anula a condição de outra se estabelecer. Mesmo assumindo a possibilidade da contradição e da dialética, as forças em tensão revelam predomínios que sinalizam disputas de poder. (Cunha 2008, 185)

E estas relações de poder-saber estão constantemente se contraindo e se alongando de acordo com as ações dos sujeitos. Eis o convite de Boaventura. O autor nos convida a estarmos mais ao sul, a ocuparmos estes espaços e transformá-los em territórios, ressignificando esta ótica “do norte” e produzindo outros tantos saberes que não estão alinhados com estas formas de pensamento colonizadas. Produzirmos nossos “Sul” a partir de nossas metodologias e filiações.

O território é, assim, um espaço mediado pelas representações construídas por um determinado grupo ao estabelecer seu poder frente a outro e que se apropria do espaço como forma de sua expressão e projeção. (...) O espaço se transforma em lugar quando os sujeitos que nele transitam lhe atribuem significados. O lugar se torna território quando se explicitam os valores e dispositivos de poder de quem atribui os significados. (Lopes 2007, 80, apud Cunha 2008, 185)

Seguindo nossa conversa, fica a questão: e como estas questões até aqui apresentadas se relacionam com nossas pesquisas? Partindo das categorias aqui elencadas, será tecido agora algumas considerações sobre a Grande Iguaçu/Baixada Fluminense/Nova Iguaçu enquanto espaço, lugar e território. Maxambomba[2], Cidade Perfume[3] ou Capital[4] da Baixada Fluminense. Diferentes são os adjetivos que demarcam uma das principais cidades da região metropolitana do Rio de Janeiro, Nova Iguaçu, município com significativa relevância histórica, dada por sua posição no fundo da Baía da Guanabara, também chamada de Recôncavo, que por muito tempo foi utilizada como caminho para as Minas, graças aos seus cursos d’água navegáveis que ligavam o interior ao litoral. “Para ter acesso aos terrenos auríferos, a Coroa fez abrir caminhos para as minas, trajetos que cruzam boa parte da Baixada Fluminense atual” (Lira 2019, 42, apud Pinto 2017).

Na esteira dessas alterações, o Recôncavo teve papel relevante, pois, através do Caminho Novo (1698-1710) se tornou o eixo articulador entre o centro político da capitania e o sertão (das minas). Em pouco tempo o sertão tornou-se capitania e o principal polo econômico do Império português. (Nascimento e Bezerra 2019, 52)

A Cidade de Nova Iguaçu nasce do que foi a antiga Vila de Iguassú[5], território circunscrito – como apontou José Mattoso Maia Forte (1933) – que se estendia da Vila de Magé até Nossa Senhora da Conceição de Alferes e Sacra Família, partes pertencentes a Vassouras, e de lá até Itaguaí e completando seus limites com a baia da Guanabara.

A jurisdicção da villa, tal como o decreto da Regencia, de 15 de janeiro de 1833, fixara, tinha, ao norte e noroeste, as terras comprehendidas na villa, então creada, da Parahiba; as freguesias de N.S. da Conceição do Alferes e da Sacra Familia do Tinguá (partes integrantes da Villa de Vassouras, creada pelo referido decreto, que extinguira a villa de Pati dos Alferes); ao sul ficavam as freguezias de Irajá e de Campo Grande; a leste extremava-se com a bahia de Guanabara e com as freguezias de S. Nicolau de Suruhi e de N.S. da Guia de Pacopahiba, da villa de Magé; a oeste com a jurisdicção  da villa de Itaguahi. (Maia Forte 1933, 12)[6]

Um vasto território que foi muito utilizado pela Coroa Portuguesa nos primeiros momentos da ocupação Lusa no Novo Mundo, assim como ocorreu em outras partes do Brasil português. Com o abandono sistemático da Vila por conta dos seguidos surtos de doenças, como a malária, e influenciada pela criação e posterior passagem da Estrada de Ferro D. Pedro II pelas terras do Arraial de Maxambomba, a sede muda-se para as proximidades da linha férrea, alternando completamente a dinâmica urbana, levando à antiga sede ao abandono. Em 1833 é criado o município de Iguaçu. Alguns anos mais tarde, a região que concentra o centro original da Vila recebe o nome de Iguaçu Velho, nome que está estabelecido até hoje.

O deslocamento do centro administrativo do município, da antiga Vila de Iguaçú para as margens da ferrovia, no arraial de Maxambomba, foi oficializado em 1891. Em 1916, o novo núcleo administrativo, Maxambomba, foi nomeado “Nova Iguassú”. (Nascimento e Bezerra 2019, 133)

Partindo do pressuposto que em cada cidade coexistem diferentes urbes, cada qual com sua especificidade, seguindo o entendimento de Pesavento (2007), optou-se aqui por abordar aquela negra, fruto de (des)encontros e atravessada por núcleos egressos do cativeiro. E é nesta cidade constantemente (re)significada por seus sujeitos que se desenrola toda a trama contada aqui.

Às cidades reais, concretas, visuais, tácteis, consumidas e usadas no dia a dia, correspondem outras tantas cidades imaginárias, a mostrar que o urbano é bem a obra máxima do homem, obra esta que ele não cessa de reconstruir, pelo pensamento e pela ação, criando outras tantas cidades, no pensamento e na ação, ao longo dos séculos. (Pesavento 2007, 11)

O pesquisador Carlos Eduardo Coutinho da Costa (2015) produziu importantes trabalhos sobre as migrações negras no contexto do Pós-abolição na região Sudeste a partir de entrevistas realizadas com os descendentes destes sujeitos que abandonaram o campo em busca de melhores condições de vida. A partir da pesquisa empreendida, Costa apontou que muitos destes sujeitos migravam por diferentes fatores: “Em primeiro lugar, nada deve ter incentivado mais a migração do que o desejo de muitos ex-escravos de reunir famílias separadas havia muito tempo pelo flagelo da época da escravidão” (Costa 2015, 107). A necessidade de estar próximo de seus parentes era, ao mesmo tempo, uma condição de sobrevivência como também de segurança, já que as histórias de vida destes sujeitos, muitas das vezes, eram “marcadas pela violência, instabilidade, pobreza e falta de laços parentais extensos” (Costa 2015, 107). Outro fator relevante que foi apontado pelo pesquisador para estas migrações é a possibilidade de acesso à educação:

Um segundo fator a incentivar a migração pode também ter sido a busca de um maior e melhor acesso à educação. Desde o período da escravidão, muitos cativos deixaram, nas cartas de alforria, o desejo de trocar o cativeiro por longos anos de serviço obrigatório em troca de o patrão lhe assistir em caso de doença e, principalmente, dar educação aos seus filhos. (Costa 2015, 107)

As migrações negras que partiam a partir do Vale do Paraíba, em decorrência do declínio da lavoura causado pelo fim do cativeiro, assim como a busca por melhores condições nos novos centros urbanos que emergiam, como a Capital Federal, por exemplo, fez com o que estes grupos viessem a se aproximar destas novas áreas urbanas que cresciam exponencialmente, “ou seja, após 1888, a capital federal passou a ser o centro de atração de mão de obra ociosa do Sudeste, em crise de produção”(Costa 2015, 105).

Apesar de a permanência ter sido a norma entre os que vivenciaram a passagem da escravidão para a liberdade, boa parte dos nascidos entre 1850 a 1869 experimentaram algum tipo de migração. Em primeiro lugar, eram homens, provavelmente solteiros que migraram dentro do interior do Estado, de propriedade para propriedade. A migração definitiva aparentemente esteve mais presente nas trajetórias de vida dos nascidos no pós-abolição. (Nascimento e Bezerra 2019, 191)

É interessante aventar a possibilidade de migração do ator principal deste texto: Silvino de Azeredo. Nascido em Caximbau, na Vila de Iguaçu, sabe-se pouco sobre sua primeira infância e adolescência. A fonte mais consultada sobre sua vida são as informações biográficas compiladas por seu filho Luiz Martins de Azeredo[7]. Este afirma que Silvino nasceu em 17 de junho de 1859 e que, durante a vida, após a morte dos pais e uma doença não especificada, mas que o autor deste texto supõe alguma moléstia respiratória, já que lhe é recomendado os bons ares de Paty dos Alferes, experimentou uma vida viajada entre a Capital, Iguaçu e a Serra. É intrigante supor que o futuro fundador do Correio da Lavoura tenha experimentado algo próximo do que Costa (2015) identificou.

Silvino de Azeredo é um intelectual negro atuante no cenário da Grande Iguaçu das décadas de 1920-1940. O intelectual é um sujeito múltiplo, com abrangência que permeia os estratos público e privado e, algumas vezes, para o público. “A definição de intelectual, independente da atividade profissional, ou da natureza reflexiva do seu trabalho, está condicionada pela intervenção desses produtos ou elaborações reflexivas nos assuntos públicos” (Wasserman 2015, 65), ou seja, sua arena[8] – a ambiência política – acontece na cidade, onde se faz valer pelas amizades tecidas, coletivos edificados e ideias defendidas. É nas diferentes urbes que suas ações são legitimadas. Orbitando os diferentes debates, eventos e acontecimentos, estes elaboram suas redes de sociabilidade e solidariedade.

Os intelectuais modernos exercem suas funções de crítica ou de legitimação da ordem, sendo a cidade o lugar por excelência de exercício dessas atividades. Ou melhor, a condição urbana é definidora do papel dos intelectuais como intervenientes nos assuntos públicos. (Wasserman 2015, 68)

Estar atento as vozes das cidades, seus murmúrios, angústias e queixas, participar dos diferentes debates políticos, deliberar sobre as questões que impactam diretamente as vidas citadinas, direcionar olhares e/ou chamar a atenção da opinião pública para questões que estão na ordem do dia exemplificam algumas das ações destes sujeitos. E para que estas mobilizações encontrassem solo fértil, se fazia necessário estar constantemente em movimento, ou seja, se fazer presente nos múltiplos eventos que cotidianamente acontecem na vida múltipla das cidades.

Uma vida dinâmica e ativa conjugada com uma navegabilidade social se fazem necessárias ao fazer intelectual e estas estão presente nas ações de Silvino Azeredo. Seus passos estão registrados não só em seu periódico como em outras folhas do período. Ao longo destes anos de existência do Correio da Lavoura – 105 anos completos em 2022 – o diretor do jornal assinou poucas colunas, porém empreendeu uma vida pública dinâmica se fazendo presente em muitos eventos, comemorações, missas, debates políticos, reuniões da Liga Brasileira Contra o Analfabetismo, atividades acadêmicas e mais um sem número de ações que não foram registradas nas páginas dos jornais, o que indiciam uma vida ativa, mais uma vez, tecendo redes sociais largas e vastas que, por muitas vezes, estendiam-se, inclusive, para além do território iguaçuano, o Distrito Federal e o próprio Estado do Rio de Janeiro.

É imprescindível pontuar que os sujeitos são múltiplos, sendo impossível capturar todas suas nuances. Neste cosmos que é a vida humana, múltiplas esferas atravessam e marcam o itinerário pensado e/ou proposto, o que torna o viver ainda mais dinâmico e rico, já que é caminhando que se faz o caminho. Sabendo disso, seria impossível enquadrar Silvino Azeredo em todos os pertencimentos que marcaram sua vida. Por conta disso, a premissa que norteará a compreensão de suas ações enquanto intelectual será a prática jornalística.

Sua atividade a frente do jornal foi por e a partir de onde se estruturam parte dos laços de sociabilidade e solidariedade que foram instituídos com a fundação do jornal em 22 de março de 1917, mas não foram os únicos. Ao longo de seus dias, em suas idas e vindas, criou amizades e construiu uma vida pública proativa. De acordo com a biografia compilada por seu filho Luiz Martins de Azeredo, após retornar da cidade de Pati dos Alferes, em 1885, com então 26 anos de idade, matriculou-se – com a ajuda de fazendeiros locais de Pati – no Externato Aquino e, posteriormente, na Escola Politécnica. Concomitante ao curso de Farmácia lecionava matemática no Liceu Português e, também, exercia o cargo de revisor do Diário do Brazil. A pesquisadora Amália Dias em sua Tese “Entre Laranjas e Letras: Processos de escolarização no Distrito-sede de Nova Iguaçu (1916-1950)” (2014) também demarca este fato:

Naquele efervescente período político, Silvino circulava pelo Rio de Janeiro, ensinando matemática no Liceu Literário Português e trabalhando na revisão do Diário do Brazil, fundado e dirigido pelo Deputado Antônio Alves de Sousa Carvalho. Segundo Lusirene Ferreira (2010), o Diário do Brazil era fortemente conservador, antiabolicionista e representava o interesse dos fazendeiros. (Dias 2014, 49)

A questão étnica de Silvino Azeredo é ponto importante que necessita ser abordado. Retornando novamente à biografia escrita por seu filho, o fundador do Correio da Lavoura nasceu em 17 de junho de 1859 em Cachimbau, na Vila de Iguassú. Não se sabe a origem de seus pais, Cândido de Almeida de Azeredo Coutinho e Tereza Joaquina Conceição Coutinho, tão pouco se eram cativos ou forros. De igual modo, nada é mencionado sobre sua condição ao nascer. Fato é que ele nasce 12 anos antes da primeira lei pró-emancipação da população negra cativa. Como pontuou o pesquisador Carlos Eduardo Coutinho da Costa, muitos homens negros experimentaram algum tipo de migração em suas vidas, principalmente entre os anos de 1850 e 1869. Levando em consideração o ano de nascimento de Silvino de Azeredo, é possível supor que o fundador do semanário tenha migrado de seu local de nascimento para o centro da Vila, aproximando-se do epicentro político-administrativo, onde as notícias imperiais teoricamente chegariam mais rápido. Segundo o pesquisador

Apesar de a permanência ter sido a norma entre os que vivenciaram a passagem da escravidão para a liberdade, boa parte dos nascidos entre 1850 a 1869 experimentaram algum tipo de migração. Em primeiro lugar, eram homens provavelmente solteiros que migravam dentro do interior do Estado, de propriedade para propriedade. A migração definitiva aparentemente esteve mais presente na trajetória de vida dos nascidos no pós-abolição. (Costa 2019, apud Nascimento e Bezerra 2019, 191)

O trabalho desenvolvido por Costa utilizou as entrevistas de descendentes diretos de ex-escravizados que estão sobre a salvaguarda do Laboratório de História Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminense. A pesquisa desenvolvida é fundamental pois abre uma nova frente de análise para as migrações que mais tarde colaboraram para a formação populacional da Baixada, já que novas frentes produtoras surgiriam com o aprimoramento da citricultura no território iguaçuano. Ainda segundo Costa:

O crescimento urbano gerado pela expansão da produção de laranjas, aliado aos incentivos governamentais – na política de saneamento, no investimento à exportação e na construção de benesses com o Hospital – podem ter atraído e provocado uma migração em massa, de diversas localidades e de fora do país para o município de Iguaçu. (...) A Baixada Fluminense, região metropolitana do Rio de Janeiro, aparece como destino preferido de filhos e netos de ex-escravos do Vale do Paraíba. (Costa 2019, apud Nascimento e Bezerra 2019, 192)

A possibilidade de deslocamento de Silvino de Azeredo de Cachimbau para a Baixada, região relevante por ser entreposto comercial e, mais tarde, com a chegada da linha férrea podem ter influenciado a escolha em migrar do fundador da folha. As redes de sociabilidade e solidariedade estabelecidas por ex-escravizados, como apontado por Costa (2019) também foram fundamentais para a locomoção, por formarem uma rede de apoio e sustentação para os recém-chegados, ofertando alguma segurança em suas caminhadas. E estas redes de ajuda podem ter impactado significativamente outro aspecto: a escolha de seu colaborados em suas empreitadas.

O fato de ser negro pode ter influenciado de maneira significativa os laços que seriam futuramente estabelecidos, inclusive orientando a escolha dos colaboradores que viriam a integrar o corpo editorial da folha. Nas publicações do periódico delimitadas entre os anos de 1917 e 1939, não foram identificadas notícias, seções de opinião ou colunas que abordassem, pelo menos textualmente, o pertencimento étnico de seu fundador. Entretanto, mudando o ângulo da câmera e ampliando a mirada da objetiva, pode-se perceber vestígios significativos: as diferentes imagens dos colaboradores negros nas páginas. O testemunho ofertado pelas fontes imagéticas pode indiciar como Silvino de Azeredo deixava transparecer sua condição de negro e de seus ajudadores ante os estigmas causados à população negra por conta dos três séculos e meio de escravidão, como Burke (2017, 24) nos informa sobre as imagens:

O uso de imagens, em diferentes períodos, como objetos de devoção ou meios de persuasão, de transmitir informação ou de oferecer prazer, permite-lhes testemunhar antigas formas de religião, de conhecimento, crença, deleite etc. Embora os textos também ofereçam indícios valiosos, imagens constituem-se no melhor guia para o poder de representações visuais nas vidas religiosa e política de culturas passadas.

As imagens, como nos alerta Peter Burke, “são testemunhas mudas, e é difícil traduzir em palavras o seu testemunho. Elas podem ter sido criadas para comunicar uma mensagem própria” (Burke 2004, 18), ou seja, é necessário que uma análise crítica acompanhada de uma compreensão do contexto de criação sejam postos em prática para se evitar o uso alegórico das figuras – como meras ilustrações – que podem causar interpretações errôneas e/ou reforçar concepções enviesadas e disformes. Ainda sim, Burke nos apresenta formas sadias de manipulação deste material, “para utilizar a evidência de imagens de forma segura, e de modo eficaz, é necessário, como no caso de outros tipos de fonte, estar consciente de suas fragilidades (Burke 2017, 26).

Quando utilizam imagens, os historiadores tendem a tratá-las como meras ilustrações, reproduzindo-as nos livros sem comentários. Nos casos em que as imagens são discutidas no texto, essa evidência é frequentemente utilizada para ilustrar conclusões a que o autor já havia chegado por outros meios, em vez de oferecer novas respostas ou suscitar novas questões. (Burke 2004, 12)

Assim sendo, trazer luz sobre o processo criativo das imagens – quem as criou, quando criou, para quem criou e, principalmente, as intencionalidades dos sujeitos – torna-se fundamental para que estes vestígios imagéticos possam transmutar-se em vestígios históricos, já que “esses indícios não necessariamente ditam a relação verídica dos incidentes históricos, mas são testemunhas de uma parcela de articulação e conexão com atores e/ou ambientes históricos” (Godoy e Oliveira 2018, 91).

Juntamente com as palavras de alerta, Burke (2014) concomitante nos aponta as potencialidades das imagens enquanto indícios que podem ser utilizados para aventar uma das possíveis interpretações destes outros presentes estudados pautado em signos de realidade, já que “o termo ‘indícios’ referem-se a manuscritos, livros impressos, prédios, mobília, paisagem (como modificada pela exploração humana), bem como a muitos tipos diferentes de imagens: pinturas, estátuas, gravuras, fotografias” (Burke 2004, 16). Estes indícios dão fôlego e produzem rebatimento positivos “pela sua potencialidade de conexão com possíveis ações e narrativas de um momento histórico, o que os qualifica, portanto, como potenciais documentos históricos (Godoy e Oliveira 2018, 91).

Desta feita, ao propor a utilização das imagens publicadas no Correio da Lavoura, a ação objetiva indiciar, para além do pertencimento étnico do fundador – que como dito anteriormente, não se apresenta em linguagem verbal, mas ali se faz presente em linguagem não-verbal, demonstrando a atuação efetiva de sujeitos negros letrados –também a possibilidade de uma imprensa negra iguaçuana.

A pesquisadora Ana Flávia Magalhães Pinto que estuda a imprensa negra no século XIX e XX demarca em sua pesquisa os vários periódicos dirigidos por homens negros e como estes sujeitos, a partir da imprensa, denunciavam as mazelas da escravidão e o limbo em que se encontravam os negros ainda cativos e, em especial, os libertos, que não estavam mais escravizados e também não eram vistos como cidadão plenos. Estes sujeitos, a partir dos jornais e tipografias formavam redes de sociabilidade e solidariedade, se fortalecendo enquanto grupo e dando corpo e voz as suas demandas.

A pesquisadora estabelece algumas delimitações para o enquadramento dos periódicos com vistas a estruturar o que ela chamou de Imprensa Negra: o(s) autor(es), obra(s) e público(s). Estes três eixos norteariam a análise das publicações e sua disposição na categoria desenvolvida.

(...) recorri às categorias “autor”, “obra” e “público”, na qualidade de momentos da produção comunicativa, como estratégia de explicação. Assim, a noção de pertencimento orientaria essas três instâncias de acordo com suas especificidades. O reconhecimento de um jornal como manifestação da imprensa brasileira passaria pelos laços do periódico com o espaço em questão: feito por brasileiros; em solo brasileiro; direcionado a um público brasileiro; em estreito diálogo com esse público; tratando de assuntos brasileiros.

Como mostraram a história e historiografia da imprensa brasileira, a depender dos interesses, da ocasião e das perspectivas, tais requisitos não precisaram ser contemplados em sua totalidade para que um impresso fosse afirmado como tal. (...) Desse ponto de vista formal, imprensa negra, imprensa brasileira, imprensa abolicionista, imprensa operária ou imprensa feminina seriam somente expressões compostas em que o adjetivo sugere possibilidades de entendimento, às quais também se conectam questões relativas à autoria, ao público e aos objetivos – jornais feitos por negros; para negros, veiculando assuntos de interesse das populações negras. (Pinto 2010, 20)

Partindo das categorias erigidas para a inspeção dos periódicos que poderiam se encaixar dentro das delimitações conceituais por ela estabelecidas, o Correio da Lavoura vai ao encontro em, pelo menos, um dos eixos propostos: feito por sujeitos negros. É possível, ainda, acrescentar mais eixo balizador analisando a folha: a captação de diferentes sujeitos negros com múltiplos pertencimentos sociais: professores, poetas e jornalistas de outros semanários, por exemplo. Este alcance da folha pode indiciar como sua capilaridade, para além da divulgação das notícias jornalísticas, aproximavam os diferentes intelectuais negros dispostos pelo território do Recôncavo. A condução da folha por Silvino Azeredo e Silvino Silverio recebeu significativo destaque em diferentes trabalhos acadêmicos, indiciando sua condição enquanto intelectuais negros que atuavam em Nova Iguaçu, possivelmente mais um fato agregador para a aproximação destes sujeitos.

As fotografias do capitão Silvino de Azeredo publicadas no jornal, assim como de seus familiares e de seu colaborador Silvino Silverio, alertam para uma condição nunca mencionada nos textos: são intelectuais negros. Essa condição nos impõe a pensar a trajetória desse intelectual e sua escolha/possibilidade por atuar na imprensa. (Dias 2014, 44)

Ao fazer uso das imagens como evidências, abre-se uma nova frente de possibilidades em relação a questão étnica dos grupos que transitaram pela folha. Ao estampar na primeira página um afroiguaçuano, intelectual, atuante no cenário público local e regional, o periódico demarca-se como um jornal negro, feito e capitaneado por mãos negras[9]. A diagramação da página, o tamanho e a centralização da fotografia, o cuidado na escolha da melhor imagem, as colunas antecedidas pelas letras garrafais “homenagem ao nosso diretor” indiciam toda a intencionalidade na produção desta memória histórica jornalística local. Um homem negro letrado, intelectual atuante com bom fluxo entre os diferentes estratos da sociedade fluminense e carioca procura construir uma tradição ligada à vanguarda e a própria prática jornalística no Sertão.

Seria imprudente atribuir a esses artistas repórteres um “olhar inocente” no sentido de um olhar que fosse totalmente objetivo, livre de expectativas ou preconceitos de qualquer tipo. Tanto literalmente quanto metaforicamente, esses esboços e pinturas registram “um ponto de vista”. (Burke 2004, 24)

A possibilidade de uma imprensa negra na Grande Iguaçu, a partir dos critérios estabelecidos por Pinto (2010) ganha corpo e forma ao se entrecruzar as imagens encontradas dos colaboradores do periódico com as categorias de análise das fotografias. Esta modalidade de imprensa em lugares não hegemônicos só reforça a importância da Baixada Fluminense enquanto campo de pesquisa. Como afirmar Burke (2017, 209) “toda imagem conta uma história”, e estas histórias, as histórias da Grande Iguaçu, desta Iguaçu negra, podem ser rememoradas por e a partir dos intelectuais negros que por aqui transitaram.


Silvino de Azeredo - Fundador do Correio da Lavoura

Imagem obtida de https://www.correiodalavoura.com/p/quem-somos.html


Este olhar aguçado estaria presente durante a vida de Silvino de Azeredo e seria passado aos seus sucessores, mostrando como pavimentar o caminho a partir do trato com os diferentes sujeitos e como a opinião pública em geral. O fazer intelectual é dinâmico, entretecendo redes, construindo percursos e alianças, ora aproximando-se por diferentes afinidades, ora afastando-se de acordo com as novas propostas que surgem no correr dos dias. Neste aspecto, Silvino de Azeredo, enquanto representante da intelectualidade iguaçuana buscou fortalecer seu periódico a partir das inúmeras relações edificadas, transformando o Correio da Lavoura no mais importante expoente jornalístico da Grande Iguaçu.

Dialogando nuevamente com Costa (2015), estes migrantes – inclusive aqueles que mais tarde formarão o periódico iguaçauno vão, em diferentes momentos, dada sua proximidade com a Capital, ocupar os terrenos da Baixada, assim como contribuirão na formação da população iguaçuana. “A Baixada Fluminense, Região Metropolitana do Rio de Janeiro, aparece como destino preferido dos filhos e netos de ex-escravos do Vale do Paraíba” (Costa 2015, 114).

Para além do aumento da oferta de serviços, regiões no entorno da cidade ampliaram suas produções, em parte direcionadas para o mercado de abastecimento da cidade e em parte para o mercado externo – como foi o caso dos laranjais em Nova Iguaçu, Campo Grande, Madureira e Cascadura – além das indústrias, com destaque para as fábricas de Bangu. (Costa 2015, 109)

Várias destas questões permeiam os periódicos que surgem nas primeiras décadas do século XX, principalmente aqueles que despontam no território da Baixada Fluminense, região marcada por estes movimentos migratórios que formaram sua atual população. O estabelecimento destes grupos por todo o território modifica a dinâmica social local e, a depender da localidade, se mobiliza e se estrutura de maneiras diferentes, de acordo com as múltiplas questões econômicas, sociais e políticas.

O Recôncavo da Guanabara é abundante em cidades e em aparatos históricos e esta é, sem dúvida, sua característica mais marcante, o que pode ao olhar mais desavisado, criar a falsa sensação de uniformidade, que atrapalharia em muito a compreensão das diferentes nuances tanto espaciais quanto sociais. A esse respeito, algumas categorias históricas precisaram se fazer presentes colaborando com o melhor entendimento do que vem a ser este lugar/território.

Apropriando-se do diálogo profícuo com a Geografia, a região da Grande Iguaçu[10] surge como ator na trama que aqui se desenrola e não como um mero cenário. É a dimensão humana que transforma o espaço em lugar. Ou seja, a forma como cada sujeito significa e (re)significa o constructo social que permeia sua vida. O lugar se constitui quando atribuímos sentido aos espaços, ou seja, reconhecemos sua legitimidade (Cunha 2008).

O lugar, então, é o espaço preenchido, não desordenadamente, mas a partir dos significados de quem o ocupa. (...) Os lugares são preenchidos por subjetividades. É nesse sentido que os espaços vão se constituindo como lugares “passando a ser dotados de valores e inserindo-se na geografia social de um grupo, que passa a percebê-los como sua base, sua expressão”. Quando nossa subjetividade atribui sentido aos lugares, eles se tornam parte de nós mesmos. (Cunha 2008, 185)

Assim sendo, ao fazer referência à cidade de Nova Iguaçu e à Baixada Fluminense enquanto “local, território ou região”, assume-se a perspectiva de que estes locais estão carregados de subjetividades e intencionalidades que seus habitantes/transeuntes/moradores lhes atribuem com bases em suas objetividades. Não há neutralidade na relação humana. Tudo parte de escolhas e negociações que, quando trançadas, transformam a Baixada em um território.

O território tem uma ocupação, e essa revela intencionalidades: a favor de que e contra que se posiciona. Nessa perspectiva, não há territórios neutros. A ocupação de um território se dá no confronto entre forças. (...) O território é, assim, um espaço mediado pelas representações construídas por um determinado grupo ao estabelecer seu poder frente a outro e que se apropria do espaço como forma de sua expressão e projeção. (Lopes 2007, 80, apud Cunha 2008, 185)

Ao se debruçar sobre as histórias de Nova Iguaçu, na tentativa de construir um dos possíveis entendimentos sobre este espaço, alguns alertas e cuidados são necessários em relação aos processos de formação deste território. O primeiro cuidado que precisa se fazer presente é a compreensão de que a Nova Iguaçu de hoje não é a mesma Iguaçu de seu auge territorial, ou seja, a cidade-região[11], a Grande Iguaçu, sofreu – e de certa maneira ainda sofre – diversos processos fragmentários que moldaram – e ainda moldam – seus limites. Isto significa dizer que o processo de formação deste espaço foi heterogêneo, imprimindo em cada local uma identidade própria.

 

 

 

Referências

Burke, Peter. 2017. Testemunha ocular: o uso de imagens como evidencia história. São Paulo: Unesp Editora.

Costa, Carlos Eduardo Coutinho da. 2015. «Migrações negras no pós-abolição do sudeste cafeeiro (1888-1940)». Topoi 16, n. 30: 101-126. e-ISSN 2237-101X. https://doi.org/10.1590/2237-101X016030004

Cunha, Maria Isabel da. 2008. «Os conceitos de espaço, lugar e território nos processos analíticos da formação dos docentes universitários». Educação Unisinos 12, n. 3: 182-86. ISSN 2177-6210. https://revistas.unisinos.br/index.php/educacao/article/view/5324/2570

Dias, Amalia. 2014. Entre laranjas e letras: processos de escolarização no distrito-sede de Nova Iguaçu (1916-1950). Rio de Janeiro: Editora Quartet. 

Godoy, Guilherme Tadeu de e Mirtes Cristina Marins de Oliveira. 2018. «Acervos de centro de pesquisa: a construção da narrativa histórica e os materiais iconográficos». Pós-liminar 1, n. 2: 89-102. ISSN 2595-9557. https://periodicos.puc-campinas.edu.br/pos-limiar/article/view/4414/2719

Gomes, Fulvio de Moraes. 2012. «As epistemologias do sul de Boaventura de Sousa Santos: por um resgate do sul global». Revista Páginas de Filosofia 4, n. 2: 39-54. ISSN 2175-7747. https://www.metodista.br/revistas/revistas-metodista/index.php/PF/article/view/3749/3357

Nascimento, Álvaro Pereiro do e Nielson Rosa Bezerra. 2019. De Iguassú à Baixada Fluminense: histórias de um território. Curitiba: Aprris.

Pesavento, Sandra Jatahy. 2007. «Cidades visíveis, cidades sensíveis, cidades imaginárias». Revista Brasileira de História 27, n. 53: 11-23. ISSN 0102-0188. https://doi.org/10.1590/S0102-01882007000100002

Pinto, Ana Flávia Magalhães. 2010. Imprensa negra no Brasil do século XIX. São Paulo: Selo Negro.

Santos, Boaventura de Sousa e Maria Paula Meneses, orgs. 2013. Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez.

 

 

 

 

Notas

[1] Milton Almeida dos Santos é considerado um dos intelectuais brasileiros mais importantes do século XX. Suas obras contribuíram para uma nova compreensão da geografia no Brasil a partir da década de 1970. Para saber mais, consultar: https://pt.wikipedia.org/wiki/Milton_Santos Acesso em: 05/05/2023.

[2] Maxambomba – Machine Bomb – designa um tipo de veículo de transporte de passageiros composto de uma pequena locomotiva sem cobertura que puxava dois ou três vagões que poderiam ser também de passageiros, muito utilizado na região durante o período em que os rios da região do Recôncavo serviam como hidrovias.

[3] A citricultura foi amplamente incentivada nas terras fluminenses. A colheita dos laranjais é precedida por sua florada, que exala um cheiro doce e agradável. Como grande parte do território era dedicada ao plantio deste gênero, o perfume se espalhava ao longe. É deste curioso fato que deriva o apelido carinhoso.

[4] Trata-se de uma brincadeira entre os moradores do município de Nova Iguaçu e de Duque de Caxias pelo “título” de cidade mais importante da Baixada Fluminense.

[5] Por ser de origem indígena, a grafia do nome Iguaçu mudou com as diferentes reformas ortográficas da Língua Portuguesa. A fim de facilitar a leitura, será utilizada o nome atual ao longo de toda a escrita.

[6] Obedecida a grafia original.

[7] Luiz Martins de Azeredo foi redator-secretário e, juntamente com seu irmão Avelino Martins de Azeredo, assumem a direção do Correio da Lavoura após o falecimento de Silvino de Azeredo. Foi membro fundador da Arcádia Iguassuana de Letras e jornalista-sócio da Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Para maiores informações, consultar: Alexandre, Maria Lucia Bezerra da Silva. 2021. «Nova Iguaçu em transe: jornalismo, política e visões de cidade (1945-1964)», tese de doutorado. Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro. https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/30693

[8] Os intelectuais são sujeitos múltiplos que produzem suas ambiências em diferentes estratos sociais, sejam eles a vida pública e ativa ou, até mesmo, a prática mais restrita, privada, com poucos envolvimentos diretos. Ainda sim, estes sujeitos mobilizavam ações que objetivavam mudanças em múltiplos aspectos da vida na urbe. Seguindo os preceitos estabelecidos por Gomes e Hansen (2016) assim como os vestígios deixados por Silvino de Azeredo em seu periódico, optou-se aqui por delimitar o jornalista como um intelectual negro ativo e atuante no cenário iguaçuano, seja por intermédio de sua folha ou de seus representantes. Para saber mais sobre os diversos enquadramentos do termo intelectual, consultar: Gomes e Hansen 2016.

[9] Capa do jornal Correio da Lavoura de 17 de junho de 1920 que comemora mais um aniversário do fundador do periódico.

[10] Grande Iguaçu faz referência ao território espacial total anterior as emancipações que, mais tarde, formarão a hoje Baixada Fluminense. Desta forma, faziam parte da Grande Iguaçu os atuais municípios de Nova Iguaçu, Mesquita, Nilópolis, Belford Roxo, São João de Meriti, Queimados, Japeri e Caxias.

[11] Sobre o termo ver: Silva, 2017.

 

 

 

Biodata

Diogo Piassá das Mercês: É nascido e criado na cidade de Nova Iguaçu, Baixada Fluminense, Rio de Janeiro. Mestrando em Educação no Programa de Pós-graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGE/FE/UFRJ). É pedagogo formado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e formado em História pela Rede Claretiano de Educação. Leciona História e História da Arte na rede privada de Nova Iguaçu.

 

 

 

Revista nuestrAmérica, ISSN 0719-3092, editada en la ciudad de Concepción, Chile. Ediciones nuestrAmérica. Correo contacto@revistanuestramerica.cl