Rev. nuestramérica, 2023, n.o 21, edição contínua, e7508813

Artigo depositado em Zenodo. DOI https://doi.org/10.5281/zenodo.7508813

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A constituição do professor formador

La constitución del profesor formador

The constitution of the trainer teacher

 

Waleska Rodrigues Costa

Mestra em Educação, Cultura e Comunicação. Doutoranda em Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professora Especialista das redes municipais de ensino de Duque de Caxias/RJ e Queimados/RJ.

http://lattes.cnpq.br/2847685624044493

 waleskacosta76@gmail.com

  


Resumo: Este artigo apresenta parte do processo de investigação da pesquisa 'De volta para casa: do professor eterno ao complexo docente', cujo objetivo ímpar foi analisar o desejo realizado de um grupo específico do magistério: o de retornar como docente da escola em que estudaram. O trabalho adotou o estudo de viés analítico sobre a pesquisa de Sobreira (2008), destacando principalmente o conceito de professor eterno avançando para uma outra perspectiva: o complexo docente. A questão central da pesquisa foi descobrir como os desejos/vontades/sonhos docentes interferem em suas escolhas pedagógicas e profissionais. Portanto, discorre através da análise das entrevistas realizadas com trinta docentes que realizaram esse sonho/desejo, procurando escavar em seus relatos os sentimentos em relação ao retorno, suas recordações da época estudantil e do Professor Admirado (Sobreira 2008).

Palavras-chave: formação docente; professor eterno; complexo docente; devir.

 

Resumen: Este artículo presenta parte del proceso de investigación de la pesquisa «De vuelta a casa: del eterno maestro al complejo docente', cuyo único objetivo fue analizar el deseo cumplido de un grupo específico de docentes: regresar como docente a la escuela donde ellos estudiaron. El trabajo adoptó el estudio del sesgo analítico de la investigación de Sobreira (2008), destacando principalmente el concepto de maestro eterno avanzando para otra perspectiva: la enseñanza compleja. La pregunta central de la investigación fue descubrir cómo los deseos/deseos/sueños de los docentes interfieren en sus elecciones pedagógicas y profesionales. Por lo tanto, se discute a través del análisis de las entrevistas realizadas a una treintena de profesores que cumplieron este sueño/deseo, tratando de excavar en sus relatos los sentimientos con relación al regreso, sus recuerdos de la época de estudiante y del Profesor Admirado (Sobreira 2008).

Palabras clave: formación docente; maestro eterno; complejo docente; devenir.

 

Abstract: This article presents part of the investigation process of the research 'Back home: from the eternal teacher to the teaching complex', whose unique objective was to analyze the fulfilled desire of a specific group of teachers: to return as a teacher at the school where they studied. The work adopted the study of analytical bias on the research of Sobreira (2008), highlighting mainly the concept of eternal teacher advancing to another perspective: the teaching complex. The central question of the research was to discover how the wishes/wishes/dreams of teachers interfere in their pedagogical and professional choices. Therefore, it discusses through the analysis of the interviews carried out with thirty professors who fulfilled this dream/desire, trying to excavate in their reports the feelings in relation to the return, their memories of the student days and of Professor Admirado (Sobreira, 2008).

Keywords: teacher training; eternal teacher; teaching complex; training; becoming.

  

 


Recepção: 8 de outubro de 2022

Aceitação: 4 de janeiro de 2023

Publicação: 6 de janeiro de 2023


 

 

Introdução

A certeza de que o professor e a professora continuam ensinando após o fim da relação educativa com seus estudantes é um dos grandes vieses da pesquisa de Sobreira (2008), onde que fica delimitado o conceito de professor eterno, de professor admirado, entre outros. Contudo, numa perspectiva de ampliar esse horizonte, açambarcando outros prismas para essa dinâmica que é continuar ensinando findo a relação docente/discente, num aspecto bem específico: aquele aluno ou aluna que se torna docente.

Não obstante, o desejo de investigar a formação docente numa escola normal aconteceu a partir da vivência pessoal da autora como aluna neste curso e, posteriormente, no Curso de Pedagogia, ao perceber a diferença nas dinâmicas de condução dos Cursos, enfim, na diferença basilar entre os professores-formadores[1] destes cursos. É necessário destacar que essa pesquisa investiga o período que compreende os doze primeiros anos de implementação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9.394/96, no que abarca a titulação dos professores a partir de então, mudanças em relação a admissão aos quadros docente e a situação do curso normal de nível médio e seu “possível” fim anunciado, que não se concretizou: quais as repercussões deste fim nos professores formadores destes cursos e nos egressos destes cursos?

A constatação dessas diferenças ensejou vários questionamentos a respeito das formações por quais passei, o mais instigante foi: por que desejo ser professora da escola que estudei?  O interessante é que ao longo da trajetória profissional, ora como docente, ora como aluna, notei que não estava sozinha nesse desejo, pois muitos colegas compartilhavam deste sonho. Neste sentido esta pesquisa tornar-se-á quase autobiográfica, pois mapeará a realização de uma parcela de professores e professoras cujo desejo é trabalhar, ou melhor, 'dar aulas' na escola em que foram alunos e alunas.

Neste sentido, a pesquisa irá analisar a questão do Curso Normal como lugar de expressão de singularidades[2] necessárias à formação de seus futuros professores e/ou enquanto lócus privilegiado do controle estatal da educação de professores, de disseminação de semicultura e impressão de singularidades. Na ótica da bildung (Adorno 2009), o argumento é que a impossibilidade de se prever os resultados da educação constitui-se o acontecimento para o Devir ativo. O Devir-Formação não constitui sujeitos ou perfis identitários, mas a diversidade de singularidade.

No trabalho, propõe-se como caminho a aproximação de duas escolas teóricas distintas: a Formação, em Adorno; o Devir, em Deleuze e Guattari. O pressuposto delineia o conceito de Formação enquanto Devir ativo de singularidades, processo irregular, não-linear e laborativo. Não é a formação de sujeitos como objetivo, meta ou finalidade, pois isso é o que se convenciona nomear por educação. A Formação está para além das metas de educação, porque realiza-se na imprevisibilidade, neste sentido tornar-se devir intenso e inconstante.  Evidentemente, não se pode olvidar a influência freudiana em Adorno e, também, da Escola de Frankfurt, que vez por outra estão presentes nos percursos teóricos deste trabalho, mesmo porque eles fazem parte importante desta trajetória acadêmica.[3]

É necessário esclarecer que nesta pesquisa distingue-se a Formação na perspectiva adorniana e a formação escolar de nosso foco que preferiu-se destacar enquanto educação de professores (Sobreira 1997). Neste sentido, tudo o que a tradição da formação docente delimitou sistematicamente enquanto formação, para este trabalho é diametralmente diferente do que Adorno compreende por Formação. Certamente, corresponde-se mais com a definição de semi-formação. A educação de professores como instância de semi-formação é o que exala dos currículos pensados para os cursos de formação de professores.

Afirma-se que algumas categorias conceituais são determinantes na condução deste trabalho, como por exemplo: professor eterno, professor admirado, aluno eterno, professor ideal, professor real, magistério e suas mortes, perenização do magistério, etc.

Considerou-se de extrema importância a determinação do contexto histórico pelo qual tem passado o Curso Normal desde 1996, quando do decreto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9394/96 de 20 de dezembro de 1996, onde estabeleceu-se a dubiedade quanto à formação dos professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental.

O autor realiza uma analogia, colocando o curso em tela na situação de Santiago Nazar em “Crônica de uma morte anunciada”, aguardando o desfecho de sua extinção desde então.  Neste sentido, este trabalho procura descrever o contexto em que esses professores têm vivenciado nos últimos, incluindo, as deliberações tomadas pelos sucessivos governos estaduais, do Rio de Janeiro, no intuito de colocar o Curso Normal em situação de distanásia (Sobreira 2008).

 

A morte e a morte do Curso Normal: de Santiago Nazar a Quincas Berro D'água

Na pesquisa de Sobreira (2008) foi utilizada a metáfora presente na história de Santiago Nazar da “Crônica de uma morte anunciada”, de Gabriel Garcia Marquez. Neste trabalho seria adequado a utilização de outra metáfora, desta vez, com a obra de Jorge Amado: “A morte e a morte de Quincas Berro D'água”, pois, a LDB 9394/96 em seu decreto em 31 de dezembro de 1996 anuncia o fim paulatino do Curso Normal, desde então, algumas mortes simbólicas foram sendo veladas pelos seus professores formadores[4]. O efeito dessas mortes nos afetos desses professores e professoras pode ser mais devastador do que o decreto definitivo.

No Rio de Janeiro até o ano de 2001, os professores-formadores das Escolas Normais conviveram com a incerteza do fim preconizado pela lei. No entanto, o governo do Estado caminhou na contramão da legislação e instituiu mais um ano na grade curricular do Curso Normal, então, esta modalidade que se encontrava quase inerte acorda do coma e ganha uma sobrevida. Desde então inúmeros boatos a respeito do encerramento do Curso vem sendo debatidos por seus professores e professoras, neste sentido, essa inconstância caracteriza as mortes simbólicas vividas por estes docentes. Deixando professores formadores, professorandos, professorandas e toda a comunidade escolar envolvida com o Curso Normal, em estado de distanásia (Sobreira 2008).

Na verdade, essa indefinição contínua reside num importante e fundamental descuido dos nossos legisladores: promulgaram uma lei que, apesar de ter sido debatida durante anos, não buscou o apoio decisivo das Universidades no que se refere a regulamentação e (re)construção de uma alternativa viável para a formação de docentes para os anos iniciais do Ensino Fundamental, que perpassasse necessariamente pelo viés do Ensino Superior. O que se viu depois de 1996 foi uma procura generalizada dos profissionais do magistério por cursos de licenciaturas, quaisquer que fosse.

Desde ficaram claros a função e o lugar dos Institutos Superiores de Educação nesse campo, os setores organizados da universidade pública opuseram forte resistência a esse projeto; e, embora seu resultado ainda careça de avaliações, aparentemente essa morte foi evitada.

Assim, a grande pergunta que continuava sem resposta clara, referia-se ao destino desse imenso batalhão de professores públicos que ganhavam sua vida nos Cursos Normais em nível médio. O retorno de Darcy Ribeiro à idéia da Escola Nova (formação em nível superior de todos os profissionais de educação), sem qualquer base de apoio nas universidades e nas instâncias que abordavam a questão da formação de docentes, foi recebido como uma interferência alienígena e autoritária. (Sobreira 2008, 76-7)

Por conseguinte, estabeleceu-se a discórdia entre dois grupos interessados pela questão da formação docente, o primeiro dos professores-formadores do Curso Normal, interessados na continuidade do Curso e o segundo grupo dos professores-formadores do Ensino Superior, preocupados com a possibilidade dos Institutos de Educação se tornarem Centros Universitários, transformando consequentemente, por decreto, uma legião de professores formadores, sem qualificação (stricto-sensu), em professores universitários.

Então, nosso Santiago Nazar transforma-se, nesta pesquisa, em Quincas Berro D'água, que na verdade são dois: um da família, outro dos amigos. O primeiro Sr. Joaquim, de família, sujeito recatado e trabalhador. O segundo, vulgo Quincas, “Rei dos vagabundos da Bahia”, “cachaceiro” e jogador. Fora, na ocasião de sua morte, disputado por sua família que chorava e lamuriava a morte do homem de bem, mas, que estava aliviada com o fim do outro, o Quincas. Entretanto, sua outra “família”, a da esbórnia, também o desejava, pois, queria dar um velório a sua altura, uma comemoração digna dos tempos arruaça e para quem, até então, sua outra família não incomodava, podia até fazer parte da celebração se assim quisessem. O fato é que Quincas inexoravelmente morre ou, mais precisamente, se joga ao mar, desaparecendo em seguida.

A despeito de todo debate sobre os direitos à competência da diplomação do magistério da Educação Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental, um fato é certo: o Curso Normal tende a acabar, seja por pressão legislativa, seja porque cada vez mais professores e professoras se preocupam com sua própria educação, visto que a maioria dos nossos entrevistados e entrevistadas possuem uma ou mais pós-graduações lato-senso, ou ainda, mais de uma graduação. Neste sentido, seria um anseio natural do próprio magistério a exigência de um curso de nível superior específico para a licenciatura nessas modalidades. Assim como o próprio Quincas decidiu seu destino, o Curso Normal paulatinamente desejaria seu fim, tornando-se ele mesmo obsoleto. Sobretudo, se Gabriel Garcia Marques coloca em dúvida se Santiago iria mesmo morrer, Jorge Amado convence que o morto não tinha morrido a sua morte, nestes termos, acredita-se na urgência em devolver ao Curso Normal, aos seus artífices, a constituição de sua morte.

Então, a decisão seria sobre como os professores-formadores trabalharão dentro de si mesmos essa morte. Contudo, nesta pesquisa o objeto também trata do desejo de perenizar-se dos professores-formadores, que são ex-alunos da escola em que trabalham. Nestes termos, como essa “morte” afeta o desejo de eternizar-se nesse grupo singular de professores. Durante a pesquisa constatou-se a divisão dos entrevistados e entrevistadas em dois grupos, cada qual com uma característica identificativa peculiar:

A) O grupo formado pelos vinte e cinco docentes antigos, em sua maioria concursados para docente II[5], que quando foram trabalhar na escola de formação, mesmo que em outras modalidades, não se aventava a possibilidade do fim do Curso Normal;

B) O pequeno grupo formado por cinco docentes, pelas três professoras recém concursadas que ao entrar já sabiam que esse fim era possível, uma professora, antiga no Estado, que conseguiu no início de 2009 trazer seis horas aulas, metade de uma de suas matrículas, para trabalhar na sua escola de formação e, por último, um professor que trabalha há três anos em sua escola de formação, após trinta anos de magistério no Estado, incluindo funções administrativas.

No decorrer das entrevistas procurou-se indagar sobre os sentimentos a respeito do possível fim do Curso Normal, em seguida questionava-se sobre a real necessidade da formação de Nível Superior para o docente dos anos iniciais do Ensino fundamental. Nos dois grupos surgiram opiniões relacionadas a importância de cada nível de ensino para a formação docente, sempre com ênfase na importância do Ensino Médio. Contudo, duas opiniões, uma em cada grupo, foram determinantes para a compreensão de como o reconhecimento das dificuldades, a reflexão sobre os empecilhos da formação no Ensino Médio, em outros termos, 'a navalha na própria carne', pode reelaborar o mal estar oriundo da insatisfação do desejo de perenizar-se deste professor formador.

Que ele vai ter nível superior, vai poder se preparar melhor, porque você não sai daqui preparado, só com uma faculdade mesmo e é uma valorização, não é? É um começo de uma valorização do profissional da educação. (Elizabete, B)

Observa-se que no relato é contundente a declaração da professora de que o Curso Normal não prepara para o trabalho docente. Nesta perspectiva, pressupõe-se que esse reconhecimento inicial é o que fomenta a reelaboração na crise do desejo de eternizar-se no professor formador e que, possivelmente, encaminhe a formação de nível médio para o seu fim. Não é conformar-se com o fim e com a impossibilidade de concretização do desejo, mas a reelaboração do desejo através das crises que os fins no magistério provocam. Decerto, que ela já sabia do fim quando se tornou professora formadora e este fato foi determinante em sua relação com o desejo, portanto supõe-se que esse fim para ela será menos dolorido do que para muitos. Não obstante, a segunda opinião é ainda mais incisiva:

Mas nos moldes que a gente tem hoje, a gente tá formando quem? Tá brincando, a gente tá brincando de ensinar, a gente tá dizendo pra essas garotas que elas vão chegar numa escola e elas vão encontrar um aluno que não é o aluno que tá sendo apresentado para elas aqui dentro. (Vagner Alves, B)

Neste outro relato a questão coloca-se de forma mais séria, pois, a afirmação dá conta de que o Curso Normal além de não preparar, engana seus concluintes, pois não educa, mas, certamente, “brinca” de formar.  Como então, desejar eternizar-se nesse contexto? Obviamente, esse professor não tem mais relações de afeto significativas com a Escola e com o Curso Normal, porque seu desejo de perenização encontra-se situado no Curso de Nível Superior no qual trabalha. Pois foi, de todos os entrevistados e entrevistadas, o único que afirmou trabalhar com o ensino superior. Em sua entrevista demonstrou ter uma relação de afeto bem resolvida com a sua escola de formação e o Curso Normal, ao afirmar que este não atende as expectativas de formação, demonstra uma opinião forte e diferente dos outros entrevistados e entrevistadas, declarando enfaticamente:

Eu acho que tem que se investir é que formação, quanto maior for a formação do sujeito, melhor ele vai ser. E nós somos um dos poucos países que ainda, não é? Acham que a profissão... um dos poucos não, se a gente comparar com país desenvolvido, nós que estamos em desenvolvimento a não sei quantos anos não é? é… a gente ainda desprestigia o trabalho do professor, diz que esse professor para atuar nas séries iniciais precisa ter uma formação só de nível médio. (Vagner Alves, B)

Essa postura lembra muito a celebração da morte de Quincas pelos companheiros de sua “outra” família que, na verdade, era a comemoração de uma outra vida vivida, vida de alegria, de liberdade e, também, de equívocos. O Sr. Joaquim preferiu viver uma outra história deixando a lida medíocre para trás. A vida preferida de Quincas era a da vadiagem e bebedeira. Ele já havia morrido para sua primeira família quando escolheu a esbórnia. Outras possibilidades e singularidades haviam contaminado seu desejo e resolveu embriagar-se em outras paragens de vida. Enquanto uns velam o fim e entram em conflito com seus desejos, preferindo a mediocridade, outros escolhem celebrar a vida e desejam, apenas desejam e desejam. Quincas não eram dois, são dois vários componentes de subjetivação (Guattari 2006) em prol de seu Devir.

Neste ínterim, chegou-se à seguinte perspectiva: ter consciência da possibilidade do fim ou vivenciar outros ambientes em que o desejo de perenização possa ser (re)elaborado torna-se fundamental para que uma crise não se estabeleça ou seja mais bem vivenciada. No mínimo, considerar-se-á que os encerramentos das relações pedagógicas, as mortes simbólicas vivenciadas historicamente pelo magistério, deveriam ser elemento curricular relevante juntamente com a elaboração dos afetos. Todo um complexo docente menos coercitivo depende disso. Deveria se aventar a possibilidade da existência de um supereu para o complexo docente, constituído a partir das nossas admirações docentes e, também, das “imagens paternas positivas introjetadas por cada um de nós” (Sobreira 2008, 187).

A partir do exposto é necessário conhecer e escavar mais do desejo de eternizar-se nas falas dos entrevistados e entrevistadas. Neste sentido, solicitou-se que os docentes relatassem suas histórias como estudantes, suas trajetórias de retorno à escola admirada em que se formaram, já como integrantes do corpo profissional do magistério. A realização pragmática do desejo empírico. Este será o tema da próxima seção.

 

O professor formador e a supressão do afeto: os fins e os inícios das relações pedagógicas com a escola admirada

Com o objetivo de entender como o afeto em relação à escola admirada é determinante para as escolhas pedagógicas do futuro docente, procurou-se escavar nos entrevistados e entrevistadas suas histórias de retorno à escola admirada. Evidentemente, a pesquisa esperava relatos carregados de emoção em relação as histórias de retorno dessas professoras e professores, entretanto, alguns determinados relatos causaram enorme surpresa, devido à via crucis que estes docentes enfrentaram para conseguirem trabalhar na escola em que estudaram, em outros as lágrimas foram inevitáveis. Uma das perguntas desencadeadoras desse processo era: fale da emoção de retornar para a escola na qual você foi estudante. Para a maioria a saudade, a gratidão e o orgulho de conseguir retornar são inevitáveis, alguns choraram durante a entrevista:

Emoção no primeiro dia… Chorei, chorei. Foi como se eu dissesse assim: Eu venci. porque naquela época... Aí... Eu vou chorar [e realmente chora]. Naquela época era muito difícil, muito difícil, muito, muito, muito difícil. Eu falei para os meus alunos que a comida que eu como eu comprei com meu salário, eu tenho orgulho de dizer que eu sou professora. daqui. Tenho orgulho. (Patrícia, B)

Eu me emocionei muito quando eu vim trabalhar aqui e encontrei professores... [pausa emotiva] Que até hoje tem professores que foram meus professores, não é? E aí tem uma até que é de história, Denise, que falou assim, ela foi minha professora também eu adoro a Denise e ela fala que agora meus filhos são os netos dela. A gente conversou, não é? Eu fui aluna dela, a gente começou a fazer muita amizade. (Viviane, B)

Saudade, primeira coisa que bate saudade, não é? Logo a seguir, não é? Conhecer os meus colegas que foram meus professores, a expectativa é enorme, não é? Quando eu cheguei, não é? Para saber quem estava aqui, não é? Quem foi meu professor, quem era … não foi meu professor, mas era professor na época, não é? falar sobre isso com eles. (Estela Torres, B)

Senti muito orgulho, sinceramente muito orgulho, porque você estudar, porque você faz um concurso e de repente volta pra aquele lugar ali, que "você" estudou. imagina a sua reação, seu pai e sua mãe. E também um... não é insegurança, mas medo do novo. (Alva, A)

É uma emoção, todo dia que eu chego aqui é uma emoção, porque eu me lembro dos dias que eu sentei aí nessas carteiras, eu me lembro dos dias que sentei... tanto que eu não quero mudar de escola, eu quero me aposentar aqui, entendeu. Eu, eu sou muito agradecida a essas paredes. Aos professores que foram meus diretores (...). (Maria, A)

Muito legal. Então assim, eu falo para os meus alunos que assim: hoje eu sou realizada, quero outras coisas, já almejo outras coisas e tal, mas aquilo que eu colhi, que eu plantei, não é? Eu já colhi, por que eu já me sinto realizada na área, no que eu realmente queria, que era ser professora de educação física aqui do Instituto de Educação para o Normal. (Miriam Silva, A)

Esse orgulho, essa gratidão e essa emoção são indícios de outros sentimentos que, nos relatos dos entrevistados e entrevistadas, parecem ser decisivos para a afetação das práticas pedagógicas, sendo dois determinantes nessa pesquisa:

  1. O desejo de colocar-se como exemplo;
  2. O desejo de retribuição da educação recebida.

O primeiro sentimento, como já relatado em seções anteriores deste trabalho, não é muito óbvio em alguns professores e professoras que resistem em admitir que se colocam como modelo, pois, inevitavelmente caracterizaria a reprodução de ações pedagógicas ou a superioridade cultural do docente em relação aos seus alunos e alunas, em outras palavras, a impressão coisificada de singularidades alheias nos professorandos e professorandas.  Assim como o desejo que apareceu nos relatos, de forma secundária, também não é evidente: a vontade de retribuir a educação recebida, apresentando-se como uma outra faceta do desejo de eternizar-se no magistério. Não obstante, esses dois sentimentos sugerem uma característica presente nos docentes: a supervalorização da própria formação, fato ressaltado pela necessidade de compartilhá-la ou de contar a própria história.

(...)Poder contribuir com a formação de outros jovens, com o mesmo empenho que fizeram comigo, não é? Eu acho que era uma retribuição, eu via muitas vezes que eu estava consolidando, não é? Algo que tinha, não é? Que eu tenho tido como direito, e era meu dever também contribuir na como... na ... como a profissão, não é? E agora depois de formada eu estava devolvendo a mesma formação que eu tive, não é? (Margot, B).

- Ah! Eu conheço uma ex-aluna sua que fala isso, isso, isso de você. E você brigava assim, assim, assim, igualzinho que você faz hoje professora, não é?! E ela diz que é pra eu prestar atenção nas coisas que você fala, e que quando você briga, que é pra eu ouvir muito o que você briga com a gente, não é? porque isso lá na frente vai ser uma coisa assim muito boa pra nossa vivência. Eu acho que é válido, é muito válido a gente estar passando a nossa experiência. (Estela Torres, B)

É de estímulo, não é? Entendeu... por que eu acho que estudar, não é? Não ocupa espaço, ninguém rouba de você, não é? Então, quer dizer... É uma coisa que vai ficar para você por toda vida, então eu tento contagiá-los, não é? Dessa forma, retribuir a educação que eu tive, devolver, não é? (Núbia, A)

Na maioria das histórias algumas palavras marcam o acontecimento desse desejo, a realização desse afeto de retorno, dentre as quais destaco as que mais se repetem: “segunda casa”, “sonho de voltar” e “desejo”. Impressionou bastante o fato de que essas determinadas estavam presentes na maioria das entrevistas. A palavra “sonho” muitas vezes foi utilizada como sinônimo de “desejo”.

O objetivo era trabalhar aqui. Aquele sonho, assim, foi realizado, não é? E, eu dou muito valor, porque eu gosto do que eu faço, gosto dos alunos sabe, é uma escola que eu defendo sempre, eu estou sempre procurando, assim, dar o melhor mesmo, mas assim, com amor por que eu gosto daqui, gosto das colegas, tudo de uma maneira geral é muito prazeroso. (Cátia Alves, A)

Eu era louca pra vir pra cá. Aí fiquei fora cinco anos, aí meu sonho era dar aulas aqui, se eu não viesse pra cá eu morria. E estou aqui há dezenove anos. (Alice Moura, A)

O Instituto sempre foi o meu foco, onde eu terminei o Normal. É aonde eu queria voltar pra trabalhar. Tanto que eu trabalhava numa escola paralela a essa, que é o Herdy e eu pedi dispensa de lá pra poder vir pra cá. E foi uma luta. Mas eu queria justamente porque eu fiz o meu Normal aqui, era meu sonho trabalhar aqui. (…) Era o meu sonho. Tanto que pra vir pra cá foi muito difícil, porque não tinha motivo nenhum pra eu sair do Herdy, sempre tive um relacionamento muito legal com a Direção do Herdy, com a própria escola, mas o meu sonho era trabalhar aqui. Quando pintou a vaga... (Ivete, A)

Era um desejo, eu sempre quis, eu não contava mais com a possibilidade de vir pra cá, de cair aqui, mas era um desejo sim estar aqui, não é? Mesmo depois de 30 anos. (Rui Oliveira, B)

Tinha vontade. O meu desejo de ser professora se concretizou quando eu estava estudando aqui (…) Quando eu comecei a observar os professores(...) Aí começou a brotar esse desejo mesmo, e aí quando eu terminei tudo, eu terminei realizada, procurando estudar e voltar pra escola depois de formada. (Glória Maria, B)

Olha, é... Sempre é um sonho, não é? A gente sempre pensa nas escolas por onde nós passamos, não é? Isso é muito bom. Eu já levei meus alunos de Estágio na, na outra escola que eu estudei, fiz o meu antigo primário, Conde de Agrolongo, eu estudei na Conde de Agrolongo, eu trabalho lá. (Estela Torres, B)

Para muitos desses professores e professoras desejos e sonhos se confundem, contudo, a realização desses sonhos/desejos se encontra numa perspectiva quase unanime nos seus relatos: a escola de formação como a segunda casa. Esse voltar para casa provoca ou sugere, no mínimo, uma impressão para a pesquisa: 'voltar para casa' está intrínseco à característica peculiar de que a profissão do magistério é a única em que o indivíduo ao terminar curso, escolhendo trabalhar na docência, não mudará de ambiente. 

Os relatos dos entrevistados e entrevistadas deixam a percepção de que esse eterno 'sentir-se em casa' é para a profissão docente um afeto básico, stricto sensu mesmo da palavra, ou seja, essa característica é fundamental para a fomentação de todos os símbolos que os atores educacionais têm representado historicamente para a comunidade escolar, por exemplo, a professora designada como tia pelas crianças, a professora vista como 'segunda mãe'. A própria visão instituinte do Curso Normal como um majoritariamente feminino, com um currículo voltado também para a formação de uma 'boa dona de casa', nestes termos, a antiga disciplina 'Educação para o lar' é um exemplo de que a singularização da formação docente do ensino médio constituiu-se fundamentada na função docente como a 'família' pedagógica da criança, a escola como a extensão do lar.

Nos relatos, a afirmação de que essa escola, em que estudaram e atualmente trabalham, é a segunda casa foi o mais forte ponto de congruência entre os entrevistados e entrevistadas em ambas as escolas. Contudo, com a observação que na escola normal em que os entrevistados e entrevistadas viveram mais tempo como alunos e alunas, por oferecer todas as etapas da Educação Básica, tem uma ocorrência mais incisiva e clara nos relatos. Tanto nas conversas gravadas, quanto nos diálogos informais não gravados fica evidente a emoção desses docentes, sugerindo que a quantidade de tempo como estudante dessa escola forja, inexoravelmente, o sentimento de pertencimento à esta instituição, esta sempre sendo a sua casa. Perceba a confluência das falas:

Eu acho que vir para o Instituto pra mim é um bálsamo, ainda mais que eu estudei aqui e adoro essa casa. EU AMO ESSA CASA [caixa alta da pesquisa]. (Maria, A)

É minha segunda casa. Eu também trabalho na Prefeitura e aqui eu tenho três dias de trabalho, mas me sinto muito melhor aqui, tanto é que segunda-feira, por exemplo, eu só pego dez e meia, mas quando dá oito e meia eu já estou aqui, para conversar com os colegas, por que eu gosto daqui, do ambiente. (Rosa Couto, A)

Eu nunca estudei em outra escola. Tenho amor, paixão...  Então eu acho que o Instituto não é a minha segunda casa, é a minha casa também. Por que eu não consigo me imaginar não estando aqui. (Alice Moura, A)

É a minha segunda casa, é minha segunda família, é uma relação de amor muito intensa. (Ivete, A)

É a segunda casa. Conheço tudo, vi as transformações todas, não é? Para melhor e pra pior, não é? Pra melhor e pra pior. Vi crescer, vi coisas assim que se perderam, que eu não vou... como na vida da gente, de repente não tem mais aquilo, não é? Que tinha, mesmo em termos de espaço físico, de construção mesmo como as vezes a gente vê deteriorar na casa da gente, coisas que a gente achava importante, é marcante. Assim, dói, às vezes. E, também, faz a gente se orgulhar de ver outras coisas que cresceram, que tomaram vulto, não é? Veio uma outra proposta, mas é bem a cara, por que nos tempos atuais a proposta da educação é outra, não é? E é legal isso, a gente ver isso, essas mudanças. E, assim, me fazer sentindo parte de tudo, o tempo inteiro eu “tava” aqui participando disso. (Clara Borges, A)

Essa escola pra mim era a segunda casa, eu sei que é clichê falar isso, mas aconteceu, então eu tenho que falar a verdade. É a minha segunda casa. Então eu tenho que te dizer, o que que acontece, quando eu passei no concurso público, minha felicidade foi ao chegar lá e na hora de escolher nas escolas eu vejo HL. (Glória Maria, B)

(...) Porque o HL era minha casa, era o meu sonho, não é? Tudo que eu decidi ser na vida eu decidi aqui no HL. Então, voltar aqui para o HL foi uma grande conquista. (Lizandra, B)

Para entender esse sonho de voltar, fisicamente, para casa e como esta realização pode afetar as relações pedagógicas, as posturas e as escolhas desses professores e professoras, esta pesquisa buscou na perspectiva freudiana a ligação sobre sonhos e sintomas e, consequentemente, a realização do sonho/desejo enquanto uma forma de pacificar desejos. É necessário ressaltar a suspeita de que essa insistência no retorno em alguns docentes indica que esse retorno físico é apenas mais um momento do desejo e não o ápice da realização, pois esse ex-estudante nunca saiu, em seu íntimo   de sua escola. A relação com sua escola eterna forjaria, inclusive, seus outros ambientes de trabalho, mesmo se essa volta não fosse concretizada.

Obviamente, Freud fala de um tipo específico de sonho, aquele que é a voz do inconsciente. Contudo, o sonhar “acordado” dos entrevistados e entrevistadas tem uma ligação muito forte com a pacificação do desejo, que é o próprio retorno desses professores e professoras a sua escola de formação. Esse sonhar acordado é a expressão óbvia dessa vontade de retorno. Muitos relatos confirmam ter esse sonho seu início enquanto eram estudantes, sugerindo que essa instituição continuou 'morando' neles, em seus sentimentos de forma contundente, mesmo sem estarem fisicamente ali, forjando-lhes um complexo docente amalgamado pela busca de retorno.

O campo de estudo de Freud é território de desejo. Para o autor, o desejo como se caracteriza de duas formas, a saber:  'wunsch' (voto, aspiração, desejo) e também e 'lust'. (prazer, vontade). O wunsch é o desejo recalcado inconsciente que não está claro e não pode ser confundido com necessidade, lust. O wunsch é enigmático e se realiza nos sonhos e nas fantasias.

A vontade de retornar para escola de formação, como professor ou professora, se caracterizaria mais como a segunda definição. E por um motivo, há algo na relação pretérita com seus professores admirados que causa prazer, representado pela vontade de viver de novo. O afetar positivo do professor admirado, se transforma em uma vontade que é, em si mesmo, o reflexo do desejo de perenização do magistério.

Aqui chega o momento, nesta pesquisa, em que a psicanálise precisa caminhar por outros territórios. Neste sentido, a filosofia de Deleuze que é reconhecida como a filosofia do desejo, também como Devir, como vontade de potência, coloca-se como fundamental para a caracterização de outras perspectivas desejantes. Obviamente, não um desejo prospectivo, que para Freud é constituído de uma saudade pretérita da relação aluno e professor admirado. Mas um Devir-desejo, não descendente de um passado porque é primeiro, não ordinal, mas múltiplo e visceral.

A crítica de Deleuze à psicanálise constitui-se como um outro olhar, com foco esquizofrênico, outra análise, a esquizo-análise experienciando as máquinas-desejantes. A partir desta nova perspectiva, para falar de desejo a perspectiva freudiana é insuficiente, neste trabalho é necessário o encontro com outras análises, de experiências analíticas inéditas, de um Devir-desejo permanentemente constituinte, com vistas ao processo e não para os resultados.

As relações pedagógicas estão impregnadas de uma afetuosidade que, posteriormente, fomentarão os desejos docentes. Talvez não seja equivocado afirmar que é na discência que se inicia a a futura docência. Portanto, a formação de professores deveria processar-se no sentido de conhecer esses desejos para que estes não se reproduzam entre professor admirado e estudantes (futuros professores e professoras), contudo, para que se constituam em Devires-desejantes, portadores do ineditismo pedagógico necessário a construção de novas formas de educação.

Certamente, as experiências educacionais ligadas ao tecnicismo, ao comportamentalismo que sempre induziram a repetição sucessiva de atividades, impregnaram também a formação docente, talvez essa tendência, essa vontade de repetição/reprodução esteja permeada pela congruência dessas correntes teóricas na psique, ou melhor, no supereu educacional de professores e professoras. É nesta perspectiva que o foco do desejo não deve ser somente o passado, mas a reelaboração do passado não como mera repetição, mas como auto-conhecimento, como componente de subjetivação (Guattari 2006). Claro que o Devir é primeiro, seria uma contradição a necessidade de um passado para construí-lo. Não se constrói Devires-desejos a partir de outros desejos, mas através das alianças desejantes. Não se produz desejos por descendência ou filiação. Devir-desejo não se repete, nem se reproduz, contudo se alia.

O passado existe, o Desejo do professor-admirado e seu complexo docente existem, as relações pedagógicas individuais e coletivas existem e a influência de tudo isso nas escolhas do futuro docente são inevitáveis. Contudo, não é preciso daí surgir uma descendência pedagógica. Acredita-se na importância da metáfora vespa-orquídea de Deleuze e Guattari no encaminhamento de um inédito e redundante, Devir-pedagógico, modus operandi de aliança entre o docente e seu o passado discente, o seu complexo docente e suas relações pedagógicas individuais e coletivas.

Assim como Deleuze, esta pesquisa postula e acredita que nunca há desejos o bastante (2009). Nestes termos, deseja-se aqui embrenhar-se em muitos desejos em Devir como o de Quincas Berro D'água, Devir-aliança, pois essa era a relação com seus companheiros de vida baldia. O Sr. Joaquim, vida correta, verdadeiro superego, propulsor de filiação por descendência, fora destituído de seus desejos, era um morto em vida, foi considerado morto pela família quando aliou-se a sua tropa e decidiu viver todos os seus desejos. O Devir-desejo não acaba com a realização, pois é inerente ao seu realizar-se, também não recomeça, mas busca alianças, ele não se renova, nem se envolve em recomeços, pois, processa-se como inédito e primeiro.

A aposentadoria em algumas das entrevistadas, como o fim último da relação pedagógica com a escola admirada, é o momento em que o desejo de eternizar-se ou seu mal-estar (Sobreira, 2008), apresenta-se com mais intensidade, através de sentimentos como medo de ser esquecida, falta de reconhecimento dos serviços prestados ou saudades das relações afetivas com os colegas de trabalho e com a escola admirada. Ao contrário do sentimento de indiferença com o fim do Curso Normal, observado nas entrevistadas próximas da aposentaria, essas mesmas professoras demonstraram muita emoção ao falarem sobre o fim da relação com a escola admirada.

Eu... Por exemplo, eu me aposentei numa matrícula esse ano e aí eu me questiono, agora eu vou me aposentar na outra e eu fico pensando nisso, se eu vou me perder na lembrança dos que vão ficar, como eu vejo outros que se perderam. Às vezes dá um certo medinho assim: Ai! Será que eu? Por que graças a Deus eu sou bem quista aqui. As pessoas gostam de mim, muito. E, às vezes eu penso nisso: - Ai! E se eu for embora, e se eu me aposentar e todo mundo me esquecer dali, não é? Tanto tempo, uma vida aqui dentro, não é? Por que também vai se renovando, aí quem chega, se eu não tiver aqui, não vai me conhecer mais. É... tem muitos que chegaram agora, que passaram a me conhecer agora. (Clara Borges, A)

Tem emoção, exemplo, é o que falo, ser professora pra mim foi muito bom. E eu acho que eu não quero me aposentar, por que eu não quero ficar na inércia, você entendeu? Tenho cinquenta e nove anos, vou fazer sessenta, mas eu tenho medo de ficar na inércia. Eu acho que vir para o Instituto pra mim é um bálsamo. (Maria, A)

Quando eu começo a ver as fotos das turmas antigas, dos professores antigos também, dá uma emoção muito grande, saber que a gente pode contribuir com alguma coisa para a memória do Instituto não acabar. Eu vou me aposentar agora, esse ano, no meio do ano eu me aposento, eu já completei 25 anos de Estado nessa matrícula, mas eu vou ficar como voluntária no Centro Histórico. (Maísa, A)

A aposentadoria está chegando, batendo na porta e com muita tristeza, daqui a pouco eu vou embora. E esse 'daqui a pouco' vai demorar muito, por que eu preciso modificar muito a situação que a classe se encontra, tá? Eu fiz reivindicação, já escrevi para o governador, recebi meu notebook, mas eu mandei um comunicado dizendo que eu gostaria de receber esse notebook como se fosse uma premiação, um reconhecimento pelos trabalhos prestados à educação e isso não foi dito até hoje. Eu espero ouvir algum dia. (Sílvia Lourdes, A)

Eu já to com a aposentadoria pronta, já saiu o ato, só falta publicar, enquanto não se publica, não sai no Diário Oficial (…) Bate uma tristeza, uma saudade, não é? (Margot, B)

Eu já tenho 32 anos de trabalho no Estado, já posso me aposentar, mas como eu tenho uma licença-prêmio sumida, por isso ainda não pude dar entrada, mas mesmo assim tenho dúvidas, é definitivo, medo de ir embora. (Linda Silva, B)

Fica claro que a supressão do afeto positivo pela instituição não existe, mesmo em situação de aposentadoria, final decisivo da relação física com a escola admirada. Algumas professoras relataram que, mesmo tendo direito à aposentadoria, não querem e ainda, quando aposentadas irão continuar como voluntariado. Essa vontade de continuar indica que o mal-estar causado pela aposentadoria no desejo de eternizar-se, não causa crise no sentimento positivo que estas professoras sentem em relação à instituição. Diferentemente, do sentimento de indiferença de alguma das entrevistadas, em fase da aposentadoria, em relação ao fim do Curso Normal, comparados aos docentes em início de carreira na vida profissional, cuja indignação com o fim do curso é bem mais enfática.

Neste sentido, o amor em relação à escola admirada não é intrínseco aos seus sentimentos e suas opiniões em relação ao Curso Normal. Para a escola admirada, quando da possibilidade de aposentadoria, seus sentimentos são de saudade, medo de ir embora e tristeza. Para o fim do curso Normal, indiferença e, até uma certa concordância.

É o que digo a você eu fico muito dividida, acho que transformação tem que ser gradativa. Que vai acabar... Eu acho que vai acabar, tá entendendo? E tem que ser de forma gradativa, com muito pesar (...). (Maísa, A)

Ah! Isso aí “tava” demorando muito a chegar, não é? Mas eu acho que realmente o Curso Formação de Professores... É um ganho pra educação porque você vai ter pessoas mais preparadas (...). (Lúcia Mara, B)

Sim. Olha! Infelizmente é uma pena porque é... seria, pelo menos, uma base de preparação para os alunos que realmente gostam da profissão. (Deusdete, B)

Concordo. E um dos motivos para que eu me aposente, não é? É que eu não sinto mais, não é? Que haja necessidade de uma formação a nível médio, não é? Para uma profissão que é muito exigente que tem o perfil, não é? De um profissional reflexivo. E a garotada, não é? Novos, que estão saindo daqui ainda adolescentes não conseguem alcançar, ter pré-requisito. Acho que o curso, passou a quatro anos, não é? Com a ideia de que a gente fortalecia os conhecimentos básicos, a formação do Ensino Médio básico, não é?

Sendo o complexo docente destas professoras permeado por sua escola de formação tão incisivamente, acredita-se que a vontade de continuarem presentes de alguma forma nesta escola, ou como voluntária ou no imaginário de quem fica ou sai dessa escola (desejo de eternizar-se), sugere que o complexo docente dessas professoras não cessa, mas processam-se mesmo quando aposentadas, como se o estado de 'ser docente' perdurasse ainda por algum tempo ainda depois da aposentadoria. Esse amor à instituição já havia sido detectado em Sobreira ao afirmar, em sua pesquisa, que esse sentimento de retorno do ex-estudante como docente:

É uma evidência adicional e interessante do 'ficar para sempre' como algo que faz parte dos resultados da formação ou de características dessas pessoas. Mais do que 'professor eterno', esses casos revelam a existência de uma 'instituição eterna', quase uma reificação do 'amor à educação e à escola' – o desejo de permanência em seu grau mais elevado grau. (…) Essas cargas afetivas, interpretadas como versões adicionais de um 'ficar para sempre' – versões essas que estão presentes nos currículos de formação e no trabalho docente -, revelam a necessidade de se introduzirem as diversas formas de 'fim', reais, simbólicas, nos processos de educação do educador. (2008, 235)

Nesta pesquisa, evidenciou-se outro desejo de permanência, elevado em um grau ainda mais alto do que o do aluno e aluna que volta como docente para sua escola de formação: o professor e a professora que estudou em uma instituição, retorna para este lócus para trabalhar e ainda, ao final de sua carreira, possui dificuldades sentimentais para gozar de sua aposentadoria. Seria um sentimento de despejo voluntário de sua própria residência, indicando a singularidade mimetizada a partir da instituição. Mais um indicativo de que esses fins, inerentes ao magistério, não podem estar omissos ou ocultos nos currículos da formação docente, juntamente com reelaboração dos desejos profissionais idiossincráticos constituidores do complexo docente. Um currículo emancipador na Formação Docente processa reflexivamente os sentimentos e desejos de seus professores e professoras, alunos e alunas. Seria um currículo anunciativo, agente, constituído a partir dos diferentes personagens conceituais que a educação e a vida de cada sujeito fazem advir, aliando-se em Devires singulares e múltiplos, sempre.

 

 

 

Referências

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Sobreira, Henrique Garcia. 2004. «Indústria cultural, semiformação e educação do educador». In Ensaios Frankfurtianos, organizado por Antonio Alvaro Soares Zuin, Bruno Pucci e Newton Ramos de Oliveira. São Paulo: Cortez.

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Notas

[1] Neste trabalho a expressão Professor-formador designa o professor que trabalha em cursos de formação de professores, tanto no Ensino Médio (Curso Normal), quanto na Educação Superior. Não se refere apenas àqueles que trabalham com as disciplinas pedagógicas, mas a todo corpo docente, inclusive das disciplinas comuns a outros cursos.

[2] Ao longo dos estudos, esta pesquisa foi conduzida à questão da singularização como processo de emancipação. Optou-se por redigir “expressão/impressão de singularidades” para manter atenção à categoria central. Por “expressão de singularidades” deseja-se ressaltar a contribuição de cada indivíduo na compilação de um complexo docente, algo próprio a si e de si.  Por “impressão de singularidade” designa-se a característica que a educação de professores tem de forjar identidades profissionais apriorísticas, imprimindo aspectos do que se espera do professor, quer dizer, uma singularidade de fora.

[3] Neste trabalho, quando Formação (Adorno) e Devir (Deleuze e Guattari) remeterem aos conceitos de seus respectivos autores serão grafados com letra inicial maiúscula, quando forem apenas referências que o termo possui de aplicação usual, limitado aos dicionários, comuns serão grafados em com letra inicial minúscula.

[4] Sobreira (2008) em sua pesquisa aborda categorias analíticas como eutanásia, distanásia e apoptose, que envolvem analogias com os estágios por quais o Curso Normal tem passado desde 1996.

[5] A Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro em seu quadro funcional designa Professor Docente I (Doc. I) aquele que possui Curso Superior (licenciatura), geralmente fazem 16 h/aulas no Ensino Fundamental (Anos Finais) e/ou no Ensino Médio. Já o Professor Docente II (Doc. II) é aquele que foi concursado para trabalhar com a Educação Infantil e o Ensino Fundamental (Anos Iniciais), geralmente tem que trabalhar 20 ou 40 (Concursados de CIEPs) horas semanais, mas que, ao fazer uma licenciatura, conseguem o desvio de função, diminuindo a carga horária.

 

 

Biodata

Waleska Rodrigues Costa: Doutoranda em Educação (UERJ) Mestra em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas (UERJ/FEBF). Possui Especializações em Metodologia do Ensino (UERJ/FEBF) e em Psicopedagogia (UCAM). Licenciada em Pedagogia com habilitação em Supervisão Escolar pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Possui experiência como professora da Educação Básica, com ênfase nas classes de Educação Infantil e de alfabetização em escolas localizadas em periferias urbanas. Supervisora Escolar concursada da rede municipal de ensino de Queimados. Orientadora Pedagógica concursada da rede municipal de ensino de Duque de Caxias (permutada para Queimados). Atualmente, responde pela Chefia do Setor de Supervisão Escolar (SSE) da rede municipal de ensino de Queimados. Exerceu os cargos de: Orientadora Pedagógica da rede municipal de ensino de Belford Roxo, Professora de Disciplinas Pedagógicas do Curso Normal da rede estadual de ensino do Rio de Janeiro, Professora de Educação Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental da rede municipal de ensino da Cidade do Rio de Janeiro, como também da rede municipal de ensino de Belford Roxo e da rede estadual de ensino do Rio de Janeiro no programa que implementou os CIEPs. No Ensino Superior, realizou a atividade de Tutoria Presencial das Disciplinas Fundamentos da Educação I, II e IV para Licenciaturas, oferecido pela UERJ, através da Fundação CECIERJ / Consórcio CEDERJ, no Pólo Duque de Caxias (Modalidade de Educação à Distância).

 

 

Revista nuestrAmérica, ISSN 0719-3092 / ISSN 2735-7139, editada en la ciudad de Concepción, Chile. Ediciones nuestrAmérica. Correo contacto@revistanuestramerica.cl