Rev. nuestramérica, 2022, n.o 20, edição contínua, e7492681

Artigo depositado em Zenodo. DOI https://doi.org/10.5281/zenodo.7492681

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Metodologia participativa para o ensino de ciências em locais megabiodiversidade

Metodología participativa para la enseñanza de las ciencias en sitios de megabiodiversidad

Participatory methodology for teaching science in megabiodiversity places

 

Nina Lys Nunes

Doutora em Políticas Públicas. Pós doutoranda em Sustentabilidade

Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, Brasil

http://lattes.cnpq.br/1407947268657576

ninalys@usp.br

 

Ariadne Dall’acqua Ayres

Mestra em Ciências. Doutoranda em Biologia Comparada

Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, Brasil

https://orcid.org/0000-0001-9622-4778

ariadne.ayres@usp.br

 

Fernanda da Rocha Brando

Doutora em Educação

Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, Brasil

https://orcid.org/0000-0003-3712-6312

ferbrando@ffclrp.usp.br

 

 


Resumo: O trabalho propõe uma metodologia participativa para o ensino de ciências em locais de megabiodiversidade como ferramenta para conservação ambiental e alternativa para escolha profissional dos alunos. A região amazônica é a maior floresta tropical do mundo e uma das últimas fronteiras do conhecimento sobre recursos naturais. A megadiversidade biológica encontrada nesses ambientes, tão pouco conhecidos, desperta o interesse do mundo inteiro. O conhecimento dessa biodiversidade e destes recursos naturais está inserido na cultura dos povos tradicionais. Esse conhecimento é mantido por gerações e gerações e constitui uma das principais fontes de informação sobre essa imensa região de florestas. A metodologia didática foi desenvolvida a partir do conteúdo programático exigido pela Secretária de Educação do Estado do Amazonas e neste trabalho são apresentadas algumas reflexões acerca do processo de aprendizagem mediante pesquisa de campo e bibliográfica. A perspectiva teórico-metodológica valeu-se dos conceitos de Paulo Freire a respeito do aprendizado. São apresentados o local de estudo, histórico sobre a escola onde foi realizada a experiência prática e a metodologia utilizada para as aulas. Finalizamos propondo a utilização desta metodologia em outras escolas da região ou similares.

Palavras-chave: Paulo Freire; Pesquisa de campo; escola rural; educação ambiental.

 

Resumen: El trabajo propone una metodología participativa para la enseñanza de las ciencias en sitios de megabiodiversidad como herramienta para la conservación ambiental y alternativa de elección profesional de los estudiantes. La región amazónica es la selva tropical más grande del mundo y una de las últimas fronteras del conocimiento sobre los recursos naturales. La megadiversidad biológica que se encuentra en estos ambientes, tan poco conocidos, despierta el interés del mundo entero. El conocimiento de esta biodiversidad y estos recursos naturales está arraigado en la cultura de los pueblos tradicionales. Este conocimiento se mantiene por generaciones y es una de las principales fuentes de información sobre esta inmensa región de bosques. La metodología didáctica fue desarrollada a partir del plan de estudios exigido por la Secretaría de Educación del Estado de Amazonas y en este trabajo se presentan algunas reflexiones sobre el proceso de aprendizaje a través de investigación de campo y bibliográfica. La perspectiva teórico-metodológica aprovechó los conceptos de Paulo Freire sobre el aprendizaje. Se presenta el lugar de estudio, la historia de la escuela donde se realizó la experiencia práctica y la metodología utilizada para las clases. Concluimos proponiendo el uso de esta metodología en otras escuelas de la región o similares.

Palabras clave: Paulo Freire; investigación de campo; escuela rural; educación ambiental.

 

Abstract: The study proposes a participatory methodology for science classes in places with megabiodiversity, such as Brazil. The Amazon region is the largest tropical forest in the world and one of the last frontiers of knowledge regarding natural resources. The biological megadiversity found in these environments, so little known, arouses the interest of the entire world. Knowledge of this biodiversity and these natural resources is embedded in the culture of traditional peoples. This knowledge is maintained through generations and generations and constitutes one of the main sources of information about this huge region of forests. The methodology was developed from the dialogue between Paulo Freire's theoretical-methodological perspective on learning and the programmatic content required by the Secretary of Education of the State of Amazonas. In this work, the study location, history of the school where the practical experience was carried out and the participatory methodology used for classes are presented. Reflections on the learning process are presented through field and bibliographical research. We conclude by proposing the use of this methodology in other schools in the region or similar.

Keywords: Paulo Freire; empirical field research; rural school; environmental education.

 

 


Recepção: 30 de outubro de 2022

Aceitação:  28 de dezembro de 2022

Publicação: 29 de dezembro de 2022


 

 

Introdução

A pesquisa em educação favorece a formação do educador, pois: não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Fala-se hoje, com insistência, no professor pesquisador. No meu entender o que há de pesquisador no professor não é uma qualidade ou uma forma de ser ou de atuar que se acrescenta a ensinar. Faz parte da natureza da prática docente a indagação, a busca, a pesquisa [...]. Pesquiso para constatar, constatado, intervenho, intervindo educo e me educo. Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade. (Freire 1996, 32)

A região amazônica constitui a maior floresta tropical do mundo e uma das últimas fronteiras de conhecimento em relação aos recursos naturais. A megadiversidade biológica encontrada nesses ambientes, tão pouco conhecidos, desperta o interesse de pesquisadores do mundo inteiro. Os estudos realizados neste bioma mostram a escassez de informação nas regiões longe dos grandes centros urbanos, mas as estimativas são surpreendentes em relação à biodiversidade, tendo inúmeras espécies descritas até hoje na ciência. Segundo dados do Instituto Chico Mendes (ICMBIO) já foram catalogadas cerca de 40 mil espécies de plantas na região, além de aproximadamente 1300 espécies de aves e 300 de mamíferos (Brasil 2021).

Na Amazônia, os elevados níveis de pobreza existentes são determinados não pela escassez de recursos, abundantes, mas pela desigualdade na distribuição da renda e das oportunidades de inclusão econômica e social. Tanto na distribuição de renda per capita, quanto no acesso aos bens materiais e não materiais, a região norte do país sempre aparece de forma bastante desfavorecida, e, quando comparada às regiões sul e sudeste, essa desigualdade apresenta-se de forma mais aguda e complexa. A desigualdade também se manifesta no acesso à educação de qualidade: os altos índices de analfabetismo, repetência, evasão e fracasso escolar são características da região.

Tratando-se das particularidades apresentadas pelo bioma amazônico e aproximando à realidade do presente trabalho, enfatiza-se a presença abundante de Unidades de Conservação (UC) de diferentes categorias na região. Dentre aquelas unidades de uso sustentável, cabe destacar as Florestas Nacionais (Flona) que possuem cobertura vegetal predominantemente de espécies nativas e foram criadas com o objetivo de uso múltiplo sustentável e de pesquisa científica, permitindo a utilização racional de seus recursos florestais (ICMBIO, s.d.). Dentre as UCs, a Floresta Nacional do Purus, criada em 1988, foi o ambiente de desenvolvimento deste estudo, com cerca de 256 000 hectares localizados no território da Amazônia Legal, no município de Pauini - AM (ISA, s.d.).

Ao observar as comunidades viventes há muitas décadas na região, é possível perceber a relação intrínseca entre meio ambiente e sociedade, vislumbrando saberes fomentados por essa proximidade. O conhecimento da biodiversidade e dos recursos naturais está inserido na cultura dos povos tradicionais da região. Os chamados conhecimentos ecológicos locais (CEL) são mantidos por meio da oralidade e passados entre gerações, constituindo uma das principais fontes de informações sobre essa região de florestas, além de um aglutinado de saberes e crenças relacionados com as vivências e experimentações entre seres humanos e ambiente, portanto, geograficamente contextualizados (Nazarea 2006).

Do ponto de vista educacional, é interessante perceber que se carrega a interferência dos conhecimentos coloniais em sala de aula, em oposição àqueles de outras natureza, tais quais os CEL. Tratando-se de áreas de megabiodiversidade e com a presença de comunidades tradicionais e locais, faz-se fundamental o diálogo entre diversos sistemas de conhecimentos, de maneira que se considere a realidade de cada estudante e o contexto em que se encontra inserido, inclusive com a abertura para aprender a partir das vivências compartilhadas pelos alunos, com o intuito de tornar o conhecimento o mais significativo possível dentro de sala de aula (Ayres e Brando 2021).

Buscando romper com esse olhar no ambiente escolar, cada vez mais existem vertentes que incentivam a interpolação dos conhecimentos científicos com os tradicionais e locais, entendendo que o diálogo com diferentes perspectivas pode ser frutífero para alunos e professores (Maia e Farias 2020; Ayres e Brando 2021). Ainda que a teoria de Freire (1992) não propusesse a implementação de conhecimentos tradicionais propriamente ditos, é possível estabelecer um paralelo entre a crítica feita pelo autor quanto ao modelo de ensino-aprendizagem contemporâneo, no qual os conteúdos são apresentados de maneira descontextualizada e sem uma co-construção entre professor-aluno, assim como a idéia deixar de lado os conhecimentos trazidos pela própria vivência dos alunos em região de alta biodiversidade, em detrimento da transmissão mecânica de saberes genéricos sobre a área. Assim, o conhecimento de ciência que os alunos trazem do meio onde vivem e das suas famílias é fundamental ao propor e trabalhar com comunidades tradicionais e locais.

Observando as funções sociais assumidas pela educação escolar, Nóvoa (2009) ressalta o papel do professor enquanto mediador do processo de ensino-aprendizagem e responsável por contextualizar e aproximar da realidade dos estudantes e conhecimento ali construído. Nesse sentido, Freire (2009) aponta que a prática participativa é o único meio que garante a comunicação e, portanto, indispensável que se articule teoria e prática, a fim de aproximar os alunos da aplicação dos conhecimentos co-construídos na relação com o professor, em             que a colaboração permita que os estudantes se sintam parte do seu próprio processo de construção conjunta de saberes. O autor ainda acrescenta:

Pensar, por exemplo, que o pensar certo a ser ensinado concomitantemente com o ensino dos conteúdos não é um pensar formalmente anterior ao e desgarrado do fazer certo. Neste sentido é que ensinar a pensar não é uma experiência em que ele - o pensar certo - é tomado em si mesmo e dele se faz e que se vive enquanto dele se fala com a força do testemunho. Pensar certo implica a existência de sujeitos que pensam mediados por objeto ou objetos sobre que incide o próprio pensar dos sujeitos. (Freire 2009, 37)

De acordo com a proposta trazida por Freire (2009), essa prática vai ao encontro da educação emancipadora, isto é, que busca assinalar aos alunos o papel do saber enquanto parte da construção do pensamento crítico dos estudantes, abrindo possibilidades de debates e trocas de experiências, tornando possível que esses se sintam responsáveis pela modificação de suas realidades e desenvolvam suas próprias percepções. As reflexões e ideias desse educador serão referenciadas, por tratarem da utilização de temas geradores como facilitadores do trabalho interdisciplinar, da importância do diálogo, da educação emancipadora, e como ferramenta de engajamento político, da autonomia do docente e da pesquisa como prática cotidiana dos educadores.

De acordo com a discussão trazida por Tardif (2007), o autor estabelece a necessidade de repensar a educação de maneira que se observe como o afastamento intelectual, sem contextualizar histórica e geograficamente o conhecimento, é passível de desincentivar os estudantes a buscarem compreender os fenômenos que os cercam.  Além disso, apresenta as convergências entre os saberes sociais e a educação e a possibilidade frutífera do entrelaçamento de conhecimentos plurais, advindos de fontes diversas.

Entendendo a diversidade biológica, cultural e social contida na região amazônica, com destaque à área da Floresta Nacional do Purus, fornecedora de conhecimentos múltiplos e grande sincretismo religioso, enfatiza-se a presença abundante de conhecimentos ecológicos locais entre os indivíduos das comunidades locais. As reflexões levantadas por pensadores da educação sobre a importância da contextualização e co-construção de saberes entre professor e alunos convergem a ideia da incorporação desses outros sistemas de conhecimento em sala de aula, tornando-os mais significativos aos alunos.

Tendo em vista o exposto, o presente trabalho propõe-se a apresentar e analisar uma experiência de construção participativa de ensino de ciências em região com megabiodiversidade e com diversas especificidades trazidas pelo contexto sociocultural da comunidade. Para tanto, serão apresentadas experiências vividas por uma das autoras, primeiramente enquanto professora de ciência junto a alunos do Ensino Fundamental, na Escola Estadual Cruzeiro do Céu, nos anos de 2009 a 2011; e, posteriormente, enquanto professora-pesquisadora no Jardim da Natureza - Escola de Artes e Saberes Florestais, nos anos de 2019 a 2021, durante pandemia de COVID-19.

A pesquisa refere-se a uma experiência prática de ensino de ciências no bioma amazônico aplicando aprendizados da licenciatura, buscando construir uma educação emancipadora e contextualizada. Espera-se que essa experiência possa servir de subsídio para aulas em escolas rurais e em áreas afastadas, permitindo ampliação dos conhecimentos a respeito dos meios abióticos e bióticos, de acordo com as especificidades do ambiente em que se situam, sensibilizando-os para a conservação da biodiversidade.

 

Metodologia

Para atingir os objetivos propostos, utilizou-se de uma metodologia participativa para ensino de ciências em locais com megabiodiversidade e ampla diversidade cultural, como é o caso da Amazônia. Enfatiza-se que se tratando da apresentação das experiências educativas de uma das autoras, permeadas por discussões trazidas por outros autores e literaturas, o presente estudo caracteriza-se também como um Relato de Experiência Reflexivo, uma vez que busca registrar experiências vividas (Lüdke e Cruz 2010).

De acordo com o estudo feito por Nascimento e colaboradoras (2020), ao observar práticas educativas que promovem a aproximação entre a educação e a interdisciplinaridade, utilizando-se de ambientes externos ao local formal de ensino, caracterizado pelas escolas e salas de aula, em que se estabelece interação entre professor, estudantes e ambiente, caracteriza-se como um Estudo do Meio. Os autores ainda acrescentam que essa abordagem possui a especificidade de considerar o contexto sociocultural do local em que ocorrerão as intervenções educativas, inclusive incorporando conhecimentos derivados de diferentes epistemologias, intrínsecos ao ambiente específico e as pessoas envolvidas.

Nesse sentido, e por acreditar na educação para transformação social, foi elaborada uma metodologia que visa estimular o conhecimento científico a partir do conhecimento local. Para isso, buscou-se despertar a curiosidade do aluno para o aprendizado, além de fomentar no aluno o respeito e a valorização do conhecimento tradicional na relação com o saber acumulado dos mais velhos, dos mateiros, erveiros e caçadores, estimulando no aluno o respeito e admiração intergeracional. Ao levar o aluno a sistematizar na linguagem da ciência o saber empírico local, torna-se passível de fazer com que o aluno desempenhe um papel ativo como sujeito no processo do conhecimento, além de estimular a participação do aluno e criar um ambiente propício para expressar suas habilidades e seus conhecimentos.

A escola rural onde se desenvolveu a experiência prática foi a Escola Estadual Cruzeiro do Céu, localizada na Vila Céu do Mapiá, zona rural do município de Pauini, na Unidade de Conservação Floresta Nacional do Purus (Flona Purus), sudoeste do Estado do Amazonas, Brasil. Localizada a de dez dias de barco da capital do Estado, dois dias de barco da sede do município e um dia de barco para a cidade mais próxima, Boca do Acre - AM. Ficando mais próximo da capital do Acre, Rio Branco do que a capital do Amazonas, Manaus, mesmo pertencendo ao estado do AM.

Com cerca de mil habitantes, o principal centro habitacional dessa FLONA é a Vila Céu do Mapiá. Esta Vila foi fundada em 1982 por Sebastião Mota de Melo, líder espiritualista da doutrina do Santo Daime. É descrita como uma manifestação religiosa surgida na região amazônica nas primeiras décadas do século XX. Consiste em uma doutrina espiritualista que tem como base o uso sacramental de uma bebida enteógena, a ayahuasca, com o fim de catalisar processos interiores e espirituais com o objetivo de cura e bem-estar do indivíduo (Abreu e Nunes 2012).

Inicialmente a Vila Céu do Mapiá formava uma comunidade rural, que subsistia da venda da borracha, da agricultura, da pesca, de hortas familiares e de outras formas de extrativismo. Com o tempo, o modo de vida alterou-se, mudando também a forma de se relacionarem com o território, uma vez que as atividades extrativistas e agricultoras, predominantes anteriormente, foram sendo substituídas por outras atividades envolvendo cooperativas de recursos madeireiros e não madeireiros.

Houve um grande investimento para valorizar as práticas de manejo florestal e o desenvolvimento sustentável na Flona. Porém, mesmo com todos esses incentivos, as dificuldades são muitas, a começar pelo desinteresse dos jovens. Enquanto todos estes projetos não ganham força, a juventude fica sem muita opção, não sabendo o que querem fazer e como se inserir no mundo profissional.

De acordo com a Proposta Curricular e Pedagógica do Ensino Fundamental da Secretaria de Educação do Amazonas, a área de Ciências da Natureza corresponde às ciências que estudam os fenômenos naturais, o desenvolvimento científico e tecnológico, o compromisso com a sustentabilidade e o respeito às diferentes formas de vida, assim como a preservação da saúde individual e coletiva ao longo do percurso educativo dos estudantes até a conclusão da Educação Básica. A construção desta proposta incluindo a abordagem das questões socioambientais alinha-se aos documentos orientadores: Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e Referencial Curricular Amazonense (RCA).

O desenvolvimento dessa metodologia participativa em aulas de ciência foi pensado em busca de atingir competências previstas nos documentos orientadores citados, tanto no âmbito conceitual, quanto comportamental. Dentre elas, destaca-se: analisar, compreender e explicar características, fenômenos e processos relativos ao mundo natural, social e tecnológico e compreender as Ciências da Natureza como empreendimento humano e o conhecimento científico como provisório, cultural e histórico. Além disso, agir pessoal e coletivamente com respeito, autonomia, responsabilidade, flexibilidade, resiliência e determinação, recorrendo aos conhecimentos da Ciências da Natureza para tomada de decisões frente a questões científico-tecnológicas e socioambientais, com base em princípios éticos, democráticos, sustentáveis e solidários.

Frente ao contexto em que o estudo foi desenvolvido, também buscou-se abarcar as competências trazidas pela BNCC e pelo RCA que tratam de avaliar aplicações e implicações políticas, socioambientais e culturais da ciência e de suas tecnologias para propor alternativas aos desafios do mundo contemporâneo, incluindo aqueles relativos ao mundo do trabalho, e construir argumentos com base em dados, evidências e informações confiáveis e negociar e defender ideias e pontos de vista que promovam a consciência socioambiental, valorizando a diversidade de indivíduos e de grupos sociais, sem preconceitos de qualquer natureza.

 

 

Resultados

O contexto de realização do trabalho: breve histórico da Flona do Purus

As Florestas Nacionais (Flonas) são unidades de conservação de uso sustentável criadas pelo Governo Federal nas quais se permite a presença de comunidades humanas, em proporção compatível com um desenvolvimento sustentável. O objetivo geral das Flonas é promover o uso múltiplo sustentável dos recursos naturais e a pesquisa científica, com ênfase em métodos para exploração sustentável de florestas nativas e contribuir para a melhoria da qualidade de vida das populações residentes com a valorização da cultura (Decreto n.o 1.298/1994).

A Flona do Purus foi criada em 21 de junho de 1988 pelo Decreto nº 96.190. É importante levar em consideração dois fatos marcantes que contextualizam historicamente o ato de criação da Flona. De acordo com o plano de manejo da Flona (ICMBio 2009), o primeiro fato foi a chamada “crise da dívida externa da América Latina” que iniciou um difícil processo de negociação entre os países credores e os países em desenvolvimento. Esse processo resultou na exigência do aumento dos gastos na pauta ambiental e da ampliação das áreas protegidas na Amazônia. Já o segundo fato foi a publicação em 1987, do Relatório Brundtland (“Report of the World Commission on Environment and Development: Our Common Future”) elaborado pela Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e mais conhecido como “Nosso Futuro Comum” que demarcou o despertar da moderna consciência ambientalista mundial e que destacou a importância da conservação da Amazônia

O processo de criação da Flona resultou na sobreposição da área com a comunidade florestal atípica que havia sido assentada pelo INCRA, em 1983, impulsionado pelo parecer positivo da comissão interdisciplinar de estudos, chefiada pelo coronel Guarino. Dentre os aspectos peculiares da Flona do Purus está o trabalho de preservação de um patrimônio etnobotânico ancestral da Amazônia e o aspecto de intencionalidade dessa comunidade que traz um conjunto de fatores culturais peculiares. Como a intenção da população local é protagonizar uma experiência de convívio harmonioso com a Floresta Amazônica, isso pode agregar conhecimento prático e teórico no estudo da sustentabilidade.

A Vila Céu do Mapiá fica localizada no interior desta Flona, onde reúnem-se, cerca de 200 famílias, entre idosos, adultos, jovens e crianças. Constituída basicamente por caboclos da região, essa população conta com a presença de indivíduos oriundos das grandes e das pequenas cidades brasileiras e estrangeiras, como também de outras comunidades. Forma-se, então, um caldo cultural especialmente fecundo. A comunidade se apresenta como uma alternativa experimental de soluções para a atual crise ambiental, cultural e socioeconômica. Devido ao seu isolamento geográfico, e seu perfil cultural e socioeconômico a Vila Céu do Mapiá demanda e favorece o desenvolvimento de um modelo de ocupação resiliente.

Em 1987, foi criada a Associação de Moradores da Vila Céu do Mapiá (AMVCM). Já na década de 1990, foi iniciado os termos de cooperação entre a AMVCM e o IBAMA, afirmando o direito da comunidade de participar da gestão da unidade e explorar os recursos naturais renováveis da área. Porém, a demora de quase 20 anos para se dar início ao Plano de Manejo impediu qualquer avanço prático significativo.  No final dos anos de 1990, foi fundado o Instituto de Desenvolvimento Ambiental Raimundo Irineu Serra (IDARIS) e a Cooperativa Agroextrativista do Mapiá e Médio Purus (COOPERAR) com o objetivo de promover a questão social e ambiental da região. Possui experiência no trabalho com a riqueza e a diversidade Amazônica, promovendo as tradições culturais.

Essas instituições locais formalizaram projetos e buscaram apoios em diversas fontes, trazendo visibilidade internacional. Instituíram uma forma diferenciada de governança local da comunidade com participação comunitária e eleição de representatividade por setores, assim como a criação de grupos de trabalhos setoriais e intersetoriais. As organizações buscaram apoio governamental, nas esferas municipais, estaduais e federal, o que resultou na criação da escola, apoios e serviços e melhora de infra-estrutura. Alinhado com o Ministério do Meio Ambiente, foi sede de eventos da Agenda 21, participando de políticas públicas como o Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil (PPG7), e implementou o Conselho Consultivo da Flona do Purus com o apoio do Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA).

Em conformidade com as peculiaridades ambientais e socioeconômicas locais e regionais e com os indicativos dos estudos realizados no Plano de Manejo da Flona (ICMBio 2009), pode-se destacar alguns dos objetivos de criação e manuntenção da UC que serviram de subsídio para o planejamento das aulas. Dentre esses objetivos, buscou-se incorporar às aulas aqueles relacionados com a conservação de amostras do ecossistema do Bioma Amazônia Ocidental, local de interesse, além da importância de proteger espécies raras e/ou ameaçadas de extinção. Em um contexto sociocultural, entendeu-se que era necessário incorporar os objetivos da UC relacionados com garantir a manutenção das atividades extrativistas tradicionais, promover a melhoria da qualidade de vida da população residente, além de proporcionar o uso público e para atividades de educação ambiental, com a cooperação das instituições de ensino superior.

Ademais, em consonância com esses objetivos, as atividades realizadas posteriormente no Jardim da Natureza também puderam estabelecer um Laboratório Socioambiental capaz de promover experiências piloto de desenvolvimento sustentável e humano, visando a gerar matrizes de políticas públicas para a sustentabilidade na Amazônia, bem como buscar melhorias para a qualidade de vida dos povos da floresta através da captação, geração, desenvolvimento e difusão de tecnologias apropriadas ao interior da Amazônia. Por meio da promoção da gestão socioambiental participativa implementando a educação no processo de gestão e integrando-as com políticas públicas governamentais, com vistas a favorecer o desenvolvimento humano das populações residentes.

Em fevereiro de 2019, a Vila Céu do Mapiá se filiou à Rede Global de Ecovilas (GEN), composta por comunidades do mundo inteiro. Esta filiação traz para o local a oportunidade de interação com outras integrantes da rede e sua organização, assim como, aumenta a responsabilidade da Vila de ser uma representante da Amazônia perante o mundo.

As ações conjuntas entre AMVCM e IDARIS desencadearam uma série de outras parcerias institucionais com o poder público nas esferas municipal, estadual e federal, ONG’s e particulares, desenvolvendo obras e ações importantes tais como a construção da ponte, o posto de saúde, a manutenção da escola, gerador para instalação de uma rede elétrica, montagem de duas usinas de extração de óleos vegetais, viveiros de mudas para reflorestamento e assessoria técnica para formação e pesquisa.

Entre as realizações, destaca-se grandes conquistas em diferentes áreas, como por exemplo, na área de educação, junto ao Governo do Amazonas constituiu uma escola estadual com ensino fundamental e médio, supletivo e alfabetização de adultos. Posteriormente, lançou o projeto de educação junto ao Centro de Educação Tecnológica do Amazonas (CETAM)/Governo do Amazonas: reforma da escola, construção do galpão e alojamento para cursos profissionalizantes.

A Escola Cruzeiro do Céu da vila Céu do Mapiá foi fundada em 1986, tendo como corpo docente apenas dois professores e corpo discente de 30 alunos. Até 1994, a escola era ligada ao município de Boca do Acre, Estado de Amazonas, e recebia subvenção financeira destinada aos professores, funcionários, merenda e material didático, pedagógico e escolar. Além disso, recebia apoio filantrópico de outros Estados para manutenção cotidiana da Escola.

Em 1995 a escola foi municipalizada, desta forma o ensino a responsabilidade financeira e pedagógica da escola passou para o município de Pauini - AM. No entanto, o primeiro repasse de verbas ocorreu apenas em 1998. Para preencher esta lacuna criada pelos órgãos governamentais, a Escola, que atendia 116 crianças, da 1a. a 5a. séries, com 14 funcionários e professores, lançou a Campanha “Adote um aluno”, e funcionou como Escola Municipal Cruzeiro do Céu até o primeiro semestre de 2001.

Em 29 de agosto de 2001, pelo Decreto 22.085, a Secretaria Estadual de Educação e Qualidade da Educação (Seduc) - AM instituiu a Escola Estadual Cruzeiro do Céu. A partir de 2002, funcionou com o Ensino Fundamental, da 1ª a 8ª séries, e o Projeto Tempo de Acelerar para o Ensino Fundamental e para o Ensino Médio, com cerca de 150 alunos e 16 funcionários e professores.

A Escola Estadual Cruzeiro do Céu funcionou em um prédio construído em 1992 num convênio do IBAMA, o Ministério da Educação e a comunidade até 2006, atendendo um número crescente de crianças, jovens e adultos. Além disso, a Escola manteve em períodos alternados uma sala de aula em outras colocações situadas na própria Flona, na colocação Cachoeira, no médio Igarapé Mapiá e colabora com a Escola Municipal da Colocação Fazenda, na boca do Igarapé Mapiá.

Em 2007, iniciou-se a construção do prédio novo, a reforma do prédio antigo, a instalação do motor de luz, do poço artesiano, da Sala de Informática com 25 computadores, num convênio da Seduc-AM com a Positivo Informática, implementação do Ensino Médio via satélite; e a reforma da quadra de esporte cuja se encontrava em estado preocupante e perigoso para os alunos

Além da dificuldade da distância de 10 dias de barco do centro de decisões em Manaus, capital do Amazonas, pertencendo a Pauini, cuja sede fica a 2 dias de barco, e estando a um dia de barco da cidade mais próxima, Boca do Acre, a Escola Estadual Cruzeiro do Céu também sofre com as condições da educação no país e particularmente na Amazônia.

Um outro espaço comunitário da Ecovila Céu do Mapiá voltado para educação é a Escola de Artes e Saberes Florestais: Jardim da Natureza que visa promover a valorização da cultura amazônica pela pesquisa, pela multiplicação de técnicas artesanais e pelos costumes alimentares regionais. Trata-se de um trabalho coletivo protagonizado por mulheres e jovens que se fortalece tanto como um espaço educador como de produção.

Nele desenvolvem-se oficinas de capacitação e produção em artesanatos, pintura, mudário e plantio de espécies nativas, beneficiamento de frutas e sementes, extração artesanal de óleos, tiginmento natural, identificação de espécies, orquidário, atividades de conscientização ecológica para crianças e jovens, entre outras atividades. A linha de produtos é artesanal e prioriza a utilização de elementos naturais da floresta. Os produtos comercializados geram renda para a sustentabilidade do espaço e para os jovens artesãos que frequentam as oficinas.

Em 1998, o grupo ganhou espaço de trabalho - o Jardim da Natureza, situado nos arredores da Vila. Assim nasce o Jardim da Natureza - Escola de Artes e Saberes Florestais, espaço que, principalmente através do trabalho voluntário, doações, parcerias e dos vários visitantes, desenvolve atividades e estudos voltados às formas alternativas de educação e geração de renda como oficinas de capacitação e produção em artesanato, pintura, mudário e replantio de espécies nativas, beneficiamento de frutas, extração artesanal de óleos, identificação de espécies, orquidário, atividades de conscientização ecológica para crianças e jovens, entre outras atividades.

Durante as vivências de arte terapia, caminhadas na mata e oficinas realizadas nos espaços do Jardim, são servidos alimentos locais e orgânicos. Fortaleceu-se a pesquisa e desenvolvimento de produtos locais e ampliou-se a experiência com jovens aprendizes.

Na rotina do Jardim, incentiva-se o respeito para com o próximo, o zelo pelo local; buscando canalizar a energia em prol de um trabalho proativo, concentrado, e harmonizado com a natureza. Assim, a rotina se estrutura com um quadro de horário das atividades, gerando o compromisso, e incentivando a presença dos participantes - fundamental para atingir os resultados pedagógicos e artísticos esperados do grupo.

As atividades ocorrem semanalmente e a duração de cada oficina varia de acordo com o que é proposto pelo oficineiro e o que se produz. O quadro de oficinas pode variar, chegando a ter quatro oficinas diferentes na mesma semana. A presença nos mutirões de segunda, tradição da comunidade Vila Céu do Mapiá, é um dos acordos feitos entre a equipe. O grupo se responsabiliza com o mutirão no Jardim, que é basicamente ajudar a limpar, organizar e zelar pelo local.

O Jardim da Natureza é considerado pela comunidade local e mundial como um santuário, por isso, a necessidade de zelar este espaço é dotado de simbolismos culturais, ambientais e espirituais. O Jardim é um ambiente saudável usado por muitos membros da comunidade com diferentes finalidades, podendo ser comparado com um jardim botânico no interior da floresta. Um lugar que propicia atividades de educação, de esporte, de saúde, de artes, de troca de saberes, de lazer e de espiritualidade. 

 

As atividades pedagógicas dentro do contexto específico da Vila

Adentrando o campo pedagógico, a metodologia participativa foi aplicada para o ensino de ciências com enfoque na conservação da biodiversidade e no desenvolvimento profissional dos alunos. A metodologia participativa é o único meio que garante a comunicação, e, portanto, indispensável nas questões vitais para a nossa ordem política e em todos os sentidos da nossa existência (Freire 1993). A utilização de temas geradores como facilitadores do trabalho interdisciplinar, da importância do diálogo, da educação emancipadora, e como ferramenta de engajamento político, da autonomia do docente e da pesquisa como prática cotidiana dos educadores (Freire 1986).

Dessa forma, foram aplicadas diversas práticas, tais como: a elaboração de uma horta na escola; caminhadas ecológicas com mateiros; feira de ciências; mostra de filmes ambientais com exibição de filmes na praça e desenvolvimento do laboratório de ciências.

Diante da dificuldade de manter os alunos em sala de aula, devido ao calor e a falta de concentração, foram realizadas práticas fora da sala de aula, gerando o maior interesse dos alunos. Destaca-se a manutenção da horta na escola, visitas ao igarapé e aulas ministradas embaixo da mangueira aproveitando a sombra da árvore, seguindo as instruções freirianas.

Uma outra prática constante era levar os jovens para vivenciar os projetos locais, tais como: Santa Casa, Centro Medicina da Floresta, Jardim da Natureza, Rádio Jagube local e comunitária e Saúde Ambiental. Essa prática foi intitulada "um dia com profissionais" e teve como finalidade mostrar possíveis caminhos profissionais para os estudantes. O projeto Saúde Ambiental trabalha com os resíduos sólidos e reciclagem; já na Santa Casa o foco é a saúde com pesquisa sobre as doenças e os tratamentos alternativos; enquanto que o Centro Medicina da Floresta lida com as plantas medicinais.

Durante todo o período de ensino e aprendizado foi necessário redigir projetos, elaborar cronogramas e orçamentos. Nada é trivial na Amazônia, qualquer compra é preciso transportar de barco, por isso exige uma logística complexa. A parceria e a cooperação como os demais comunitários foram fundamentais para que a metodologia participativa tivesse êxito. Neste momento, o processo de ensino se define como práxis quando a teoria e a prática se juntam para desenvolver no aluno um processo de transformação. Ser educador é transformar futuros, ensinar sobre cultura e socialização e inserir o ser humano no meio em que vive (Freire 1993)

Para a horta, era preciso ferramentas, estrutura, trazer água, conseguir os insumos e ainda contar com a colaboração comunitária para manter as plantas vivas. Para a tarefa de identificar a flora local, foram necessários adquirir materiais como: prancheta, lanche, tintas e pincéis, binóculo; bússola, gps, podão, tesoura de poda, trado.

A prática com resultados mais visíveis, foi as caminhadas ecológicas. Nela mapeamos trilhas, catalogamos as plantas e colocamos placas de identificação botânica, com o suporte de mateiros locais, os para-botânicos. Essa prática incentivou práticas ancestrais, valorizou a cultura local, propiciou a geração de renda dos ‘florestânicos’, estreitou o vínculo com a floresta, promovendo momentos de integração comunitária e ainda, apresentar profissões que envolvem as plantas.

Essa metodologia foi apresentada no Congresso Nacional de Botânica (2010), pois as plantas coletadas foram herbarizadas e enviadas para o herbário do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. A proposta básica levou o nome de “botânica comunitária”, cujo objetivo era inverter o fluxo tradicional de informação, ou seja, na qual uma demanda local para identificações ia gerar um fluxo de material botânico para instituições de pesquisa, assim permitido que a comunidades saiba as identidades das plantas na sua volta, propiciando pesquisar sobre o que já está conhecido sobre elas.

Na sala de aula foi trabalhado os conteúdos produzidos na saída de campo. Os animais e plantas coletadas foram para o laboratório de ciências e analisados com a ajuda de uma lupa de Mão. O conhecimento dos alunos sobre as plantas e os animais foram registrados e apresentados em forma de um livro sobre a fauna local com ilustrações belíssimas dos próprios alunos.

As etapas para elaboração do livro constituíram em pesquisa bibliográfica, caderno de campo e entrevista sobre a fauna local com o objetivo de fazer um livro com fotos e desenhos dos animais locais e informações biológicas de classificação (nome científico, nome popular, reino, filo, classe, ordem, família), habitat, nicho ecológico, alimentação, procriação, informações indígenas, lendas e curiosidades. O produto foram seis livretos: aves, cobras, mamíferos, artrópodes, anfíbios, répteis.

Freire (1975), afirma que tudo é para o aluno é aprendizado. Esse tipo de educação emancipadora trabalha a relação entre os moradores e a floresta, o que propicia o maior conhecimento sobre a biodiversidade local. O saber tem historicidade (FREIRE, 2008), o que pode ser acompanhado com as mudanças de paradigmas advindos da globalização e dos tempos atuais.

Três marcos históricos mudaram a vida comunitária: são eles a chegada da luz, depois a chegada da televisão e a chegada da internet para todos. Nesse sentido, o uso da internet para pesquisa pode ser estimulado.

Lecionar em uma área isolada é algo difícil, na Amazônia mais ainda. Felizmente, a Flona atrai um grande intercâmbio de profissionais que lecionam na escola. Outro fator importante é que os alunos de 2010 saíram para se formar em outros estados, a maioria na área ambiental, depois, começaram a voltar para a comunidade para dar suas contribuições.

A questão do isolamento, conceito trabalhado por Freire (2008), foi sentido na comunidade, pois durante a pandemia a escola ficou fechada, levando os encontros a acontecer no Jardim da Natureza., tendo em vista que o ambiente era aberto, o que diminuía os riscos de contágio de covid 19.

Por fim, para avivar e estimular as trocas de experiências, os alunos eram convidados a sair da sala de aula e a explorar o seu próprio território. As propostas incluíam entrevistas aos familiares, coleta de fauna e flora.

A metodologia aqui descrita, é passível de ser replicada em outras localidades e se conhecer o território. É importante abordar o contexto histórico e as estratégias participativas de coleta e envio da dados para centros de pesquisa, visando tornar o aluno ator de uma mudança real do seu papel como cidadão em prol da conservação da biodiversidade, pois só se conserva o que se conhece, além de estimulá-lo a ser o protagonista de sua própria formação educativa.

 

 

Discussão

O Homem é um ser inacabado – sua inserção num permanente movimento de procura. Ensinar exige a convicção de que a mudança é possível. O mundo não é. O mundo está sendo. Educar é sempre um ato político que envolve relações sociais e necessariamente opções políticas. Ensinar exige saber escutar. Ensinar exige disponibilidade para o diálogo. Ensinar exige respeito aos saberes do educando. Ensinar exige reflexão crítica sobre a prática. Ensinar exige risco, aceitação do novo e rejeição a qualquer forma de discriminação O sujeito é responsável pela construção do conhecimento As pessoas só aprendem quando possuem um “projeto de vida”. (Paulo Freire, 1993)

Este artigo descreve práticas voltadas a educação crítica e popular. Uma forma de esperançar e não perder a esperança em algo novo e transformador. A educação como ato de semear a humanização e estabelecer pontes entre saberes, pois o educador valoriza o conhecimento do educando e aprende com ele e com o seu contexto.

Durante a pandemia, com as escolas fechadas, assim como a Flona permaneceu fechada para intercâmbio de pessoas, as atividades ao ar livre permitiram práticas libertadoras e reflexivas sobre o isolamento. Os habitantes da Flona, puderam vivenciar a natureza e o contato saudável com o território. O pensamento freiriano, permitiu discutir as práticas, construir utopias, transformar a realidade das áreas populares.

Dentre as discussões, foi possível encontrar elementos desejáveis, como: a) a sensibilidade social, histórica e política; b) a formação pedagógica; c) a capacidade de compreender e refletir sobre a própria prática; d) colocar em diálogo alunos com diferentes níveis de experiência em uma espécie de intercâmbio (Freire 2008).

O conhecimento da biodiversidade e dos recursos naturais integra a cultura dos antigos habitantes dessa região. Esse conhecimento tradicional é mantido e transmitido entre gerações, constituindo-se numa das principais fontes de informação sobre essa enorme região de florestas. Ele está impregnado nas habilidades, ferramentas e objetos que essas populações utilizam para a sobrevivência no dia a dia. Suas casas, alimentos e remédios, além das ferramentas e artefatos religiosos e culturais, são obtidos diretamente da floresta, que constitui a fonte de seus recursos, indicando a existência de uma relação estreita entre as populações e a natureza ao redor e apresentando múltiplas possibilidades concretas do uso sustentável da diversidade biológica.

O uso de espécies endêmicas da região amazônica, bem como o preparo e suas diferentes formas de utilização expressam modos peculiares de sociabilidade e de produção e transmissão de um conhecimento tradicional. Vivendo em um planeta ameaçado pelas sucessivas crises ambientais provocadas pelo modelo de progresso desenvolvimentista, pode-se dizer que esses conhecimentos tradicionais transmitidos de geração a geração constituem a expressão de um importante patrimônio cultural. A valorização de saberes e fazeres e antigas tradições que remontam a antigas formas de organização, com o sentido de fortalecer um acervo de “conhecimentos tradicionais” ameaçado de extinção pelas forças homogeneizadoras do capitalismo transnacional.

A sustentabilidade visando a conservação da biodiversidade é uma busca, e a prática é muito mais complexa do que a teoria. Com essas duas afirmações é que se conclui este artigo apontando os desafios para o futuro. Todos esses anos de atuação, permitiram uma ampliação da consciência ambiental dos moradores, trouxeram capacitação e infra-estrutura para a comunidade. De maneira geral, a comunidade mantém seus roçados, hortas, quintais agroflorestais. Projetos de longo prazo que tocam pontos essenciais de sustentabilidade foram implementados na comunidade em setores de educação, de saúde, de geração de renda, de subsistência.

Porém, mesmo com tantos pontos positivos, ainda existem muitas demandas comunitárias e novas questões vêm surgindo. Também, ainda existem muitos problemas de governança dos bens comuns e do mercado interno que demanda por produtos. Muitos projetos estão funcionando aquém do que poderiam funcionar, por falta de investimento e de mão de obra engajada.

Diante do exposto, é possível concluir que muito já foi feito, gerando resultados. Porém, ainda há muitos desafios pela frente e é por isso, que se acredita na persistência com resiliência ao longo dessas décadas em busca de transformar a Vila em um exemplo de unidade de conservação de uso sustentável que consegue manter seus moradores, conservando o ambiente equilibrado.

 

 

 

Referências

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Biodata

Nina Lys de Abreu Nunes: Pós doutoranda em Sustentabilidade, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, Brasil. Doutorado sanduiche na Universidade de Edimburgo e no Royal Botanic Garden Edinburgh (2017). Mestre em Botânica pela Escola Nacional de Botânica Tropical do Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro (2014) com a dissertação "Padrões de endemismo de espécies de Leguminosae na Região Hidrográfica do Atlântico Sudeste", com estágio supervisionado no Royal Botanic Gardens, Kew (2013) trabalhando com coleções botânicas e Sistemas de Informação em Biodiversidade. Bacharel e Licenciatura em Ciências Biológicas pela Universidade Santa Úrsula, no Rio de Janeiro (2005 a 2008) defendendo a monografia "Leguminosae Mimosoideae: espécies de interesse conservacionista". Tem experiência na área de Botânica, com ênfase na Identificação de espécies, Conservação da Biodiversidade, Padrões de Distribuição de Riqueza, Modelagem de Distribuição de Espécies. Na área de Análise e avalição de Políticas Públicas, em especial Política ambiental, Orçamento público, Análises de custo efetividade. http://lattes.cnpq.br/1407947268657576

Ariadne Dall’acqua Ayres: Bacharela e Licenciada em Ciências Biológicas pela Universidade de São Paulo (FFCLRP/USP), com trabalhos de conclusão de curso relacionados aos conhecimentos tradicionais na neurociência da ayahuasca e na formação inicial de biólogos e professores de biologia. Mestra em Ciências pelo Programa de Pós-Graduação em Biologia Comparada (FFCLRP-USP), com pesquisa junto ao povo Kaingang e sua relação com a conservação da biodiversidade. Doutoranda pelo mesmo programa com projeto de pesquisa relacionado ao uso e ocupação de territórios indígenas, de acordo com a abordagem dos sistemas socioecológicos. Integrante da Rede Internacional de Pesquisadores sobre Povos Originários e Comunidades Tradicionais - RedeCT. Tem interesse nas áreas de Etnoecologia e Avaliação de Políticas Públicas, com ênfase na Conservação da Biodiversidade, Ecologia, Serviços Ecossistêmicos, Povos indígenas e Populações tradicionais.  http://lattes.cnpq.br/7596499662634196

Fernanda da Rocha Brando: Possui graduação em Licenciatura em Ciências Biológicas pela Universidade do Sagrado Coração (USC, 2000); especialização em Gestão Ambiental pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar, 2003), mestrado e doutorado em Educação para a Ciência pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - Campus Bauru (UNESP, 2005; 2010). Livre-docente pela Universidade de São Paulo (USP, 2018), atualmente é professora associada junto ao Departamento de Biologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP (FFCLRP-USP). É credenciada no Programa de Pós-graduação em Biologia Comparada (FFCLRP-USP). Coordena o Laboratório de Epistemologia e Didática da Biologia (http://www.ledibusp.com.br). É pesquisadora colaboradora do Grupo de Pesquisa em Epistemologia da Biologia (GPEB-UNESP) e do Grupo de História e Teoria da Biologia (GHTB-USP). Atua junto à Superintendência de Gestão Ambiental da USP (SGA) como Assessora Técnica desde 2015. Na FFCLRP-USP atuou como Vice-Presidente da Comissão de Cultura e Extensão Universitária entre agosto de 2018 e agosto de 2020, tendo atuado como Presidente da mesma entre agosto de 2016 e agosto de 2018. Tem interesse de pesquisa em temas como Ensino de Ciências e Biologia, Epistemologia, Biologia Teórica, História da Ecologia, História Ambiental, Filosofia Peirceana, Sustentabilidade e Educação Ambiental. http://lattes.cnpq.br/0839314197501856

 

 

Revista nuestrAmérica, ISSN 0719-3092 / ISSN 2735-7139, editada en la ciudad de Concepción, Chile. Ediciones nuestrAmérica. Correo contacto@revistanuestramerica.cl