Dimensões de justiça no contexto legal diante das desigualdades de gênero

Dimensiones de justicia en el marco legal ante las desigualdades de género

Dimensions of justice in the legal framework in the face of gender inequalities

 

Lisi Batres

Licenciada em Comunicação Social

Doutoranda em Comunicação na Universidade Nacional de La Plata

Bolsista de doutorado da Comissão de Investigações Científicas (CIC, Argentina)

Universidade Nacional do Centro da Província de Buenos Aires

Buenos Aires, Argentina

lisibatres60@gmail.com

https://orcid.org/0000-0001-9153-7396

 


Rev. nuestrAmérica, 2023, n. 22, publicação contínua, e10212332

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Depositado no Zenodo: https://doi.org/10.5281/zenodo.10212456

Direitos autorais 2023: Lisi Batres

Direitos de publicação não-exclusivos: Ediciones nuestrAmérica desde Abajo

Direitos de publicação: Lisi Batres

Creative Commons License

Licença: CC BY NC SA 4.0

Recebido: 7 de setembro de 2023

Aceito: 21 de outubro de 2023

Publicado: 20 de novembro de 2023


 

Resumo: Nos últimos anos, o fortalecimento das reivindicações formuladas pelo movimento feminista contra as desigualdades de género permitiu a instalação de diferentes debates nas agendas públicas, políticas e mediáticas, bem como a sanção de novas leis na Argentina. Na perspectiva de Nancy Fraser, estes novos quadros jurídicos devem ser constituídos a partir de reivindicações de redistribuição e reconhecimento para alcançar a justiça. O objetivo deste artigo é investigar a que concepção de justiça respondem essas leis. A nível metodológico foi realizada uma seleção e classificação de leis com alcance na província de Buenos Aires que visam reduzir as desigualdades de género. Entre as reflexões finais destacam-se os avanços em relação às leis que estão ligadas à dimensão do reconhecimento e a escassez de medidas na área da redistribuição económica, o que provoca o risco de truncar o âmbito da justiça.

Palavras-chave: gênero; justiça; reconhecimento; redistribuição.

 

Resumen: Durante los últimos años, el fortalecimiento de las demandas formuladas desde el movimiento feminista frente a las desigualdades de género permitió instalar distintos debates en las agendas pública, política y mediática, así como la sanción de nuevas leyes en Argentina. Desde la perspectiva de Nancy Fraser, esos nuevos marcos legales deben constituirse a partir de reivindicaciones de redistribución y reconocimiento para alcanzar la justicia. El presente trabajo tiene como objetivo indagar a qué concepción de justicia responden esas leyes. A nivel metodológico, se realizó una selección y clasificación de leyes con alcance en la provincia de Buenos Aires que tienen como objetivo reducir las desigualdades de género. Entre las reflexiones finales se destacan los avances en relación con las leyes que se vinculan a la dimensión del reconocimiento y la escasez de medidas en el plano de la redistribución económica, lo que provoca el riesgo de truncar el alcance de la justicia.

Palabras clave: género; justicia; reconocimiento; redistribución.

 

Abstract: In recent years, the strengthening of the demands formulated by the feminist movement against gender inequalities have allowed the installation of different debates in the public, political and media agendas, as well as the sanction of new laws in Argentina. From Nancy Fraser's perspective, these new legal frameworks must be constituted from redistribution and recognition claims to achieve justice. The objective of this paper is to investigate what conception of justice these laws respond to. At the methodological level, a selection and classification of laws with scope in the province of Buenos Aires that aim to reduce gender inequalities was carried out. Among the final reflections, the advances in relation to the laws that are linked to the dimension of recognition and the scarcity of measures in the area of economic redistribution stand out, which causes the risk of truncating the scope of justice.

Keywords: gender; justice; recognition; redistribution.


 

[1]

Introdução

Nas últimas décadas, as lutas pela aquisição de direitos relacionados à igualdade de gênero fortaleceram-se em toda a Argentina, resultando em um processo de mobilização social. A convocação para manifestações em 3 de junho de 2015, com o lema "Ni Una Menos", tornou-se um ponto de partida para repensar coletivamente as desigualdades e violências de gênero, exigindo ações por parte do Estado. A mobilização não apenas marcou um marco significativo na visibilidade das diversas questões, mas também manteve a presença das demandas ao longo do tempo. O movimento feminista conseguiu destacar desigualdades históricas e inserir o debate nas agendas pública, midiática e política em nível nacional. Nesse contexto, discursos com perspectiva de gênero foram fortalecidos para disputar os sentidos hegemônicos enraizados na sociedade que reforçam e reproduzem a estrutura patriarcal. O feminismo conseguiu recuperar a questão cultural como uma dimensão essencial em sua luta e formulá-la em termos de comunicação e direitos políticos.

Este trabalho faz parte de uma pesquisa mais ampla como bolsista de doutorado da Comissão de Investigações Científicas da província de Buenos Aires e tem como objetivo identificar como as dimensões de justiça se articulam no quadro legal da província. Para isso, propõe-se levantar as leis aprovadas na Argentina, e especificamente na província de Buenos Aires, nos últimos quinze anos, em relação à desigualdade e violência de gênero, e recuperar as categorias de análise propostas por Nancy Fraser: reconhecimento e redistribuição. Uma vez que é nas leis que as dimensões de justiça que o Estado busca alcançar se materializam. A análise apresenta-se como um ponto de partida para identificar em qual dimensão (do quadro legal) está atualmente a maior vulnerabilidade das pessoas que sofrem violências relacionadas à sua condição de gênero e o perigo representado pelo avanço dos movimentos de extrema direita, que ameaçam eliminar os direitos conquistados através da luta do movimento feminista. Nesse contexto, é essencial refletir sobre os desafios que permanecem vigentes em busca de uma perspectiva mais igualitária em termos de gênero.

 

Referencial Teórico

Partimos do entendimento de que a sociedade, historicamente patriarcal, está permeada pelo que Rita Segato (2003) chama de violência estrutural. A antropóloga utiliza essa noção para se referir aos fenômenos que ocorrem cotidianamente com certo grau de automatismo e inércia, passando despercebidos. Daí decorre o conceito de sexismo automático, que se refere à naturalização das desigualdades de gênero. São ações que "não dependem da intervenção da consciência discursiva de seus atores e respondem à reprodução maquinal do costume, amparada em uma moral que já não é revisada" (Segato 2006, 9). A vida das mulheres e das dissidências é atravessada por essas injustiças, sustentadas e reproduzidas nos discursos e práticas socialmente legitimados. Por isso, essas vidas se constituem no que Judith Butler chama de vidas precárias (2006). Nessas vidas, a vulnerabilidade se constrói como uma dimensão pré-contratual das relações sociais.

A nova onda feminista que se formou e cresceu a partir de 2015 na Argentina questionou práticas que reproduzem automaticamente as desigualdades de gênero e, em termos de Martín Barbero (2011), provocou a ativação da competência cultural da audiência. "O reconhecimento das diferenças e a afirmação da identidade que se fortalece na comunicação - feita de encontros e conflitos - com o outro e com o outro" (Martín Barbero 2011). Como resultado, nos últimos anos, foram debatidas e sancionadas diversas leis em nível provincial e nacional com o objetivo de reduzir as desigualdades de gênero que as mulheres e dissidências enfrentam diariamente em diferentes áreas da vida social.

É Rita Segato (2003) quem destaca a importância das leis como discurso para promover a reflexão coletiva e contribuir para instalar uma nova referência moral. O discurso da lei é um sistema de representação que prescreve como o mundo deveria ser, e é aí que os sujeitos reconhecem e identificam aspectos do mesmo nos termos que a lei coloca à disposição, para depois decidir se acatam ou contestam no campo político. "Assim se estabelece uma dinâmica de produção de moralidade e de desestabilização do mundo como paisagem natural" (Segato 2003, 144). Nesse sentido, a linguagem se apresenta como uma ferramenta chave para produzir "o socialmente real" por meio dos atos locucionários dos sujeitos (Butler 1999).

Na mesma linha, o tratamento de questões relacionadas às desigualdades e violências de gênero, tanto na Câmara de Senadores e Deputados da província de Buenos Aires quanto nas Câmaras do Congresso Nacional para modificar a legislação vigente e/ou criar novas leis, deve, ou deveria, ter como eixo transversal a construção de uma nova referência moral de justiça. No entanto, como se constrói essa justiça? Para a filósofa Nancy Fraser (2000), na atualidade, a justiça requer necessariamente duas dimensões: reconhecimento e redistribuição. Isso ocorre porque os eixos nos quais a injustiça se materializa são simultaneamente culturais e socioeconômicos. Por um lado, as injustiças de reconhecimento estão enraizadas nos modelos sociais de representação, interpretação e comunicação (Fraser 2000). Elas se apresentam e manifestam em uma dimensão simbólica e cultural. Por outro lado, as injustiças de redistribuição referem-se às desigualdades que são produto da estrutura econômico-política da sociedade. Abordar esse tipo de desigualdade requer uma reestruturação econômica que deixe de lado as especificidades de cada grupo em prol de uma distribuição mais igualitária. As vidas das mulheres e dissidências estão, sem dúvida, atravessadas por ambas as dimensões de injustiça.

A noção de gênero traz consigo uma lógica de poder e dominação. As leis da cultura delimitam os sujeitos por meio do gênero, que, por sua vez, inscreve nos sujeitos uma série de comportamentos, modos de agir e pensar aos quais devem se ajustar (Lamas 1999). É no contexto das relações de poder que o corpo como tal adquire significado dentro do discurso (Foucault 1975). Para abordar analiticamente essas relações de poder, Fraser propõe pensar a categoria de gênero a partir das dimensões de reconhecimento e redistribuição, pois o gênero se constitui como um modo de distinção cultural que tem um vínculo direto com a estrutura econômico-política. Esses eixos tornam-se pertinentes para refletir sobre os modos como se busca modificar o quadro legal vigente para reduzir as desigualdades de gênero.

Por um lado, a problemática do reconhecimento se vincula diretamente com a categoria de gênero por meio do androcentrismo. Ou seja, a construção legitimada de normas que sempre privilegiam aspectos associados à masculinidade (Fraser 2000). Isso provoca, como consequência, a desvalorização de tudo o que é codificado como "feminino". Nesse sentido, o sexismo se materializa em todas as esferas da vida cotidiana e se expressa tanto através da exclusão, marginalização e desvalorização de tudo o que está associado à feminilidade, como na reprodução de representações estereotipadas onde a mulher sempre aparece como subordinada. Nessa dimensão, podemos identificar o mecanismo do patriarcado simbólico (Segato 2003), que articula as relações de poder e subordinação sem que estejam à vista dos sujeitos que fazem parte dessa construção. A reprodução das desigualdades em termos de reconhecimento está enraizada na sociedade a partir de valores morais e se reafirma em cada prática que a justifica e normaliza. Essas práticas, como indica Fraser, são relativamente independentes do plano da redistribuição. Em outras palavras, não podem ser suprimidas apenas com a implementação de leis de caráter econômico. É necessário complementá-las com políticas que tenham como objetivo descentralizar o androcentrismo, desmantelar o sexismo e transformar as valorações culturais, tanto nos quadros legais quanto nas práticas. Trata-se de construir um reconhecimento positivo à especificidade de um grupo desvalorizado.

Por outro lado, o gênero também se apresenta como um princípio básico em relação à estruturação da economia política. Fraser identifica duas dimensões em que ocorre essa articulação. Em primeiro lugar, o gênero é um elemento essencial na classificação do trabalho em "produtivo" (assalariado) e "reprodutivo" (não pago). Trata-se de uma divisão central, uma vez que o trabalho não pago ligado às tarefas de cuidado é automaticamente atribuído às mulheres. Em segundo lugar, dentro do trabalho assalariado, as mulheres enfrentam muitos mais obstáculos do que os homens para conseguir um emprego. Em parte, precisamente porque são as mulheres que devem cuidar das tarefas de cuidado de seus filhos/as e outras pessoas da família. Além disso, os cargos melhor posicionados e relacionados à tomada de decisões dentro das estruturas de trabalho são ocupados principalmente por homens, obtendo assim um salário maior. "O resultado é uma estrutura econômico-política que gera modos de exploração, marginalização e privação de acordo com o gênero" (Fraser 2000). A maneira como o gênero e o trabalho se articulam produz um tipo de injustiça distributiva. Incorporar uma perspectiva de gênero no plano econômico-político requer eliminar as diferenças, tanto no trabalho não pago quanto no assalariado. Trata-se de deixar a categoria de gênero à margem da estrutura.

Destacamos que muitos dos movimentos sociais existentes hoje se apresentam como formas híbridas que combinam reivindicações relacionadas tanto ao reconhecimento quanto à redistribuição. Podemos afirmar que mulheres e dissidências constituem um grupo bidimensionalmente subordinado, uma vez que o gênero é uma diferenciação social enraizada tanto na estrutura econômica quanto na ordem social. Como consequência, enfrentam formas de subordinação e violência naturalizadas na interação cotidiana. Neste ponto, é pertinente recuperar a noção de interseccionalidade (Crenshaw 1994), pois permite pensar de que maneira as estruturas de desigualdade presentes na sociedade operam entre si. Gênero e classe apresentam-se como dois organizadores básicos da distribuição dos recursos sociais, associando-se a uma interseccionalidade estrutural. A opressão de gênero e de classe opera historicamente de maneira articulada, uma vez que ambas as interseções constituem elementos estruturais primários que moldam as experiências de muitas mulheres.

Fraser argumenta que, na atualidade, há uma aparente dicotomia entre redistribuição e reconhecimento, onde se perde de vista que as dimensões culturais e materiais se entrelaçam e são inseparáveis na prática. Isso ocorre porque esses eixos produzem discursos dentro dos movimentos sociais — neste caso, o feminismo — que se tornam aparentemente contraditórios. Por um lado, as reivindicações de reconhecimento estão relacionadas a práticas que destacam a especificidade do grupo e tendem a promover a diferenciação perante o restante da sociedade. Mulheres e dissidências exigem que o Estado reconheça as particularidades que apresentam como grupo social. Por outro lado, ao contrário, as reivindicações de redistribuição buscam minar a especificidade do grupo com o objetivo de afirmar a igualdade de direitos. Dessa forma, busca-se suprimir as diferenças — neste caso de gênero — para acessar as mesmas oportunidades que os demais grupos sociais. Enquanto a busca pelo reconhecimento exige valorizar a especificidade de gênero, para abordar a redistribuição econômica é necessário deixar de lado o gênero (Fraser 2000). Não há justiça sem a complementação de ambas as dimensões, que devem se integrar em um quadro global.

Na mesma linha, sob a perspectiva interseccional, negar uma das dimensões de subordinação impediria o desenvolvimento de um discurso político que empodere as mulheres. Portanto, é necessário rejeitar interpretações que apresentam as noções de redistribuição e reconhecimento como conceitos mutuamente exclusivos. "Toda instituição econômica possui uma 'dimensão cultural constitutiva' e toda forma cultural possui uma instância político-cultural relacionada a 'bases materiais'" (Fraser 2008, s/p). Para eliminar as injustiças de gênero, é necessário transformar tanto a cultura quanto a economia política, razão pela qual os quadros legais que buscam reduzir essas injustiças devem necessariamente incluir reivindicações de reconhecimento e redistribuição. Aqueles que não são considerados sujeitos no plano cultural encontram-se em desvantagem na redistribuição de bens. Ao mesmo tempo, essa desvantagem gera desigualdade e impede a participação desses sujeitos na construção da cultura. Daí surge a necessidade de construir uma abordagem que integre ambas as dimensões de justiça. É aqui que está o desafio enfrentado tanto pelos movimentos feministas, ao formular suas demandas, quanto pelo Estado, como garante da igualdade de direitos: articular ambas as dimensões de justiça. "Apenas articulando o reconhecimento e a redistribuição poderemos construir um quadro crítico teórico que se adeque às demandas de nossa era" (Fraser 2000, s/p).

 

Metodologia

Em termos empíricos, resgatar as categorias de reconhecimento e redistribuição como códigos interpretativos da realidade permite orientar o olhar para determinadas características do quadro legal vigente. Partimos do entendimento de que a realidade é uma trama complexa em que a cultura e a economia política sempre aparecem imbricadas entre si. Nesse sentido, não é possível distinguir de forma clara os paradigmas de reconhecimento e redistribuição. No entanto, para abordar o objetivo proposto no estudo, é necessário construir distinções em termos analíticos ao lidar com o objetivo geral da pesquisa. "Somente através da abstração das complexidades do mundo real podemos desenvolver um esquema conceitual que o represente" (Fraser 2000, s/p). Portanto, distinguir os conceitos de redistribuição e reconhecimento analiticamente permite reconhecer suas lógicas diferentes para abordar a trama complexa em que se apresentam as dimensões de justiça relacionadas às desigualdades de gênero.

No presente estudo, foram levantadas as leis aprovadas na Argentina e especificamente na província de Buenos Aires nos últimos quinze anos, em relação à desigualdade e violência de gênero. Dessa forma, foi elaborada uma lista de dezessete leis consideradas pertinentes no contexto legal provincial e nacional, uma vez que visam abordar desigualdades que afetam tanto mulheres quanto o coletivo LGBTIQ+. Elas foram classificadas com base na dimensão de justiça que predomina em cada uma: reconhecimento ou redistribuição. Considera-se que há um predomínio da concepção de justiça relacionada ao reconhecimento nas leis em que se busca reconhecer um grupo social e conceder direitos que valorizam a especificidade desse grupo. Por outro lado, são classificadas como leis em que predomina uma concepção de justiça associada à redistribuição nos casos em que a lei tem como objetivo central uma política econômica para suprimir as diferenças e fortalecer a igualdade de oportunidades. Isso nos permite observar, a partir de categorias analíticas, a qual concepção de justiça respondem predominantemente as leis mais recentes em relação às desigualdades de gênero. A classificação resultou nos seguintes resultados, conforme mostrado na tabela a seguir.

Predominância da concepção de justiça ligada ao reconhecimento

Predominância da concepção de justiça ligada à redistribuição

●     Lei 26.364 Contra o Tráfico de Pessoas (2008).

●     Lei 26.485 de Proteção Integral às Mulheres (2009).

●     Lei 26.618 do Casamento Igualitário (2010).

●     Lei de Aborto Não Punível (2012).

●     Lei 26.743 de Identidade de Gênero (2012).

●     Lei 26.791 de Violência de Gênero (2012).

●     Lei 26.862 de Reprodução Humana Assistida (2013).

●     Lei Provincial 14.509 de Violência Intrafamiliar (2013).

●     Lei 25.929 de Parto Humanizado (2015).

●     Lei 27.412 de Paridade de Gênero em Áreas de Representação Política (2017).

●     Lei 27.499 conhecida como "Lei Micaela" (2019).

●     Lei 27.539 de Cotas Femininas e acesso de artistas mulheres a eventos musicais (2019).

●     Lei 27.610 de Acesso à Interrupção Voluntária da Gravidez (2020).

●     Lei Provincial 14.783 de Cotas de Trabalho Trans (2015).

●     Lei Provincial 14.893 de Licença por Violência de Gênero (2017).

●     Lei 27.452 de Compensação Econômica para meninas, meninos e adolescentes conhecida como "Lei Brisa" (2018).

●     Lei 27.636 de Promoção do Acesso ao Emprego Formal para pessoas Travestis, Transexuais e Transgênero "Diana Sacayán - Lohana Berkins" (2021).

Fonte: elaboração própria.

 

Avanços de pesquisa

Como primeira observação, é bastante notável o amplo percentual de leis que se baseiam em uma concepção de justiça centrada na dimensão do reconhecimento. Sem dúvida, esse tipo de legislação se apresenta como essencial para abordar as desigualdades e violências de gênero. Muitas delas visam reconhecer e desarticular o mecanismo do patriarcado simbólico por meio das práticas em que se materializa e se reforça, como é o caso da Lei de Parto Humanizado, da Lei de Paridade de Gênero em Âmbitos de Representação Política e da Lei de Cota Feminina e Acesso de Artistas Mulheres a eventos musicais. Nesse contexto, é fundamental o papel desempenhado pela Lei n. 27.499, conhecida como Lei Micaela[2], ao tornar visíveis as relações de poder e subordinação do feminino e refletir sobre isso. Outras leis têm como objetivo central reconhecer direitos historicamente demandados e estão relacionadas à reflexão de gênero em interseção com outras desigualdades, como a Lei de Casamento Igualitário, a Lei de Identidade de Gênero, a Lei Provincial de Cota Laboral Trans e a Lei de Promoção do Acesso ao Emprego Formal para pessoas Travestis, Transexuais e Transgênero. Podemos incluir também nessa lista o decreto n. 1602/09 que estabelece a asignación universal por hijo o hija[3], ao focar na interseção das desigualdades de classe e gênero.

Além disso, trata-se em grande medida de demandas impulsionadas nos últimos anos pelo movimento feminista em todo o país, então podemos afirmar que houve avanços no quadro legal na busca pelo reconhecimento. Isso coincide com a análise de Fraser (2000) em relação às demandas dos movimentos sociais nas sociedades atuais. Em suas palavras, as reivindicações com base na identidade tendem a predominar. Aqui, podemos incluir também o decreto presidencial n. 476/21 de identidade não binária[4] (2021), que se enquadra na Lei de Identidade de Gênero. Um claro reconhecimento nos sistemas de registro da identidade das pessoas além das categorias binárias historicamente reconhecidas: masculino e feminino.

Neste ponto, cabe destacar que todos os atos políticos nos quais as identidades que até então eram desconsideradas se tornam visíveis e são concedidos direitos negados historicamente têm uma importância fundamental. Quando certas vidas são invisibilizadas e têm seus direitos básicos coartados, são relegadas às elipses que compõem o discurso público, até mesmo fora do que é considerado humano. Uma vida que não é qualificada como tal não tem valor, não deixa rastro. Os seres que não são constituídos como sujeitos deixam de ser constituídos totalmente (Butler 2006). Devemos ter em mente que o problema não se limita à existência de um discurso que marginaliza determinados sujeitos, mas sim à existência de limites que deixam diretamente de fora do discurso certos sujeitos. "A linguagem adquire o poder de produzir o socialmente real por meio dos atos locutórios de sujeitos falantes" (Butler 1999, 231).

Por outro lado, não é possível suprimir as desigualdades sem articular o reconhecimento com reivindicações relacionadas ao plano econômico. Nesse sentido, é notavelmente menor a implementação de medidas que estão diretamente ligadas ao paradigma da redistribuição, mesmo que a redistribuição seja uma dimensão essencial de justiça em uma sociedade capitalista. Vale destacar que algumas das leis classificadas com predominância da justiça em termos de representação incluem pontos relacionados à redistribuição. Existem leis que exigem a destinação de uma grande soma de recursos econômicos para garantir sua implementação e acesso a todas as pessoas, como é o caso da Lei de Reprodução Humana Assistida (2013) e da Lei de Interrupção Voluntária da Gravidez (2020). Assim como algumas leis produzem como consequência de sua aplicação um benefício no plano da redistribuição. É o caso da Lei de Paridade de Gênero em Âmbitos de Representação Política (2017) e da Lei de Cota Feminina e acesso de artistas mulheres a eventos musicais (2019), onde garantir um emprego gera um ganho econômico. No entanto, ao realizar a classificação, considerou-se que a dimensão da redistribuição permanece em segundo plano. Como mencionado anteriormente, não se perde de vista que a realidade é uma trama complexa onde a cultura e a economia se entrelaçam de muitas maneiras.

O fato de que grande parte das leis aprovadas se concentrou no paradigma do reconhecimento traz o risco de limitar o alcance da justiça, deixando de lado a importância da redistribuição no plano econômico. Embora seja necessário aprofundar a análise para compreender como as dimensões da justiça são construídas com mais detalhes, formular ambas as dimensões como complementares em termos de direitos políticos é essencial para o futuro. Para isso, a partir do quadro legal, será necessário encontrar um equilíbrio entre ambas as dimensões da justiça, de uma perspectiva interseccional, destacando as diferenças entre grupos, mas também desestabilizando-as em certas ocasiões. A chave é construir uma concepção de justiça que integre as políticas de reconhecimento e redistribuição como uma visão global.

Cabe destacar também que em grande parte das leis, a responsabilidade de construir uma sociedade mais justa recai sobre a figura do Estado, tanto na dimensão do reconhecimento quanto na redistribuição. Uma característica central para refletir sobre o crescimento dos movimentos que se alinham às políticas de extrema-direita e ao neoliberalismo, colocando em perigo os avanços em termos de direitos. Devemos reconhecer e defender os avanços concretos alcançados por meio da luta nos últimos anos, bem como visualizar o perigo que representa a vitória de um projeto de país que busca eliminar a presença do Estado e retroceder em uma ampla gama de direitos conquistados.

 

Aproximações Finais

Como encerramento, esta primeira abordagem ao quadro legal argentino nos permite refletir sobre os avanços conquistados em termos legais e os desafios que se apresentam atualmente para continuar a transformação em direção a um quadro mais igualitário. A classificação das leis aprovadas nos últimos anos, com especial atenção aos eixos de reconhecimento e redistribuição, nos permite pensar que há um desequilíbrio nas dimensões de justiça em relação ao gênero. Com base na classificação realizada, podemos afirmar que houve avanços claros no quadro legal em termos de reconhecimento, um ponto crucial para visibilizar desigualdades socialmente naturalizadas e sustentadas por meio da violência estrutural e do sexismo automático (Segato 2003). Ao mesmo tempo, a aprovação de leis relacionadas a essa dimensão está em sintonia com as demandas feitas pelo feminismo nos últimos anos. Nesse sentido, podemos pensar que o movimento feminista conseguiu, por meio de sua luta, destacar a importância de transformar as valorações culturais a partir do quadro legal. A busca pela justiça é impulsionada pela comunicação por meio da visibilização das desigualdades de gênero e de suas múltiplas formas de manifestação, fazendo com que os limites discursivos estabelecidos comecem a ser questionados.

A violência contra mulheres e dissidências opera como um mecanismo de controle social e reprodução das desigualdades, mas seu caráter difuso impede que os sujeitos percebam seu funcionamento à primeira vista (Segato 2003). Esse tipo de violência se reproduz rotineiramente e é naturalizado em todos os âmbitos sociais, reforçando-se por meio de cada ação que a justifica e normaliza. Aí reside a importância das leis que têm como objetivo desarticular o patriarcado simbólico: as relações de poder e subordinação que operam sem serem percebidas pelos sujeitos que fazem parte dessa construção. O movimento feminista conseguiu visibilizar questões e impulsionar a aprovação de leis que visam reduzir as desigualdades de gênero em termos de reconhecimento, mas o Estado ainda precisa adotar medidas que foquem na violência econômica e na implementação de políticas concretas em prol da igualdade nesse âmbito.

Cabe destacar que isso não significa afirmar que o feminismo se concentra apenas em demandas relacionadas ao paradigma do reconhecimento. Como detalha a Dra. em Ciência Política, María Virginia Morales (2020), na Argentina, a luta das Mães da Praça de Maio durante a última ditadura civil-militar foi um ponto de inflexão. A resistência à estrutura política e econômica que construíram permitiu articular uma trama discursiva associando o neoliberalismo ao aumento da precarização, das violências e da crueldade contra diferentes atores sociais, incluindo mulheres e dissidências. A partir daí, formou-se uma trama de sentidos que deixa claro o relacionamento que o feminismo estabeleceu com o neoliberalismo em nível nacional.

Na mesma linha, a resistência às políticas neoliberais é um aspecto que caracteriza essa nova onda feminista, mantendo uma posição clara no contexto do paradigma da redistribuição. Em 2018, detalha Morales (2020), as mobilizações realizadas sob a consigna "Ni Una Menos" se tornaram um espaço de repúdio ao acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) realizado pelo então presidente da nação, Mauricio Macri. Morales também destaca a argumentação de Florencia Minici (2018): "dos diferentes setores sociais e políticos que manifestaram sua resistência a essa política econômica, o feminismo se constituiu como o ator mais organizado e massivo" (Minici 2018, citado por Morales 2020, 60). Uma situação semelhante ocorreu durante a primeira greve internacional de mulheres no mesmo ano, onde uma das consignas da mobilização foi "contra o ajuste do neoliberalismo magro que encarna em nosso país o governo de Macri e a Aliança Cambiemos" (Paro Internacional de Mujeres [documento] 2018, citado por Morales 2020, 60). A epistemologia feminista conseguiu valorizar a experiência como motor legítimo (Gaona 2021) para compreender e transformar a realidade. Essa apreensão da realidade é o que permite construir pontos de encontro e laços de solidariedade. Nesse sentido, a teoria feminista consegue trastocar e radicalizar as leituras sociais a partir da interseccionalidade. Negar alguma das dimensões de subordinação impediria o desenvolvimento de um discurso político que empodere as mulheres e dissidências.

Na história mais recente, a grande quantidade de votos obtidos pelo partido de extrema-direita "La Libertad Avanza" nas eleições primárias, abertas, simultâneas e obrigatórias (PASO) na Argentina coloca em xeque todos os direitos conquistados e mencionados até agora. O partido político não apenas busca reduzir a participação do Estado, mas também questiona as leis e políticas públicas implementadas nas últimas décadas direcionadas ao reconhecimento e proteção dos direitos de mulheres e dissidências. O antifeminismo opera como um elemento recorrente e articulador do discurso político desse tipo de agrupação (Arranz Sánchez 2022), apresentando-se como um novo desafio para os movimentos feministas. Diante disso, a tarefa consiste em "conceber formas de afinar o dilema redistribuição-reconhecimento em um campo amplo de lutas múltiplas e entrelaçadas contra injustiças múltiplas e entrelaçadas" (Fraser 2000, s/p). Construir uma visão global das desigualdades de gênero a partir das formas como se articulam com outras categorias de desigualdade será crucial para lutar pela redução das vulnerabilidades que compõem a vida de mulheres e dissidências como vidas precárias.

 

 

 

Referências

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Segato, Rita. 2006. “Qué es un feminicídio. Notas para un debate emergente”, série Antropologia, n.o 401. Brasilia: Universidade de Brasília, Departamento de Antropologia. http://cfe.edu.uy/images/stories/pdfs/comisiones/ed_se_xual/antropologia_genero/segato.pdf

 

 

 

Notas

[1] Todas as citações textuais que aparecem neste artigo foram traduzidas pela equipe da revista. As traduções dessas citações não são traduções oficiais das obras. A equipe da revista fez essas traduções com o propósito de manter a continuidade na leitura no mesmo idioma. Todas as traduções foram feitas com fins educacionais.

[2] A "Lei Micaela" estabelece treinamento obrigatório em gênero e violência de gênero para todas as pessoas que ocupam cargos na administração pública, nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário da Nação.

[3] A "Alocação Universal por Filho ou Filha" é uma quantia mensal que o Estado paga por cada filho ou filha menor de 18 anos quando seus pais estão desempregados, têm empregos informais ou trabalham como empregados domésticos.

[4] Através do decreto 476/2021, o Governo oficializou a inclusão nos Documentos Nacionais de Identidade (DNI) da possibilidade de as pessoas que não se reconhecem dentro do sistema binário feminino/masculino poderem se identificar dessa forma com uma terceira opção, que utilizará a letra "X".

 

 

Biodata

Lisi Batres: Licenciada em Comunicação Social pela Universidade Nacional do Centro da Província de Buenos Aires. Doutoranda em Comunicação na Universidade Nacional de La Plata. Bolsista de doutorado da Comissão de Investigações Científicas da Província de Buenos Aires. Membro do Observatório de Mídias, Cidadania e Democracia da Faculdade de Ciências Sociais, Universidade Nacional do Centro da Província de Buenos Aires.

 

 

 

Revista nuestrAmérica, ISSN 0719-3092, editada en la ciudad de Concepción, Chile. Ediciones nuestrAmérica. Correo contacto@revistanuestramerica.cl